No século XVI, o príncipe D. João,
herdeiro do trono português, casou-se com D. Joana de Áustria, irmão de D.
Filipe II de Espanha. Deste matrimónio nasceu um único filho, D. Sebastião, que
nasceu a 2 de janeiro de 1554, dezoito dias após a morte de seu pai, o príncipe
D. João.
O rei D. João III, avô de D. Sebastião,
faleceu em 1557, quando o neto tinha três anos de idade. A criança recebeu de
imediato a coroa e a sua avó passou a regente do reino. Assim, D. Catarina
governou de 1557 a 1562, seguindo-se-lhe o seu tio-avô D. Henrique,
cardeal-arcebispo de Lisboa e inquisidor-mor, de 1562 a 1568.
Aos 14 anos de idade, D. Sebastião
tomou conta do governo. Enfermo no corpo e no espírito, importava-se pouco com a
governação, perdido antes em sonhos de conquista e de expansão da Fé.
Conquistar Marrocos era a sua ambição número um, mas outros projetos de imperialismo
em terras pagãs preenchiam-lhe a imaginação. Ousado até aos limites da loucura,
o novo rei não atribuía grande importância ao planeamento cuidadoso, à
estratégia ou à retirada, considerando essas preocupações medo ou cobardia.
Desprezava os velhos, os prudentes, os sábios e os experientes, preferindo
rodear-se de um grupo de jovens aristocratas, quase tão loucos e pouco maduros
como ele próprio. Além disso, não aceitava palavras de aviso nem encarava a
realidade e a verdade como eram.
Por outro lado, o jovem monarca dividia
o seu tempo por caçadas, exercícios religiosos e leitura de livros de História.
Adorava desafiar o perigo. Em dias de temporal, embarcava nas galés para fora
da barra e contemplar o mar enfurecido. De acordo com o escritor Fernando Dacosta,
«Era um pouco louco; tinha dificuldade em separar a ficção da realidade».
Porém, quando Lisboa foi assolada pela peste de 1569, abandonou a cidade, facto
que parece comprovar que a sua coragem era apenas temperamental e não um valor
consciente e assumido.
Relativamente à sua vida íntima, nunca
casou, não obstante a insistência da corte para que escolhesse uma noiva entre
as casas reais europeias e desse um sucessor à coroa. Em determinada altura,
negociou casamento com Margarida de Valois e com a arquiduquesa Isabel de
Áustria, que acabou por desposar Filipe II. O despeito pelo episódio,
provavelmente artificial, serviu de pretexto para que recusasse a encetar novas
negociações, o que lhe permitia estar completamente livre para se dedicar
àquilo que mais o fascinava: a guerra.
A pedido do cardeal Alexandrino,
enviado pelo Papa, esteve para participar numa cruzada contra os Turcos, mas,
na impossibilidade de levar avante a ideia, projetou uma incursão na Índia.
Dissuadido pelos conselheiros, decidiu, enfim, concentrar os seus esforços em
África, chegando a navegar em segredo até Tânger em 1574. Provavelmente, terá
sido por essa altura que começou a desenhar-se no seu espírito o desejo de
invadir Marrocos a fim de reconquistar as terras, outrora portuguesas,
devolvidas aos mouros por D. João III.
Segundo um dos seus mais recentes
biógrafos, o espanhol Baños-García, «D. Sebastião acreditava ser um capitão às
ordens de Deus e da Igreja, montando a invasão de Marrocos para se tornar numa
lenda vitoriosa.». Muitos tentaram demovê-lo, sobretudo os espanhóis D. Catarina
e Filipe II, mas o soberano português tinha vestido a pele da luta pela
independência nacional. Nada o faria mudar de ideias.
Em 25 de Junho de 1578, após ter
praticamente esvaziado os cofres do Estado, D. Sebastião partiu com uma armada
de 800 velas e 18 mil homens ‑ a maioria mercenários estrangeiros e camponeses
portugueses, incluindo um pequeno corpo de voluntários nobres bem treinados.
2. Análise do
poema
Num discurso de 1.ª pessoa, D.
Sebastião autocaracteriza-se como louco,
assumindo orgulhosamente essa loucura (atentar na reiteração do adjetivo
“louco”, enfatizada pela presença do advérbio de afirmação “sim”). Notar que,
no poema, «loucura» significa «sonho», «ideal», «utopia».
A causa
dessa loucura é o desejo de grandeza (o ideal, a utopia, o sonho), que o
sujeito poético assume, como acima referido, com orgulho, a qual não é trazida
pela «Sorte», mas conquistada com esforço, coragem e determinação. Porém, o
desejo de grandeza teve um preço: a morte do «louco», do sonhador, isto é, de
D. Sebastião (vv. 4 e 5), que se deixou morrer, portanto, pelo seu ideal no
areal de AlcácerQuibir, no norte de África. E a razão desse sacrifício reside
no facto de o rei não ter sido capaz de realizar essa tarefa, que era superior
às suas capacidades: «Não coube em mim minha certeza» (v. 3).
Porém, no areal, ficou apenas o que
nele havia de mortal, o ser físico, o corpo («Ficou meu ser que houve»), tendo
sobrevivido o ser que há, que permanece, que é imortal, isto é,a alma, o sonho,
o ideal («o que há») ‑ loucura ‑, de querer grandeza, de devolver a glória à Pátria,
que continua vivo e por concretizar, daí o apelo que faz na segunda estrofe.
Recorde-se que o sonho «original» do rei consistia no engrandecimento de
Portugal através da conquista de terras aos mouros no norte de África e da
expansão da fé de Cristo.
Além disso, nestes versos finais da
primeira estrofe, Pessoa faz conjugar, na figura de D. Sebastião, história e
mito. De facto, historicamente, o rei pereceu no areal de Alcácer Quibir (o
«ser que houve» ficou «onde o areal está»), mas o que tem primazia para Pessoa
é o mito («o que há»).
No início da segunda estrofe, o sujeito
poético apela a «outros» que tomem e prossigam a sua loucura, o seu sonho, isto
é, que concretizem, no presente / futuro, aquilo que ele sonhou e idealizou no
passado, o seu grande projeto nacional.
A interrogação retórica final é muito
significativa:
.
faz referência à loucura enquanto energia criativa que poderá ser canalizada
para a reconstrução nacional;
.
a loucura ‑ o sonho ‑ é essencial ao homem e é o que o distingue do animal:
Pessoa compara o homem que não sonha com um animal que se limita a procriar;
sem possuir a capacidade de sonhar, sem possuir um ideal a cumprir, o ser
humano fica reduzido à condição de animal irracional (nasce, procria e morre) e
está condenado à morte e ao esquecimento; assim, a existência humana não tem
sentido nem valor;
.
através da loucura, o ser humano projeta-se no futuro e, por isso, não morre
(com efeito, perante o sonho / a loucura, a morte não passa de contingência
física que não pode impedir que aquele(a) prossiga noutras mãos);
.
é a loucura que leva o homem a partir em busca de grandes realizações
(como fizeram os Argonautas e Vasco da
Gama, para quem «Navegar é preciso / Viver não é preciso») ‑ e, de facto, foi a
louca temeridade de D. Sebastião que esteve na origem do desastre de Alcácer
Quibir, mas também serviu de exemplo aos vindouros.
Nota-se, ao longo do poema, uma viva
admiração de Pessoa pela loucura de D. Sebastião e um claro desprezo pelo homem
«besta sadia», que vive sem ideais, sem grandes sonhos ou projetos,
contentando-se com a mediocridade e com o «gozo materialista».
Por outro lado, Pessoa associa a
loucura ao génio. Na verdade, o louco é também o símbolo da inspiração, do
poeta, de todo aquele que está para além do comum da sociedade.
3. Estrutura
interna
Relativamente à estrutura interna do poema, este pode dividir-se em dois momentos:
.
1.ºmomento (1.ª estrofe) ‑ O sujeito poético (o Rei):
- autocaracteriza-se como louco;
- explicita a razão da sua loucura: a
busca de grandeza / glória;
- e as consequências / o preço da
mesma: a morte.
.
2.º momento (2.ª estrofe) ‑ O sujeito poético:
- faz o elogio da loucura, traço que
distingue o homem do animal irracional;
- exorta a que outros deem
continuidade ao seu sonho.
O poema insere-se na 1.ª parte de Mensagem, «Brasão», uma vez que esta
compreende os antepassados fundadores da nacionalidade. Por outro lado, a
inserção nas Quinas prende-se com o facto de D. Sebastião ter perdido a vida no
contexto do cumprimento de uma tarefa para que foi escolhido por Deus.
4. Valor simbólico
de D. Sebastião
Atente-se nas palavras dos autores do
manual Expressões ‑ 12.º ano sobre o valor simbólico do rei D. Sebastião na
obra de Fernando Pessoa: “D. Sebastião adquire em Mensagem um valor simbólico que ultrapassa a sua figura histórica.
São os valores da determinação e da coragem que ele corporiza que funcionam
como mito inspirador e, nessa
aceção, «fecundam a realidade»: «É Esse que regressarei.» O Sebastianismo em Mensagem não se liga, pois, ao caso específico
e concreto de D. Sebastião, que não poderá, obviamente, voltar, mas à ideologia
que lhe está subjacente. Depois de «ser que houve» e que ficou no «areal» com a
«morte», regressará a força inspiradora de D. Sebastião necessária ao
ressurgimento anímico da nação. O próprio Pessoa refere: «No sentido simbólico
D. Sebastião é Portugal: Portugal que perdeu a sua grandeza com D. Sebastião e
que só voltará a tê-la com o regresso dele, regresso simbólico (…)».”
5. Intertextualidade
Comparemos, por último, a forma como a
figura de D. Sebastião é tratada em Os
Lusíadas e na Mensagem:
.
Os Lusíadas:
‑ Camões dedica-lhe o seu poema épico
(Canto I);
‑ Retrato: traça um
retrato histórico do soberano, com referências à situação de Portugal e à atuação
do rei;
‑ Valores: representa
a segurança, a liberdade e a esperança do povo português no sentido de fazer
ressurgir a Pátria da apatia e decadência do presente, continuando a tradição
dos antigos heróis nacionais, dilatando a fé e afirmando o império.
.
Mensagem:
‑ é o mito
organizador e articulador da obra, já que representa o sonho que presidirá ao
ressurgimento de Portugal da crise em que se encontra mergulhado;
‑ Retrato: o seu
retrato é mítico, assente sobretudo no seu traço de «loucura» criadora e
inspiradora;
‑ Valores: D.
Sebastião representa o mito regenerador e metáfora da «loucura», do sonho.