Antes de iniciar a análise
propriamente dita do texto convém esclarecer quem são as entidades mitológicas
nele referidas.
Assim, Pã era o deus dos pastores da
região da Arcádia (região central do Peloponeso) e representava o poder e a
fecundidade da natureza selvagem, com fortes implicações sexuais. Era
representado com orelhas, chifres e pernas de bode. Além disso, como era amante
da música, transportava consigo sempre uma flauta. Por sua vez, os Romanos
identificaram-no como o deus itálico Fauno. Uma lenda conta que, no reinado do
imperador romano Tibério (século I d. C.), o piloto de um navio ouviu uma voz
que lhe ordenou que anunciasse a seguinte mensagem: «o Grande Pã está morto».
Quando o marinheiro obedeceu, toda a natureza começou a gemer. Frequentemente,
é associado à palavra grega “pan”,
que significa “tudo”, uma associação
errada, no entanto deu origem à ideia de que Pã simbolizava «o Grande Todo», ou
seja, o poder universal da vida.
Por seu turno, Apolo era o deus do
sol e da música, irmão gémeo de Artemis, deusa da lua e da caça, filho de Zeus
e da ninfa Leto. Por outro lado, Apolo amava a música, tendo sido presenteado
com uma lira por parte de Hermes, feita a partir da carapaça de uma tartaruga e
de tripas de gado.
Quanto a Ceres, era, entre os
romanos, a deusa das colheiras e do cereal, o equivalente a Deméter entre os
gregos.
O deus Pã simboliza o neoplatonismo
para os neoplatónicos e para os cristãos, daí a sua «adoção» por parte de
Ricardo Reis, em cuja filosofia existencial – a do paganismo da decadência ‑ se
inscreve a ideia da sobrevivência dos deuses pagãos (“O deus Pã não morreu” –
v. 1), bem como no programa do neopaganismo (de Fernando Pessoa ele mesmo e dos
seus heterónimos Alberto Caeiro, Ricardo Reis e António Mora).
O neopaganismo sustentava o reatar
da alma grega na arte, na religião e nas instituições políticas, ao considerar
que nada, depois dos gregos clássicos, pode igualar a sua civilização. Neste
sentido, o cristianismo é visto como um retrocesso, um atraso civilizacional.
Neste poema, Cristo é apresentado
num plano de igualdade com os deuses pagãos referidos. Ele não “matou outros
deuses”, é apenas “um deus a mais, / Talvez um que faltava”, o que indicia que
é um deus dispensável, pois é “apenas mais um”. Assim, a noção do Cristianismo
segundo a qual Cristo seria o único e verdadeiro deus é implicitamente rejeitada,
afirmando-se, pelo contrário, que todos os deuses pagãos antigos permanecem.
Cristo, de facto, “não matou outros deuses”, é apenas “ Quanto ao ser humano,
falta-lhe reconhecer essa permanência dos deuses pagãos.
A relação entre o ser humano e os
deuses carateriza-se pela distância e pela indiferença, dado que estes estão “Cheios
de eternidade / E desprezo por nós” (vv- 18 e 19).
O perfil dos deuses é traçado com
clareza: são “claros e calmos” (v. 17), eternos / imortais, regem o mundo (“Trazendo
dia e a noite / E as colheitas douradas”), mas não por causa dos seres humanos
(“Sem ser para nos dar / O dia e a noite e o trigo”, antes por razões que não
estão ao alcance da compreensão humana e alheias à sua vontade (“por outro e
divino / Propósito casual” – vv. 24-25).
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