1916-2020 |
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020
"Reflections of my life", The Marmalade
1969
terça-feira, 4 de fevereiro de 2020
Leituras interpretativas de Frei Luís de Sousa
1. Panorâmica de uma recepção interpretativa
Empenhado
política e culturalmente num processo de renovação do teatro nacional, com Um Auto de Gil Vicente (1838), Almeida
Garrett tinha fundado o teatro português moderno, ao gosto da nova estética
para o drama romântico. Cinco anos
volvidos apresenta a sua obra-prima teatral: Frei Luís de Sousa.
Várias
datas significativas rodeiam a apresentação e representação desta obra:
·
1843, 6 de Maio: apresentando publicamente, pela primeira vez, a peça, Garrett
lê uma Memória ao selecto auditório
do Conservatório Real. Nessa ocasião, procede à primeira leitura do seu mais
recente drama, apresentando explicações de natureza vária (sobre a génese da
obra, o seu estilo, o género literário, etc.).
·
1843, 19 de Maio: Garrett faz nova leitura da peça, na intimidade da casa da
sua amiga Maria Krus.
·
1843, 4 de Julho: em consequência da anterior leitura, o drama é apresentado,
pela primeira vez, no pequeno teatro particular da Quinta do Pinheiro; nesta
primeira representação, feita por actores amadores, o próprio Garrett desempenhou
o papel de Telmo Pais.
·
1844: é publicada a 1.ª edição, em livro, da peça (Lisboa, Imprensa Nacional,
cujo prefácio é datado de Dezembro de 1843)[1].
·
1847: dá-se a primeira representação da peça no modesto Teatro do Salitre,
embora censurada, já que lhe fora amputada a última cena do Acto I, a fim de
“evitar complicações diplomáticas”.
·
1850, 24 de Fevereiro: ocorre a representação da peça no teatro Nacional D.
Maria II, instituição que Garrett ajudara a criar.
Entretanto,
fazia-se uma hábil divulgação da peça na imprensa do tempo, com disfarçados
auto-elogios do próprio autor e alguns ataques aos poderes de Costa Cabral que
obstaculizavam a sua representação nos teatros do Salitre (1847) e de D. Maria
II (1850).
2. Leituras críticas de Frei Luís
de Sousa
2.1. Leitura histórico-genética
Uma das
primeiras leituras críticas da peça relaciona-se com a indagação das suas fontes
históricas e literárias, isto é: onde se inspirou o dramaturgo para conceber o
enredo desta peça? Que relações tem a obra de ficção teatral com a realidade
histórica? Que obras terá lido para se informar sobre o assunto?
De facto,
Garrett inspirou-se num tema nacional, numa figura histórica para compor o seu
drama. Ao dramatizar a vida de Manuel de Sousa Coutinho, o dominicano Frei Luís
de Sousa, insigne historiador e prosador seiscentista, Garrett combina
habilmente informação histórica e ficção. Esta recriação estava prescrita,
aliás, pela teorização do drama romântico.
Na Memória ao Conservatório Real, o próprio
Garrett enumerou as fontes que o influenciaram à escrita da obra, desde a
representação da “comédia famosa” do teatro ambulante, na Póvoa de Varzim, até
às fontes histórico-literárias mais ou menos recentes. Na livre composição da
sua ficção dramática, aproveitava o essencial de uma fábula trágica, mas
introduzia-lhe alterações justificáveis pela economia dramática e atmosfera
romântica. Não podendo ser escravo da cronologia, para Garrett, a verdade dramática implicava uma
consciente alteração da verdade histórica[2].
Além das
influências que Garrett confessa, há outras igualmente importantes que ele
conhecia, mas não menciona: 1.ª) o romance em prosa Manuel de Sousa Coutinho, de Paulo Midose, publicado n’O Panorama, em 1842; 2.ª) a comovente
lenda de Frei Luís de Sousa,
narrativa poética em rima oitava, do Romanceiro
de Inácio Pizarro de Morais Sarmento.
2.2. Leitura biográfico-psicológica: a
ficcionalização de um caso pessoal
Esta
perspectiva procura relacionar o conteúdo do drama garrettiano com as circunstâncias
da vida do autor, em particular com o caso
pessoal de Garrett.
Deste modo,
esta interpretação valoriza o drama íntimo da figura de D. Madalena, que amou
ilicitamente o segundo homem da sua vida, Manuel de Sousa Coutinho, estando
ainda casada com o primeiro. É precisamente este facto que atormenta a
consciência desta mulher, confessando-o dolorosamente ao velho Telmo Pais. O
regresso inesperado, mas sempre receado, do primeiro marido (D. João de
Portugal) desfaz a nova família, tornando ilegítima a filha desta relação
(Maria de Noronha). Sobretudo para D. Madalena, ao crime do adultério de pensamento, sucedeu o castigo da desagregação familiar, da morte da filha e da morte para
o mundo (solução religiosa, tipicamente romântica).
À luz de um
biografismo algo primário, este drama íntimo configuraria a projecção romântica
do caso pessoal do próprio dramaturgo. Separado da primeira esposa, Luísa
Midosi, mas casado com ela aos olhos da Igreja, Almeida Garrett conhecera e
mantivera uma relação com a jovem Adelaide Pastor, de quem tivera uma filha,
Maria Adelaide. Porém, esta mulher morrera inesperadamente em 1841, deixando o
escritor com uma filha ilegítima nos braços, face aos olhos da sociedade
conservadora do tempo. Quer na vida quer na ficção dramática, o inocente fruto
de uma relação pecaminosa seria objecto de marginalização social e condenação
moral.
Por
conseguinte, a aflitiva situação existencial, vivida nos dois anos que antecederam
a primeira apresentação da peça, teria alimentado a imaginação do dramaturgo
durante a composição da sua obra teatral, pretendendo com ela exorcizar
publicamente a sua culpa. É esta a posição de Teófilo Braga: “E Maria, a débil
criança, que morre de vergonha vendo que se separam os seus progenitores,
porque ainda está vivo o marido de sua mãe, surgia-lhe na mente, diante de sua
filhinha Maria Adelaide de pouco mais de dois anos, que lhe ficara desses
atormentados amores de Adelaide Deville, extinta aos vinte e dois anos. Esse
pressentimento realizou-se; porque D. Maria Adelaide na adolescência veio a
saber que D. Luísa Midosi, esposa de seu pai, estava viva em Paris, vindo a
confinar-se na vida doméstica com a vergonha do seu nascimento.”
Esta tese é
aprofundada por Costa Pimpão, para quem a história trágica de Frei Luís de
Sousa surgiria, deste modo, associada ao drama pessoal do próprio Garrett.
Assim se compreenderia o sacrifício final da jovem e inocente Maria de Noronha.
Com esta morte de dor e de vergonha antes da cerimónia religiosa, despertava-se
o terror e a piedade, e expiava-se a culpa dos seus progenitores, através da
noção cristã de pecado e respectivo remorso. Deste modo, a peça seria um apelo
patético a favor das inocentes vítimas da moral social, bem diversa da moral
cristã. Pensando na filha, Garrett teria procurado ganhar para Maria a piedosa
adesão dos espectadores. E essa seria, portanto, a personagem central.
No entanto,
são vários os perigos redutores e os inconvenientes desta perspectiva, até
porque as semelhanças entre a fábula dramática e uma dada fase da vida do autor
são dispensáveis à compreensão da obra.
2.3. Leitura religiosa: entre a angústia, a
revolta e a esperança cristã
Intimamente
relacionada com a interpretação precedente, está uma leitura religiosa e
metafísica. A fé católica e os seus princípios morais regem as consciências e a
actuação das personagens centrais do drama, família “honesta e temente a Deus”
(Memória ao Conservatório Real). Não faltam
os ícones e signos representativos da Divina Providência (a Palavra de Deus, a
Cruz ou a Igreja), nem o caso dos condes de Vimioso (que também entraram para a
vida conventual), várias vezes convocado com uma função pressagiadora do
próprio desfecho do drama. A enformar a tragédia estão pressupostos religiosos
característicos da vivência portuguesa de Seiscentos: a visão católica da
indissolubilidade matrimonial, o escrúpulo de consciências exigentes
atormentadas pelo remorso do pecado, mesmo só quando praticado em espírito.
Nesta
abordagem, destacam-se três ideias. A primeira diz respeito à angustiante consciência do pecado por
parte de D. Madalena, existente desde a primeira cena. Atormentada pelos
fantasmas do passado e pela sua consciência, D. Madalena vive em constante e
profunda ansiedade. Não só teme o regresso do primeiro marido, como se sente
uma mulher angustiada por ter amado ilicitamente o homem que viria a ser o seu
segundo esposo, estando ainda casada com o primeiro (consciência de adultério
em pensamento). Quem também a atormenta é Telmo Pais, quer quando conversa com
Maria sobre o passado e a esperança sebastianista, quer quando afronta a sua
ama, ousando dizer-lhe que Maria era digna “De nascer em melhor estado” (I, 2).
Mais tarde, é a própria Madalena que, na cena anterior à aparição do Romeiro,
confessa a Frei Jorge a razão da sua infelicidade que a sua consciência de
cristã se encarrega de lhe lembrar.
A segunda
ideia é a da desafiadora revolta de
Maria nos instantes que precedem a sua morte por tuberculose. Ela irrompe pela
Igreja de S. Paulo quando os seus pais se preparam para tomar o hábito,
morrendo para o mundo e abraçando a mortalha da vida religiosa e os novos nomes
(Frei Luís de Sousa e Sóror Madalena). Não a prepararam para tão duro golpe,
nem lhe perguntaram a opinião; apenas a confrontaram com aquele violento abandono.
Tenta ainda demovê-los de tão cruel resolução: “Esperai: aqui não morre ninguém
sem mim. Que quereis fazer? Que cerimónias são estas?” (III, 11).
É neste contexto
que surge a invectiva de Maria contra a falta de humanidade de um Deus
justiceiro e vingador que assim lhe rouba os pais: “Que Deus é esse que está
nesse altar e quer roubar o pai e a mãe a sua filha?” (Para os circunstantes.) Vós quem sois, espectros fatais?...
Quereis-mos tirar dos meus braços? Esta é a minha mãe, este é o meu pai. Que me
importa a mim com o outro?” (III, 11). O dramaturgo suscita assim a piedade
para a única vítima inocente. As razões e os valores religiosos, sobretudo a
indissolubilidade do casamento (ordem divina), vencem as razões do coração e o
fruto de uma união apaixonada (plano humano).
Por último,
cabe mencionar a resolução do casal (solução
religiosa), tomada decididamente por Manuel de Sousa e aceite por D.
Madalena. Acolhendo resignadamente os insondáveis desígnios de Deus, os dois
decidem entregar-se à divina Providência. Recordando à esposa o caso dos condes
de Vimioso, o marido é levado a reconhecer que a única solução (romântica) do
drama familiar reside na “sepultura de um claustro”.
O mesmo
sentimento de revolta de Maria fora momentaneamente partilhado pelo seu pai.
Com efeito, no início do derradeiro acto, aparece-nos um Manuel de Sousa
profundamente transtornado pela dor, invocando Deus na sua desgraça, dominado
apenas por um doloroso sentimento: a perdição da sua filha no “abismo da
vergonha”, vítima inocente do drama familiar. Recebe, então, os conselhos de
resignação e acatamento dos desígnios da divina Providência, por parte de Frei
Jorge, que lhe recomenda o abandono do mundo: “E Deus há-de levar em conta
essas amarguras. Já que te não pode apartar o cálix dos beiços, o que tu
padeces há-de ser descontado nela, há-de resgatar a culpa”. Deus velaria
paternalmente pelo seu pobre anjo: “Deus, Deus será o pai de tua filha” (III,
1). Fora, aliás, a própria mãe, momentos antes da cerimónia religiosa, que a
oferecera a Deus como uma espécie de cordeiro imolado para expiar o seu próprio
pecado. A filha desonrada e perdida tinha sido também o motivo da explosão de
dor perante a anagnórise incompleta
(II, 13).
Depois da
interrupção da cerimónia religiosa por Maria, a peça termina com um sentimento
misto de resignação e esperança cristãs: ser transitório, o homem confia
plenamente a sua existência na misericordiosa mão de Deus. Todos rezam pela
alma daquele anjo inocente que acaba
de falecer, comungando do sentimento expresso pelo celebrante dominicano: “Meus
irmãos, Deus aflige neste mundo àqueles que ama. A coroa de glória não se dá
senão no Céu” (III, 12). Ao pecado do adultério de pensamento e à ilicitude da
relação matrimonial, impõe-se a solução religiosa, como forma de repor a
desejada ordem moral – ao crime sucede a expiação, através da Cruz redentora.
Consuma-se, deste modo, a anunciada catástrofe do “duplo e tremendo suicídio” (Memória ao Conservatório Real): suicídio
moral dos esposos e morte física da vítima filha.
2.4. Leitura genológica: a discussão do
género
O Frei Luís de Sousa é um drama romântico
ou a renovação da tragédia antiga? A resposta é adiantada pelo próprio Garrett:
drama de índole trágica (hibridismo genológico).
Por um lado, Frei Luís de Sousa não respeita todos os
cânones poético-retóricos da tragédia clássica (assunto antigo, uso do verso ou
a divisão em cinco actos), sem deixar de ser uma “verdadeira tragédia”. Embora
optando por assunto português e relativamente moderno, a fábula é determinada
por leis superiores (religião e moral social), personagens de perfil trágico. O
leitor/espectador é ainda confrontado com a relativa observação da lei das três
unidades (acção, espaço e tempo). Por último, mencione-se o facto de o coro da
tragédia clássica ser desempenhado ora por Telmo, ora por Frei Jorge. Por
outro, inspirando-se em temática nacional e em circunstâncias biográficas
(ingredientes do drama moderno), a obra também não observa toda a moderna
estética do drama romântico, o que leva Garrett a observar: “Só peço que a não
julguem pelas leis que regem, ou vedem reger, essa composição de forma e índole
nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há-de
ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico”.
A não
observância da rígida lei das três unidades da tragédia antiga é compensada
pelo aproveitamento de três procedimentos técnico-compositivos:
a) a
estrutura interna:
‑ exposição do
conflito (primeiras cenas do acto I);
‑ adensamento
e clímax dramáticos (até ao final do acto II);
‑ desenlace trágico (morte simbólica dos pais – profissão religiosa –
e morte física de Maria).
b) a
concentração dramática:
‑ da acção que, da exposição
inicial do conflito, caminha inexoravelmente para o adensamento trágico e
anagnórise gradual, até ao desenlace final;
‑ do tempo, que se vai
chegando gradualmente, até ao dia fatal de 4 de Agosto de 1599, vinte e um anos
depois da batalha de Alcácer Quibir;
‑ do espaço, que se vai
afunilando gradualmente até à austeridade do palácio de D. João de Portugal e
do retrato, e depois da capela onde decorre a celebração religiosa final na
sóbria igreja de S. Domingos;
c) o estilo e a arte do
diálogo: o estilo da peça caracteriza-se pela sobriedade lexical e pela
exploração de determinados recursos reveladores dos estados emocionais das
personagens (alusões, exclamações, reticências, interrogações, etc.); por outro
lado, Garrett adequa o estilo ao momento, perfil e ideologia de cada personagem
– nervoso e angustiado em D. Madalena; emocionado e inquiridor em Maria;
respeitoso e digno em Telmo; nobre e decidido em Manuel de Sousa.
Além disso,
os dois primeiros actos são de índole mais trágica, enquanto que o terceiro,
sobretudo com a melodramática morte de Maria, é mais sombrio e patético. Nos
dois primeiros, sobressai um clima crescente de medo, em que uma família é
ameaçada pelo pecado e ensombrada pela figura do ausente/presente D. João de
Portugal, encarnação de um Destino fatal; no terceiro, mais declamatório, é o
cristianismo romântico que impõe a morte de Maria, como uma espécie de
expiação.
Por
conseguinte, podemos concluir que o Frei
Luís de Sousa é formalmente um drama romântico, servido por um enredo nacional
de fundo trágico.
2.5. Leitura político-sociológica: relações
especulares
Tão
importante como o tempo da intriga recriado pela peça (finais do séc. XVI e início
do séc. XVII) é a época da escrita (década de 1840). Lida à luz do contexto em
que a obra foi escrita, apresentada e publicada, a peça configurar-se-ia como
uma censura mais ou menos velada e simbólica da situação político-social
portuguesa, das “violências palatino-cabralistas”, vividas sob o governo
conservador e autoritário de Costa Cabral.
Assim sendo,
não surpreende que a censura cabralista persiga a obra, amputando-lhe os actos
ou falas de bravura revolucionária diante da tirania castelhana (incêndio do
palácio de Manuel de Sousa Coutinho), argumentando com as consequências para as
relações diplomáticas entre os dois estados peninsulares. Aliás, terão sido as
ideias políticas mais revolucionárias de Garrett que, exonerado dos cargos
políticos ligados directamente à reforma do teatro português, impediram,
durante algum tempo, a representação do Frei
Luís de Sousa.
Almeida
Garrett terá, assim, explorado a similitude entre as duas épocas históricas: o
moderno autoritarismo cabralista (do séc. XIX), sob a aparência de um regime
liberalista, assemelha-se à despótica e opressora ocupação castelhana de finais
do séc. XVI. Neste sentido, a obra não deixa de ser uma crítica à política
vigente, ressaltando a revolta e sublevação de um homem (Manuel de Sousa)
contra a tirania de um regime imposto e em prol do elevado valor da liberdade e
da independência ideológica. O acto de Manuel de Sousa deve ser interpretado
como um significativo acto de vontade por parte de um homem que preza a
liberdade contra todas as formas de tirania.
2.6. Leitura psicocrítica e imagética: o
conflito e a psicologia profunda
Segundo esta
leitura, com a peça estaria em causa a dualidade do Homem, no seu conflito
entre o ser e o parecer, entre o Eu profundo e o Eu de superfície.
António José
Saraiva sustenta que Telmo, verdadeira personagem central do drama, simboliza a
alma profunda e fragmentada do autor, no seu conflito de fidelidades (o culto
sebástico e a crença no regresso de D. João, a par da profunda afeição por
Maria), de impossível harmonização.
O dramatismo
intensifica-se quando Telmo se consciencializa da passagem do tempo, dando-se
conta de que a antiga admiração por D. João, que vive apenas na sua “lembrança”,
é substituída por uma afeição bem real e viva por Maria. Mudam-se os tempos e
as circunstâncias, mudam os corações, e a convivência de sentimentos torna-se
impossível. Perante este dilema interior, o velho aio acaba por se transformar
no anunciador da “morte do impostor” (D. João). Essa morte do passado é-lhe
solicitada expressamente pelo antigo amo, mas esse pedido estava já entranhado
no perturbado coração de Telmo.
Resumidamente,
o Frei Luís de Sousa pode ser visto
como um drama do Eu. Telmo exprimiria
“a dor de não ser constante e inteiro no amor, a mágoa, a que se mistura algo
de remorso, de viver repartido entre duas afeições inconciliáveis, dois compromissos,
uma para com o passado (no caso de Telmo, a fidelidade a D. João) e outro para
com o presente (no caso de Telmo, a entranhada estima por Maria), que o leva a
desejar que o antigo amo nunca mais volte”.
Mário Garcia
visualiza em Telmo um conflito entre o Eu social, de aparências e disfarces, e
o Eu desvelado, profundo e verdadeiro. Manuel de Sousa, que incendeia heroicamente
o seu palácio, impelido pela honra, representaria “o contributo para a
regeneração espiritual de Garrett, através do sentido de paternidade”.
Para João
Mendes, Garrett viveu um inquestionável drama
da fidelidade entre um homem social, de aparências e máscaras, e um homem
sensível, íntimo e real. Ora, esse conflito de fidelidade é projectado nas
dramáticas figuras de D. Madalena e de Telmo, tendo sido esta última
interpretada pelo dramaturgo na primeira representação. A saída para o conflito
e divisão interior de Garrett residia no sacrifício de Manuel de Sousa: “Manuel
de Sousa é o Garrett ideal, como ele desejaria ter sido e nunca foi, por falta
de coragem”.
Segundo uma
leitura histórico-psicológica, Manuel de Sousa simbolizaria a reabilitação de
Almeida Garrett perante a sua filha Maria Adelaide e perante a sociedade.
Manuel de Sousa simbolizaria o Garrett romântico (tese), enquanto o Carlos das Viagens na Minha Terra configuraria o
homem devorado pelo amor-paixão (antítese), encontrando-se a síntese n’ As Folhas Caídas, entre Manuel de Sousa
e Carlos. O incêndio da casa e o permanente estado febril de Maria remetem para
a bivalência da imagem arquetípica do fogo:
ora significando a auto-expiação de Manuel de Sousa e “confissão” de Garrett;
ora a purificação do sangue, manifestada na febre da jovem Maria, fruto do
pecado de uma relação extra-conjugal. O incêndio depurador da paixão
prepararia, deste modo, o desfecho religioso do drama.
2.7. Leitura mítico-cultural: o
Sebastianismo e o destino português
Para Garrett,
desencantado com o rumo do país, ligado a um passado quinhentista, e vivendo à
sombra de uma pesada memória, o Portugal do séc. XIX só teria futuro se se
libertasse da nostalgia passadista.
As crenças no
sebastianismo eram sinónimo de passadismo, de estéril paragem do tempo. Regressar
ao passado é sinónimo de morte do presente e de sério comprometimento do
futuro.
A crença
sebástica é difundida por Telmo Pais. Amigo de Luís de Camões, ele acredita no
regresso de D. João, que acompanhara o jovem rei D. Sebastião à nefasta batalha
de Alcácer Quibir. Ao comunicar estas crenças à jovem e influenciável Maria,
Telmo desperta gradualmente o terror em D. Madalena, logo a partir da cena II
do acto I. Estas referências ao sebastianismo prosseguem ao longo de toda a
obra, o que só serve para acentuar o desespero de Madalena.
Por outro
lado, de acordo com a didascália que antecede o acto II, destacavam-se, no
palácio de D. João, pela sua singular localização, os retratos de D. Sebastião,
Camões e D. João de Portugal, que merecem a atenção de Maria.
Reactualizando
comicamente o sebastianismo, Garrett concebe-o, no Frei Luís de Sousa, à luz da tradição sebástica, como o mito
imperial que deu corpo à nostalgia de uma idade de ouro. Com a perda do jovem
monarca, Portugal afunda-se numa época de inércia e de brumas, à espera de um
refundador e heróico rei-salvador, sobretudo em momentos de profunda crise
política.
Por
conseguinte, nesta abordagem crítica, na peça de Garrett, mais do que personagens
de um drama familiar, temos seres simbólicos, representativos do destino
colectivo português, num dado momento da sua história. Neste contexto, uma
última leitura situa-se ao nível mitológico, recuperando o significado dos
temas da saudade e do sebastianismo. D. Sebastião seria, assim, a anunciada
“maravilha fatal da nossa idade” (Camões) e dos tempos futuros.
Para Garrett,
o sebastianismo constituía o mito da nossa decadência. Portugal renegava, por
um mito, a realidade; morria para a história, apático e desfeito em sonho; envolvia-se,
para entrar no sepulcro, na mortalha de uma esperança messiânica. O
sebastianismo era o mito da nossa fraqueza e compensação, da nossa fuga da
realidade; é um refúgio para a realidade dos acontecimentos; é uma afirmação de
esperança nacionalista, de fé patriótica em épocas de profunda crise política,
como a da perda da independência. Será isso que Garrett transmitiu na peça: um
choro de aflições tristes, uma resignação heroicamente passiva, uma esperança
vaga, etérea, na imaginação de uma rapariga tísica e no tresvario de um
escudeiro sebastianista.
Maria de
Lourdes Vieira considera que o mito do Encoberto (tratado desde o Bandarra até
à Mensagem de Pessoa) é
perspectivado, negativamente, como sinónimo de paragem no tempo, de
irrealidade, de sacrifício do herói na catástrofe final. O regresso do (falso)
D. Sebastião, na figura de D. João, implica a alteração do rumo da história e o
aniquilamento. Por isso, diante do espelho do seu retrato, o representante do
Portugal morto e sebástico se define como Ninguém.
O Portugal do futuro não pode alimentar-se de estéreis utopias passadistas.
Podemos assim
dizer que o incêndio do palácio de Manuel de Sousa, além de acto de
patriotismo, simboliza a resoluta busca de uma nova ordem e novo espaço para
uma família assombrada pelo passado, isto é, uma nação que vivia à sombra de
mitos, sonhos ou utopias. O regresso ao velho palácio de D. João representa um
anacrónico e impossível regresso ao trágico ao passado. A História não pode
regredir e imobilizar-se num pretérito mítico. O Portugal moderno tem de,
edipianamente, matar o velho pai para mudar o rumo da sua história, nem que
para isso tenha que sacrificar a própria vida, como fez Manuel de Sousa.
Para Eduardo
Lourenço, Frei Luís de Sousa será a
representação da tragédia colectiva de um povo. O drama reflete sobre Portugal
num momento em que ele se interroga pela boca de Garrett. É um país que vive um
presente hipotecado, à sombra de um sentimento de saudade passadista e
sebastianista. Neste sentido, é uma peça assombrada por dois fantasmas – um
quase fantasma (D. João) e um fantasma mítico (D. Sebastião). O simbolismo
alegórico que une os dois personagens está bem representado no nome do
primeiro: o primeiro nome (D. João) remete-nos para alguns monarcas da História
de Portugal; e no sobrenome (de Portugal) está cristalizado o próprio nome da
Nação, num momento crucial da sua História. É preciso matar ou exorcizar o
passado, para que Portugal possa ter futuro.
Deste modo,
estaremos perante uma culpa metafísica,
personificada em D. João, a figura que simboliza um Portugal sem presente,
sonâmbulo e doente de sebastianismo. Nesta ordem de ideias, a regeneradora
Maria representa o sacrifício necessário para exorcizar os fantasmas do passado
e definir o futuro de Portugal. Só assim teria sentido o absurdo castigo-expiação de Maria, culpada de não ter culpa, que morre,
romanticamente, de excesso e de vontade.
Esta
problematização do modo de ser português será, portanto, feita a partir do
duplo e simbólico espaço da casa-palácio e da igreja-convento. O drama de
Garrett é fundamentalmente a teatralização de Portugal como povo que só já tem ser imaginário (ou mesmo
fantasmático) – realidade indecisa, incerta do seu perfil e lugar na História,
objecto de saudades impotentes ou pressentimentos trágicos.
Neste
sentido, o conflito particular ou o drama humano e familiar da peça mais não é
do que uma metáfora do nosso devir colectivo: “Quem responde pela boca de D.
João, definindo-se como ninguém, não
é um mero marido ressuscitado fora de estação, é a própria Pátria. O único
gesto redentor do seu herói (Manuel
de Sousa) é deitar fogo ao palácio e enterrar-se fora do mundo, da História.
Por
conseguinte, pela boca do Romeiro, fantasma de um outro fantasma (D. Sebastião),
é Portugal inteiro que se auto-interroga, olhando no espelho da sua identidade
e não se encontrando. O velho Portugal já não se revê na nova ordem
estabelecida, nem é facilmente reconhecido pelos seus mais fiéis seguidores
(Telmo Pais). Portugal desapareceu em Alcácer Quibir, perdeu irremediavelmente
a sua identidade, até à sua refundação em 1640. O Portugal heróico, aventureiro
e cavaleiresco estava definitivamente defunto. Dessa morte simbólica, que
implicou o sacrifício de vidas mais ou menos inocentes nascia um Portugal novo.
Sintetizando
as várias perspectivas críticas:
Interpretações
|
Ideias
nucleares
|
1.
Leitura histórico-ge-nética
|
. Fontes histórico-literárias da peça, reconhecidas
pelo autor ou omitidas;
. Recriação ficcional de assunto histórico: tradição
+ imaginação dramática.
|
2.
Leitura biográfico-psicológica
|
. Encenação do caso pessoal de Garrett, com base nas
significativas coincidências entre a situação biográfica e o enredo dramático
da obra.
|
3.
Leitura religiosa e metafísica
|
. Da consciência do pecado (D. Madalena), à
desafiadora revolta (Maria) e ao sacrifício à esperança cristã (tomada de
hábito do casal).
|
4.
Leitura genológica e arquitextual
|
. Classificação quanto ao género: drama ou tragédia?
. Tragédia de destino, de assunto moderno; drama
romântico, de fundo trágico.
|
5.
Leitura político-soci-ológica
|
. Homologias entre a decadência quinhentista e o
autoritarismo agiota cabralista.
. Crítica velada ao rumo da política portuguesa sob o
governo de Costa Cabral.
|
6.
Leitura psicocrítica e imagética
|
. Drama interior de Telmo e D. Madalena, divididos
entre duas fidelidades.
. Numa imagética do fogo, Manuel de Sousa Coutinho seria o Garrett ideal.
|
7.
Leitura mítico-cultural
|
. Enterro simbólico do sebastianismo no seu
fantasmático representante (D. João).
. Interrogação psicanalítica de Portugal: a
fragilidade ôntica da pátria portuguesa.
|
Bibliografia:
. http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/zips/candid12.rtf
[1] Nesta
altura, fez-se uma edição de quinze exemplares da peça. Existe um fac-símile do
Frei Luís de Sousa da edição da
Quinta do Pinheiro, apresentada por M.ª Leonor Machado de Sousa, Lisboa, Inst.
da Biblioteca Nacional e do Livro, 1993. Em bom rigor, esta primeira publicação
constitui a verdadeira editio princeps
da peça garrettiana.
[2] Entre
as alterações da verdade factual, salientam-se: 1.ª) D. Madalena esperou 7 anos
por notícias do primeiro marido a que, somada a idade de Maria, perfaz 21 anos,
quando historicamente terão sido 17 ou 18 anos; 2.ª) D. Madalena aparece em
cena atemorizada com a marginalização que se abaterá sobre a sua única filha,
do seu segundo casamento com Manuel de Sousa, embora a realidade histórica
refira a existência de mais três filhas do primeiro casamento; 3.ª) Manuel de
Sousa incendeia patrioticamente o seu palácio de Almada, quando, de facto, não
terá sido por um acto de heroísmo, nem ele se terá notabilizado por reacções
anti-castelhanas, antes pelo contrário; 4.ª) por fim, a solução religiosa fica
a dever-se à inesperada aparição de D. João, quando, historicamente, a opção
pela vida conventual por parte de Manuel de Sousa e da esposa não tem nada a
ver com essa lenda.
Características clássicas de Frei Luís de Sousa
- A unidade de acção.
- A presença do Destino (anankê) que, produzindo o sofrimento (pathos), logo de
início descai sobre as personagens principais, cuja gradação vai aumentando
através de um clímax irresistível e fatalista.
- A presença da hybris.
- Os presságios (palavras de Telmo, D. Madalena e Maria).
- A anagnórise no final do segundo acto.
- A catástrofe (originada pela anagnórise).
- Como era de lei na tragédia
clássica, iria despertar nos espectadores o terror (fobos) e a piedade
(éleos) purificantes.
- As personagens são nobres
(aristocráticas) e estão sempre poucas vezes em cena.
- A presença do coro:
. recitação litúrgica do ofício dos mortos pelos frades
no final do acto III;
. as palavras de Frei Jorge;
. as palavras visionárias e os sonhos de Maria;
. os receios aparentemente infundados de D. Madalena;
. os lamentos críticos e os presságios de Telmo, figura
agoirenta que representa o raciocínio frio e a inteligência esclarecida na
análise dos acontecimentos. Aliás, Telmo é uma figura muito bem estruturada pela
sua profundidade e densidade psicológica devida à duplicidade de duas afeições
irreconciliáveis: uma para com o passado (D. João de Portugal), outra para com
o presente (Maria), (III, 5).
- A semelhança do assunto
com as antigas tragédias gregas:
. a volta sob disfarce de um mendigo (Ulisses);
. o sacrifício de uma filha inocente (Antígona e Ifigénia);
. a situação trágica originada pela ida a Alcácer Quibir
equivalente a situações trágicas causadas pela ida a Troia.
Características românticas de Frei Luís de Sousa
* O patriotismo
e o nacionalismo: o assunto é
nacional, eivado de messianismo, que constituía uma força de reacção contra a
dominação dos espanhóis; uma reacção do povo português ao domínio filipino.
* O mito do escritor romântico: martirizado, sofredor, solitário, marcado pelo
Destino, refugia-se no convento, que lhe proporciona o isolamento indispensável
à escrita.
* A crença no sebastianismo: logo no início (I, 2), Madalena afirma a Telmo: "... mas as tuas palavras misteriosas,
as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei D. Sebastião, que o seu mais
desgraçado povo ainda não quis acreditar que morresse, por quem ainda espera em
sua leal incredulidade!".
O sebastianismo, representado por
Telmo e Maria, reside na crença no regresso do rei D. Sebastião que conduzirá a
uma época de brilho para Portugal e ao início de uma nova era mundial do
direito e da grandeza, que será a última no plano da salvação dos homens.
* A religiosidade: além das constantes referências ao cristianismo e ao
culto, a religião surge como refúgio e consolação para o sofrimento trágico,
para as almas atormentadas pelo pecado (tomada de hábito de D. Madalena e de
Manuel Coutinho). O próprio conflito tem origem, em grande parte, na ética
cristã.
* A obra não tem unidade de tempo nem unidade de lugar, embora o lugar continue a ser
sempre o mesmo: um palácio.
* A obra não possui cinco actos,
como era de regra na tragédia clássica, mas somente três.
* O tema da morte: a morte é um tema típico do Romantismo por ser a melhor solução
para os conflitos (Maria morre fisicamente e os pais morrem espiritualmente,
para o mundo). Por outro lado, a morte de uma personagem em cena (Maria)
admite-se no Romantismo, mas não no Classicismo.
* A apresentação formal da obra em prosa, porque "repugnava-lhe pôr na boca de Frei
Luís de Sousa outro ritmo que não fosse o da elegante prosa portuguesa que ele,
mais do que ninguém, deduziu com tanta harmonia e suavidade" (Memória ao
Conservatório Real).
* Algumas personagens, sobretudo
Madalena e Maria, embora aristocráticas, são verdadeiras heroínas românticas pelo seu comportamento emocional (por exemplo,
Maria é uma personagem romântica pela sua sensibilidade doentia e de imaginação
aguçada pela tuberculose – sonhos, visões).
* As crenças: agouros, superstições, visões e sonhos, bem evidentes em
Madalena, Telmo e Maria.
* O individualismo: acentuado pelo confronto entre o indivíduo e a
sociedade, entre o código moral estabelecido e o desejo de ser feliz à margem
desse mesmo código, entre a fidelidade a um passado que esmaga e o abandono a
um presente que abre um sentido para a vida.
* A linguagem e o estilo: a
linguagem é adequada às circunstâncias e às personagens:
- linguagem carregada de remorso e amor,
inquietação e angústia (reticências) em D. Madalena;
- digna, respeitosa sem deixar de ser
familiar em Telmo, e ainda paternalista, confessional, agoirenta;
- carinhosa, familiar e respeitosa entre D. Madalena e
Telmo;
- nobre e elegante, por vezes de tom didáctico, em
Manuel Coutinho;
- agoirenta, fantasista e amorosa em Maria;
- confidencial, de tom religioso e moralizador, em
Frei Jorge;
- fria e espectral, cheia de arrependimento em D.
João;
- a linguagem é digna e culta, como
convém a uma obra com características de tragédia.
Características do drama romântico em Frei Luís de Sousa
Frei Luís de Sousa apresenta algumas características do drama romântico, género literário desenvolvido pelos escritor Victor Hugo. Dentre elas, destacam-se as seguintes:
- a crítica a uma sociedade governada
por preconceitos hirtos que vitimam inocentes (Maria é vítima da sua
ilegitimidade);
- a ruptura com a forma clássica:
. a obra está escrita em prosa, que substitui o verso da tragédia
antiga, um tipo de discurso considerado por Garrett adequado a “assuntos tão
modernos”;
. a peça é constituída por três actos, contrariamente à tragédia grega,
composta por cinco;
. a diminuição da importância do coro (ainda que ecoe em Frei Jorge e em
Telmo);
. a lei das três unidades não é cumprida cabalmente;
. os agouros e superstições populares substituem as crenças e rituais
pagãos e dão expressão à manifestação da cultura portuguesa;
. os valores patrióticos e nacionais são exaltados, sobretudo, através
de Manuel de Sousa;
. a religião cristã surge como um consolo, aligeirando a força
inexorável e irremediável do Destino que controlava os homens a seu bel prazer;
. o realismo psicológico sustentado na personagem Telmo, que assiste à
transformação dos seus próprios sentimentos, num processo de autoconhecimento
dinâmico, no momento em que percebe que, após ter acalentado, durante tanto
tempo, a ideia de que D. João estaria vivo, desejaria poupar Maria, renegando o
primeiro amo;
. a experiência pessoal do autor: Almeida Garrett possuía uma filha
ilegítima, filha de Adelaide pastor Deville, por quem se apaixonara, ainda
casado com Luísa Midosi; Adelaide Deville morreu antes que o escritor tivesse podido
legitimar a situação da filha que tanto estimava – assim, a acção da peça
traduz a sua angústia mais profunda, reflectindo a sua própria realidade;
. a morte de Maria em palco é também um episódio característico do drama
romântico;
. as personagens são vítimas do Destino, mas, à maneira do drama
romântico, são também vítimas das suas decisões e das suas paixões (por
exemplo, Maria é condenada não apenas pelo Destino, mas pela sociedade);
- a linguagem coloquial, próxima das
realidades vividas pelas personagens e dos seus estados de espírito;
- o assunto da peça é um assunto nacional
e histórico.
Características trágicas de Frei Luís de Sousa
1.
Indícios/presságios de tragédia:
. a leitura que D. Madalena realiza do episódio de Inês de Castro,
incluso n’Os Lusíadas, que motiva a
sua reflexão (no início do acto I), o que alia o seu destino ao final trágico
de Inês;
. os agouros de Telmo, que não acredita na morte de D. João de Portugal,
colocando a hipótese do seu regresso, e que afirma que uma situação ocorrerá
que deixaria claro quem nutria maior amor por Maria naquela casa;
. os pressentimentos de D. Madalena de que um acontecimento funesto irá
atingir a sua família, o que não a deixa viver o seu amor por Manuel de Sousa
de uma forma tranquila, motivando a sua insegurança, a sua angústia e impedindo
a sua felicidade;
. o facto de Manuel de Sousa, antes de pegar fogo ao próprio palácio,
por considerar a resolução dos governantes espanhóis uma afronta, evocar a
morte de seu pai, que caíra “sobre a sua própria espada”, indicando o destino funesto da sua família: “Quem
sabe se eu morrerei nas chamas ateadas por minhas mãos?” (I, 11); por outro
lado, o seu acto irá motivar a aproximação da família de um espaço que
pertencera a D. João de Portugal e que a ele está ligado metonimicamente;
. as folhas das flores que Maria traz consigo secam;
. os sonhos e as visões de Maria (motivadas pelo seu temperamento
romântico, pela imaginação e aguçadas pela tuberculose), dado o seu carácter
negativo e o facto de a impedirem de dormir, remetem, igualmente, para a
ocorrência de um acontecimento funesto; às visões da personagem, acrescenta-se
a sua intuição e a sua compreensão precoce das coisas;
. a simbologia da sexta-feira, considerada por D. Madalena como um dia
aziago e fatal;
. o sebastianismo de Maria e de Telmo indica a hipótese de regresso de
D. João de Portugal que, tal como D. Sebastião, desaparecera na batalha de
Alcácer Quibir;
. os indícios de tuberculose de Maria: a febre, as mãos que queimam, as
rosetas nas faces e o ouvido apuradíssimo;
. a leitura que Maria faz da Menina
e Moça (obra de Bernardim Ribeiro – “Menina e moça me levaram de casa de
meu pai”) indicia a sua separação da família (acto II, cena 2);
. a visita que Maria e Manuel fazem a Soror Joana (acto II), que fora
casada com D. Luís de Portugal – o casal decidira, em determinado momento da
sua vida, abandonar o mundo e recolher-se num convento;
. as alterações da decoração dos espaços físicos: no acto I; encontramos
um ambiente alegre e aberto ao exterior, que será substituído nos segundo e
terceiro actos por uma decoração melancólica e soturna;
. a localização dos acontecimentos da peça ao início da noite ou de
noite (acto I: “É no fim da tarde”; acto II: “É alta noite”);
. os elementos simbólicos ao nível do espaço físico:
- os retratos de Manuel de Sousa, Camões e D. João;
- a substituição do retrato de Manuel pelo de D. João, aliada à substituição de espaço, é um sinal que D. Madalena interpreta como fatal;
- a substituição do retrato de Manuel pelo de D. João, aliada à substituição de espaço, é um sinal que D. Madalena interpreta como fatal;
- o facto de o retrato de Manuel de
Sousa ser consumido pelo fogo durante o incêndio por si ateado;
- a mudança do palácio de Manuel de Sousa para o de D. João de Portugal.
- a mudança do palácio de Manuel de Sousa para o de D. João de Portugal.
2. A
existência de poucas personagens em cena, todas de estrato social elevado e de
carácter nobre.
3.
A acção sintética – convergência progressiva de um número pouco
significativo de acções para a acção trágica.
4.
A condensação/concentração do
tempo em que decorre a acção.
5.
A concentração dos espaços (em
número reduzido).
6. Cumprimento (ainda que incompleto) da lei das três unidades:
unidade de acção, unidade de espaço (incompleta, porque na peça existem três
espaços distintos) e unidade de tempo.
7. Ambiente trágico e solenidade clássica.
8. As reminiscências do coro da tragédia clássica, através das
personagens Frei Jorge e Telmo – o coro tinha a função de anunciar e comentar
as acções.
9. Os momentos de retardamento.
10. A existência, desde o início, de um clima de
fatalidade que o ominoso da recorrência de acontecimentos à sexta-feira e
do espaço do palácio de D. João de Portugal adensa e asfixia. Tudo deixa prever
a catástrofe; nada há de supérfluo.
11. A ananké (Destino): as personagens são vítimas
do Destino inexorável que se “diverte” a “brincar” com as suas vidas, antes de
sobre elas se abater irremediavelmente. Assim, é o destino que proporciona a
ausência de D. João e que motiva a mudança da família para o palácio deste; é o
Destino que faz com que os governadores espanhóis escolham o palácio de Manuel
de Sousa para aí se instalarem, o que o leva a incendiar a sua própria casa; é
o Destino que mantém D. João prisioneiro durante 21 anos e lhe permite regressar
ao lar, após esse período, facto que dará origem à tragédia.
12. A hybris (o desafio):
. de D.
Madalena:
-» contra as leis e os direitos da família:
- “pecado”/adultério no coração: amou
Manuel de Sousa desde a primeira vez que o viu, ainda D. João era vivo;;
- consumação do “pecado” pelo casamento com Manuel
de Sousa – ela não tem a certeza absoluta da morte do primeiro marido;
- profanação de um sacramento – o
casamento;
- bigamia;
- impiedade;
. de Manuel
de Sousa Coutinho:
-» revolta contra as autoridades de Lisboa,
recusando-se a recebê-las no seu palácio (I, 8, 11 e 12; II, 1);
-» desafia o Destino ao incendiar o
próprio palácio (I, 11 e 12);
-» recusa o perdão dos governadores,
“se ele quisesse dizer que o fogo tinha pegado por acaso” (II, 1);
-» inconscientemente, participa da hybris
de sua esposa:
- colabora na mentira;
- profana um sacramento;
- comete adultério;
- passa a viver em bigamia;
- usurpa o lugar que pertence, de direito, a D. João
de Portugal;
. de D. João
de Portugal:
-» abandona a esposa/família, ainda que
o faça por ideais nobres (acompanhar o rei à guerra, em defesa do reino e da
Fé);
-» o abandono da esposa é um crime
contra as leis e os direitos da família, porque a destrói – é um crime de
impiedade;
-» embora vivo, depois da batalha, fica
prisioneiro, é levado cativo para Jerusalém. E, durante 21 anos, não dá
notícias da sua existência, embora contra sua vontade;
-» aparece quando todos o julgavam
morto, arrastando consigo a tragédia;
. de Maria
de Noronha:
-» a interrupção inesperada e violenta
das cerimónias religiosas constitui profanação (II, 11);
-» a insolência e a blasfémia contra
Deus: “Que Deus é esse que está nesse altar, e quer roubar o pai e a mãe a sua
filha?”;
-» a insolência contra os ministros
sagrados nas suas funções: “Vós quem sois, espectros fatais?... quereis-mos
tirar dos meus braços?”;
-» a revolta contra D. João de Portugal
– contra os direitos deste à esposa, à família, à própria vida, direitos
baseados na lei divina e nas leis humanas: “... que me importa a mim com o
outro? Que morresse ou não, que esteja com os mortos ou com os vivos, que se
fique na cova ou que ressuscite para me matar?”;
-» a invocação de morte violenta sobre
si própria: “Mate-me, mate-me, se quer...”;
-» o desprezo pelas leis divinas e
humanas – o amor e a ternura com que tinha sido criada não suprem a ilegitimidade
do matrimónio dos pais;
-» a tentativa de renegar o seu estado
de filha ilegítima;
-» a revolta contra a profissão
religiosa dos pais;
-» a incitação dos pais a mentir:
“Pobre mãe! Tu não podes... coitada!... não tens ânimo... Nunca mentiste? Pois
mente agora para salvar a honra da tua filha, para que lhe não tirem o nome de
seu pai.”;
. de Telmo Pais:
-» afeiçoa-se a Maria;
-» relativamente a D. João:
- perjúrio e repúdio do amigo e “filho”;
- desejo de que ele tivesse morrido,
para não obstar à felicidade e à vida de Maria.
13.
O agón (conflito):
. de D.
Madalena:
. interior,
de consciência (I, 1):
- personalidade aparente, feliz, ligada a Manuel de
Sousa pelo amor-paixão;
- personalidade real ou oculta, infeliz
ou “desgraçada”, ligada a D. João pela memória do passado, pelo remorso do
presente;
. contínuo e
crescente;
. com outras
personagens:
- com Telmo (I, 2): D. Madalena não
segue o conselho de esperar o regresso de D. João, anunciado n acarta
profética, escrita na madrugada da batalha de Alcácer Quibir;
- com Maria (I, 3): os segredos, os
mistérios, os cuidados e sobressaltos que os pais manifestam relativamente a si
e cuja razão ela desconhece;
- com Manuel de Sousa (I, 7 e 8): a
necessidade de mudança para o palácio de D. João após ele ter incendiado o seu
próprio lar;
- com D. João de Portugal:
. a consciência atormentada e o remorso de D. Madalena
(I, 1);
. as conversas com Telmo (I, 2);
. as reacções de aflição, sublinhadas
pelas lágrimas, sempre que Maria se refere à crença da sobrevivência e possível
regresso de D. Sebastião (I, 3);
. a relutância de voltar a viver no
palácio de D. João (I, 7 e 8);
. a reacção tida ao chegar ao palácio de
D. João (II, 1);
. a “confissão” a Frei Jorge (II, 10);
. de Manuel
de Sousa Coutinho:
. não possui
conflito de consciência;
. não entra
em conflito com outras personagens, excepto com os governadores;
. a sua hybris
desencadeia e agudiza os conflitos das outras personagens;
. de D. João
de Portugal:
. alimenta
os conflitos dos outros:
- com D. Madalena: a consciência atormentada pelos
remorsos;
- com Telmo:
. a perda do aio por causa de Maria;
. a luta contra a resistência de Telmo à
sua ordem de mentir para salvar D. Madalena;
- com Manuel de Sousa:
. pela felicidade de ter uma filha;
. por se sentir espoliado por ele e por D. Madalena:
“Tiraram-me tudo”;
- com Maria:
. pelo simples facto de ter nascido;
. por o ter expulsado do coração de Telmo;
. agudiza
todos os conflitos com o seu regresso;
. de Telmo
Pais:
. conflito de consciência: a incompatibilidade entre o amor a D. João e
o amor a Maria (III, 4);
. mantém um conflito com outras personagens:
- com D. Madalena (I, 2):
. desaprova o casamento com Manuel de
Sousa, baseado nos dizeres da carta profética de D. João, escrita na madrugada
da batalha, e na superstição de que, se ele voltasse e aparecesse a D.
Madalena, não se iria embora sem lhe aparecer também;
. daí vieram os “ciúmes”, os agouros, os
“futuros”;
. o conflito com D. Madalena fica sempre
sem solução;
- com Maria (I, 2):
. a princípio, não a podia ver, por
causa do seu nascimento em berço ilegítimo (“Digna de nascer em melhor
estado”);
. o conflito com Maria termina, porque
ela acabou por o cativar;
. novo conflito (II, 1), no entanto, se
pode observar nas evasivas, nas meias-ver-dades, nas reticências, na relutância
em revelar a identidade da personagem do retrato;
. é Manuel de Sousa quem identifica essa
personagem (II, 2);
- com Manuel de Sousa (I, 2):
. apesar das qualidades que lhe reconhece, é, em sua
opinião, inferior a D. João;
. por conta deste tem “ciúmes” e alguma aversão por o
considerar um intruso;
. o conflito resolve-se quando Manuel de
Sousa o cativa pelos actos de resistência aos governadores, que culminam com o
incêndio do próprio palácio (I, 7, 8 e 12), chegando mesmo a admirá-lo;
- com D. João de Portugal (III, 4 e 5):
. o amor a D. Maria venceu o amor a D. João;
. por isso, chega a oferecer a sua vida
em troca da vida “daquele anjo” e a desejar a morte de D. João;
. de Maria
de Noronha:
. não tem
conflito;
. conflito
com outras personagens:
- com D. Madalena:
. a propósito da sobrevivência e do
regresso de D. Sebastião (I, 3): D. Madalena não acredita nestes factos,
enquanto Maria acredita;
. a desconfiança de que a mãe oculta
alguma coisa muito importante (I, 4);
. não pode cumprir as esperanças nela
postas (I, 4);
. por isso, desejaria ter um irmão (I,
4);
- com Manuel de Sousa:
. duvida do patriotismo do pai (I, 3),
por causa das atitudes que ele toma ao ouvir falar de D. Sebastião;
. no entanto, a hipótese não tem
fundamento;
- com os governantes de Lisboa (I, 5): a
resistência à tirania, concretizada na ideia de lutar e organizar a defesa,
para que os governadores não entrem no seu palácio;
- com Telmo (II, 1), a propósito da
identidade da personagem do retrato:
. as meias-verdades, as evasivas de
Telmo, que a todo o transe pretende ocultar-lhe o nome do cavaleiro retratado;
. os indícios observados por Maria, nos
momentos que passou ali mesmo com a mãe, no dia da mudança para este palácio; e
a intuição do segredo e a persistência em a manterem na ignorância daquele
“mistério”;
- com D. João de Portugal:
-» antes da mudança de palácio (I, 4):
. pressente intuitivamente que alguém,
fazendo sofrer a mãe, também não a deixa ser feliz;
. por isso, procura uma resposta, com os
meios de que dispõe: a capacidade de “ler nas estrelas” e os sonhos e visões;
-» depois da mudança (II, 1 e 2):
. fica a saber, a partir da atitude da
mãe, que a figura representada no retrato e de quem ignora a identidade, é esse
alguém, causador de todos os sofrimentos;
. daí a curiosidade e a persistência das
perguntas a Telmo até à revelação da identidade do retratado; no entanto, ela
já o sabia “de um saber cá de dentro”;
-» por fim (III, 11 e 12):
. revela que sempre houve alguém
a interpor-se, entre ela e a mãe, entre ela e o pai, por intermédio da figura
simbólica de um anjo vingador: “Mãe, mãe, eu bem o sabia... nunca to disse, mas
sabia-o; tinha-mo dito aquele anjo que descia com uma espada de chamas na mão,
e a atravessava entre mim e ti, que me arrancava dos teus braços quando eu
adormecia neles... que me fazia chorar quando meu pai ia beijar-me no teu
colo”;
. identifica-o: “É aquela voz, é ele, é
ele!”.
14.
O pathos (o sofrimento):
. D.
Madalena de Vilhena:
- sofrimento por causa do adultério;
- sofrimento pela incerteza da sorte do primeiro
marido;
- sofrimento violento pela volta do primeiro marido;
- sofrimento cruel após conhecimento da existência do
primeiro marido:
. pela perda do marido;
. pela perda de Maria;
. Manuel de
Sousa Coutinho:
- sofre a angústia pela situação presente e futura da
filha (III, 1);
- sofre a angústia pela situação da sua mulher (III,
8);
. D. João de
Portugal:
- sofre o esquecimento a que foi votado;
- sofre pelo casamento de sua mulher;
- sofre por não poder travar a marcha do destino (III,
2);
. Maria de
Noronha:
- sofre fisicamente: tuberculose;
- sofre psicologicamente:
. não obtém resposta a muitos agouros;
. sofre a vergonha da ilegitimidade;
. Telmo
Pais:
- sofre pela dúvida constante que o assalta acerca da
morte de D. João de Portugal;
- sofre hesitando entre a fidelidade a D. João e a
Manuel de Sousa;
- sofre a situação de Maria.
15. A anagnórise (o reconhecimento – II, 15): o
reconhecimento do Romeiro como D. João de Portugal.
16. O clímax: a chegada do Romeiro e a sua
identificação.
17. As peripécias:
- o incêndio do palácio de Manuel de Sousa;
- a mudança para o palácio de D. João;
- a chegada do Romeiro;
- a tomada de hábito de D. Madalena e Manuel de Sousa;
- a morte de Maria.
18. A catástrofe:
- D. Madalena:
. causada
pelo regresso de D. João:
-» morte psicológica;
-» separação do marido;
-» profissão religiosa;
. salvação
pela purificação: torna-se a irmã Sóror Madalena das Chagas;
- Manuel de Sousa:
. morte
psicológica:
-» separação da esposa;
-» separação do mundo;
-» profissão religiosa;
. glória
futura de escritor ® Frei Luís de Sousa: glória de santo;
- D. João de Portugal:
. morte
psicológica:
-» separação da mulher;
-» a situação irremediável do anonimato;
- Maria de Noronha:
. morte
física;
. vai para o
céu;
- Telmo Pais: não poderá resistir a
tantos desgostos e, tal como D. João, cairá no rio do esquecimento.
19. Tal como era lei na tragédia grega, tudo isto iria
despertar nos espectadores o terror (fobos) e a piedade (éleos)
purificantes – a catarse. A catarse (purificação) realiza-se através do
castigo: o casal ingressa num convento, renunciando às paixões mundanas, Maria
morre de vergonha por causa da sua ilegitimidade e ascende, pela sua inocência,
ao espaço celeste.
Subscrever:
Mensagens
(
Atom
)