Português: Características trágicas de Frei Luís de Sousa

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Características trágicas de Frei Luís de Sousa

1. Indícios/presságios de tragédia:

. a leitura que D. Madalena realiza do episódio de Inês de Castro, incluso n’Os Lusíadas, que motiva a sua reflexão (no início do acto I), o que alia o seu destino ao final trágico de Inês;

. os agouros de Telmo, que não acredita na morte de D. João de Portugal, colocando a hipótese do seu regresso, e que afirma que uma situação ocorrerá que deixaria claro quem nutria maior amor por Maria naquela casa;

. os pressentimentos de D. Madalena de que um acontecimento funesto irá atingir a sua família, o que não a deixa viver o seu amor por Manuel de Sousa de uma forma tranquila, motivando a sua insegurança, a sua angústia e impedindo a sua felicidade;

. o facto de Manuel de Sousa, antes de pegar fogo ao próprio palácio, por considerar a resolução dos governantes espanhóis uma afronta, evocar a morte de seu pai, que caíra “sobre a sua própria espada”, indicando o destino funesto da sua família: “Quem sabe se eu morrerei nas chamas ateadas por minhas mãos?” (I, 11); por outro lado, o seu acto irá motivar a aproximação da família de um espaço que pertencera a D. João de Portugal e que a ele está ligado metonimicamente;

. as folhas das flores que Maria traz consigo secam;

. os sonhos e as visões de Maria (motivadas pelo seu temperamento romântico, pela imaginação e aguçadas pela tuberculose), dado o seu carácter negativo e o facto de a impedirem de dormir, remetem, igualmente, para a ocorrência de um acontecimento funesto; às visões da personagem, acrescenta-se a sua intuição e a sua compreensão precoce das coisas;

. a simbologia da sexta-feira, considerada por D. Madalena como um dia aziago e fatal;

. o sebastianismo de Maria e de Telmo indica a hipótese de regresso de D. João de Portugal que, tal como D. Sebastião, desaparecera na batalha de Alcácer Quibir;

. os indícios de tuberculose de Maria: a febre, as mãos que queimam, as rosetas nas faces e o ouvido apuradíssimo;

. a leitura que Maria faz da Menina e Moça (obra de Bernardim Ribeiro – “Menina e moça me levaram de casa de meu pai”) indicia a sua separação da família (acto II, cena 2);

. a visita que Maria e Manuel fazem a Soror Joana (acto II), que fora casada com D. Luís de Portugal – o casal decidira, em determinado momento da sua vida, abandonar o mundo e recolher-se num convento;

. as alterações da decoração dos espaços físicos: no acto I; encontramos um ambiente alegre e aberto ao exterior, que será substituído nos segundo e terceiro actos por uma decoração melancólica e soturna;

. a localização dos acontecimentos da peça ao início da noite ou de noite (acto I: “É no fim da tarde”; acto II: “É alta noite”);

. os elementos simbólicos ao nível do espaço físico:
- os retratos de Manuel de Sousa, Camões e D. João;
- a substituição do retrato de Manuel pelo de D. João, aliada à substituição de espaço, é um sinal que D. Madalena interpreta como fatal;
- o facto de o retrato de Manuel de Sousa ser consumido pelo fogo durante o incêndio por si ateado;
- a mudança do palácio de Manuel de Sousa para o de D. João de Portugal.

2. A existência de poucas personagens em cena, todas de estrato social elevado e de carácter nobre.

3. A acção sintética – convergência progressiva de um número pouco significativo de acções para a acção trágica.

4. A condensação/concentração do tempo em que decorre a acção.

5. A concentração dos espaços (em número reduzido).

6. Cumprimento (ainda que incompleto) da lei das três unidades: unidade de acção, unidade de espaço (incompleta, porque na peça existem três espaços distintos) e unidade de tempo.

7. Ambiente trágico e solenidade clássica.

8. As reminiscências do coro da tragédia clássica, através das personagens Frei Jorge e Telmo – o coro tinha a função de anunciar e comentar as acções.

9. Os momentos de retardamento.

10. A existência, desde o início, de um clima de fatalidade que o ominoso da recorrência de acontecimentos à sexta-feira e do espaço do palácio de D. João de Portugal adensa e asfixia. Tudo deixa prever a catástrofe; nada há de supérfluo.

11. A ananké (Destino): as personagens são vítimas do Destino inexorável que se “diverte” a “brincar” com as suas vidas, antes de sobre elas se abater irremediavelmente. Assim, é o destino que proporciona a ausência de D. João e que motiva a mudança da família para o palácio deste; é o Destino que faz com que os governadores espanhóis escolham o palácio de Manuel de Sousa para aí se instalarem, o que o leva a incendiar a sua própria casa; é o Destino que mantém D. João prisioneiro durante 21 anos e lhe permite regressar ao lar, após esse período, facto que dará origem à tragédia.

12. A hybris (o desafio):
. de D. Madalena:
-» contra as leis e os direitos da família:
- “pecado”/adultério no coração: amou Manuel de Sousa desde a primeira vez que o viu, ainda D. João era vivo;;
- consumação do “pecado” pelo casamento com Manuel de Sousa – ela não tem a certeza absoluta da morte do primeiro marido;
- profanação de um sacramento – o casamento;
- bigamia;
- impiedade;
. de Manuel de Sousa Coutinho:
-» revolta contra as autoridades de Lisboa, recusando-se a recebê-las no seu palácio (I, 8, 11 e 12; II, 1);
-» desafia o Destino ao incendiar o próprio palácio (I, 11 e 12);
-» recusa o perdão dos governadores, “se ele quisesse dizer que o fogo tinha pegado por acaso” (II, 1);
-» inconscientemente, participa da hybris de sua esposa:
- colabora na mentira;
- profana um sacramento;
- comete adultério;
- passa a viver em bigamia;
- usurpa o lugar que pertence, de direito, a D. João de Portugal;
. de D. João de Portugal:
-» abandona a esposa/família, ainda que o faça por ideais nobres (acompanhar o rei à guerra, em defesa do reino e da Fé);
-» o abandono da esposa é um crime contra as leis e os direitos da família, porque a destrói – é um crime de impiedade;
-» embora vivo, depois da batalha, fica prisioneiro, é levado cativo para Jerusalém. E, durante 21 anos, não dá notícias da sua existência, embora contra sua vontade;
-» aparece quando todos o julgavam morto, arrastando consigo a tragédia;
. de Maria de Noronha:
-» a interrupção inesperada e violenta das cerimónias religiosas constitui profanação (II, 11);
-» a insolência e a blasfémia contra Deus: “Que Deus é esse que está nesse altar, e quer roubar o pai e a mãe a sua filha?”;
-» a insolência contra os ministros sagrados nas suas funções: “Vós quem sois, espectros fatais?... quereis-mos tirar dos meus braços?”;
-» a revolta contra D. João de Portugal – contra os direitos deste à esposa, à família, à própria vida, direitos baseados na lei divina e nas leis humanas: “... que me importa a mim com o outro? Que morresse ou não, que esteja com os mortos ou com os vivos, que se fique na cova ou que ressuscite para me matar?”;
-» a invocação de morte violenta sobre si própria: “Mate-me, mate-me, se quer...”;
-» o desprezo pelas leis divinas e humanas – o amor e a ternura com que tinha sido criada não suprem a ilegitimidade do matrimónio dos pais;
-» a tentativa de renegar o seu estado de filha ilegítima;
-» a revolta contra a profissão religiosa dos pais;
-» a incitação dos pais a mentir: “Pobre mãe! Tu não podes... coitada!... não tens ânimo... Nunca mentiste? Pois mente agora para salvar a honra da tua filha, para que lhe não tirem o nome de seu pai.”;
. de Telmo Pais:
-» afeiçoa-se a Maria;
-» relativamente a D. João:
- perjúrio e repúdio do amigo e “filho”;
- desejo de que ele tivesse morrido, para não obstar à felicidade e à vida de Maria.

13. O agón (conflito):
. de D. Madalena:
. interior, de consciência (I, 1):
- personalidade aparente, feliz, ligada a Manuel de Sousa pelo amor-paixão;
- personalidade real ou oculta, infeliz ou “desgraçada”, ligada a D. João pela memória do passado, pelo remorso do presente;
. contínuo e crescente;
. com outras personagens:
- com Telmo (I, 2): D. Madalena não segue o conselho de esperar o regresso de D. João, anunciado n acarta profética, escrita na madrugada da batalha de Alcácer Quibir;
- com Maria (I, 3): os segredos, os mistérios, os cuidados e sobressaltos que os pais manifestam relativamente a si e cuja razão ela desconhece;
- com Manuel de Sousa (I, 7 e 8): a necessidade de mudança para o palácio de D. João após ele ter incendiado o seu próprio lar;
- com D. João de Portugal:
. a consciência atormentada e o remorso de D. Madalena (I, 1);
. as conversas com Telmo (I, 2);
. as reacções de aflição, sublinhadas pelas lágrimas, sempre que Maria se refere à crença da sobrevivência e possível regresso de D. Sebastião (I, 3);
. a relutância de voltar a viver no palácio de D. João (I, 7 e 8);
. a reacção tida ao chegar ao palácio de D. João (II, 1);
. a “confissão” a Frei Jorge (II, 10);
. de Manuel de Sousa Coutinho:
. não possui conflito de consciência;
. não entra em conflito com outras personagens, excepto com os governadores;
. a sua hybris desencadeia e agudiza os conflitos das outras personagens;
. de D. João de Portugal:
. alimenta os conflitos dos outros:
- com D. Madalena: a consciência atormentada pelos remorsos;
- com Telmo:
. a perda do aio por causa de Maria;
. a luta contra a resistência de Telmo à sua ordem de mentir para salvar D. Madalena;
- com Manuel de Sousa:
. pela felicidade de ter uma filha;
. por se sentir espoliado por ele e por D. Madalena: “Tiraram-me tudo”;
- com Maria:
. pelo simples facto de ter nascido;
. por o ter expulsado do coração de Telmo;
. agudiza todos os conflitos com o seu regresso;
. de Telmo Pais:
. conflito de consciência: a incompatibilidade entre o amor a D. João e o amor a Maria (III, 4);
. mantém um conflito com outras personagens:
- com D. Madalena (I, 2):
. desaprova o casamento com Manuel de Sousa, baseado nos dizeres da carta profética de D. João, escrita na madrugada da batalha, e na superstição de que, se ele voltasse e aparecesse a D. Madalena, não se iria embora sem lhe aparecer também;
. daí vieram os “ciúmes”, os agouros, os “futuros”;
. o conflito com D. Madalena fica sempre sem solução;
- com Maria (I, 2):
. a princípio, não a podia ver, por causa do seu nascimento em berço ilegítimo (“Digna de nascer em melhor estado”);
. o conflito com Maria termina, porque ela acabou por o cativar;
. novo conflito (II, 1), no entanto, se pode observar nas evasivas, nas meias-ver-dades, nas reticências, na relutância em revelar a identidade da personagem do retrato;
. é Manuel de Sousa quem identifica essa personagem (II, 2);
- com Manuel de Sousa (I, 2):
. apesar das qualidades que lhe reconhece, é, em sua opinião, inferior a D. João;
. por conta deste tem “ciúmes” e alguma aversão por o considerar um intruso;
. o conflito resolve-se quando Manuel de Sousa o cativa pelos actos de resistência aos governadores, que culminam com o incêndio do próprio palácio (I, 7, 8 e 12), chegando mesmo a admirá-lo;
- com D. João de Portugal (III, 4 e 5):
. o amor a D. Maria venceu o amor a D. João;
. por isso, chega a oferecer a sua vida em troca da vida “daquele anjo” e a desejar a morte de D. João;
. de Maria de Noronha:
. não tem conflito;
. conflito com outras personagens:
- com D. Madalena:
. a propósito da sobrevivência e do regresso de D. Sebastião (I, 3): D. Madalena não acredita nestes factos, enquanto Maria acredita;
. a desconfiança de que a mãe oculta alguma coisa muito importante (I, 4);
. não pode cumprir as esperanças nela postas (I, 4);
. por isso, desejaria ter um irmão (I, 4);
- com Manuel de Sousa:
. duvida do patriotismo do pai (I, 3), por causa das atitudes que ele toma ao ouvir falar de D. Sebastião;
. no entanto, a hipótese não tem fundamento;
- com os governantes de Lisboa (I, 5): a resistência à tirania, concretizada na ideia de lutar e organizar a defesa, para que os governadores não entrem no seu palácio;
- com Telmo (II, 1), a propósito da identidade da personagem do retrato:
. as meias-verdades, as evasivas de Telmo, que a todo o transe pretende ocultar-lhe o nome do cavaleiro retratado;
. os indícios observados por Maria, nos momentos que passou ali mesmo com a mãe, no dia da mudança para este palácio; e a intuição do segredo e a persistência em a manterem na ignorância daquele “mistério”;
- com D. João de Portugal:
-» antes da mudança de palácio (I, 4):
. pressente intuitivamente que alguém, fazendo sofrer a mãe, também não a deixa ser feliz;
. por isso, procura uma resposta, com os meios de que dispõe: a capacidade de “ler nas estrelas” e os sonhos e visões;
-» depois da mudança (II, 1 e 2):
. fica a saber, a partir da atitude da mãe, que a figura representada no retrato e de quem ignora a identidade, é esse alguém, causador de todos os sofrimentos;
. daí a curiosidade e a persistência das perguntas a Telmo até à revelação da identidade do retratado; no entanto, ela já o sabia “de um saber cá de dentro”;
-» por fim (III, 11 e 12):
. revela que sempre houve alguém a interpor-se, entre ela e a mãe, entre ela e o pai, por intermédio da figura simbólica de um anjo vingador: “Mãe, mãe, eu bem o sabia... nunca to disse, mas sabia-o; tinha-mo dito aquele anjo que descia com uma espada de chamas na mão, e a atravessava entre mim e ti, que me arrancava dos teus braços quando eu adormecia neles... que me fazia chorar quando meu pai ia beijar-me no teu colo”;
. identifica-o: “É aquela voz, é ele, é ele!”.

14. O pathos (o sofrimento):
. D. Madalena de Vilhena:
- sofrimento por causa do adultério;
- sofrimento pela incerteza da sorte do primeiro marido;
- sofrimento violento pela volta do primeiro marido;
- sofrimento cruel após conhecimento da existência do primeiro marido:
. pela perda do marido;
. pela perda de Maria;

. Manuel de Sousa Coutinho:
- sofre a angústia pela situação presente e futura da filha (III, 1);
- sofre a angústia pela situação da sua mulher (III, 8);
. D. João de Portugal:
- sofre o esquecimento a que foi votado;
- sofre pelo casamento de sua mulher;
- sofre por não poder travar a marcha do destino (III, 2);
. Maria de Noronha:
- sofre fisicamente: tuberculose;
- sofre psicologicamente:
. não obtém resposta a muitos agouros;
. sofre a vergonha da ilegitimidade;
. Telmo Pais:
- sofre pela dúvida constante que o assalta acerca da morte de D. João de Portugal;
- sofre hesitando entre a fidelidade a D. João e a Manuel de Sousa;
- sofre a situação de Maria.

15. A anagnórise (o reconhecimento – II, 15): o reconhecimento do Romeiro como D. João de Portugal.

16. O clímax: a chegada do Romeiro e a sua identificação.

17. As peripécias:
- o incêndio do palácio de Manuel de Sousa;
- a mudança para o palácio de D. João;
- a chegada do Romeiro;
- a tomada de hábito de D. Madalena e Manuel de Sousa;
- a morte de Maria.

18. A catástrofe:
- D. Madalena:
. causada pelo regresso de D. João:
-» morte psicológica;
-» separação do marido;
-» profissão religiosa;
. salvação pela purificação: torna-se a irmã Sóror Madalena das Chagas;
- Manuel de Sousa:
. morte psicológica:
-» separação da esposa;
-» separação do mundo;
-» profissão religiosa;
. glória futura de escritor ® Frei Luís de Sousa: glória de santo;
- D. João de Portugal:
. morte psicológica:
-» separação da mulher;
-» a situação irremediável do anonimato;
- Maria de Noronha:
. morte física;
. vai para o céu;
- Telmo Pais: não poderá resistir a tantos desgostos e, tal como D. João, cairá no rio do esquecimento.

19. Tal como era lei na tragédia grega, tudo isto iria despertar nos espectadores o terror (fobos) e a piedade (éleos) purificantes – a catarse. A catarse (purificação) realiza-se através do castigo: o casal ingressa num convento, renunciando às paixões mundanas, Maria morre de vergonha por causa da sua ilegitimidade e ascende, pela sua inocência, ao espaço celeste.

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