De
acordo com os estudiosos de José Saramago, a sua obra compreende três grandes fases: a fase da “portugalidade
intensa”[1],
a fase universal
e a fase dos romances
fábula.
1.ª fase (1977-1991) – “Portugalidade intensa”:
- romances
que, direta ou indiretamente, se relacionam com a cultura e com a História
portuguesas;
- localização
da ação no tempo e no espaço;
- recurso à
nomeação de personagens.
Esta primeira
fase decorre entre a publicação de Manual
de Pintura e Caligrafia, em 1977, e O
Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), abrangendo “um conjunto de romances
que, direta ou indiretamente, se relacionam com a cultura e com a História
portuguesas”[2]. Dela
faz parte o Evangelho, pois, apesar
de Portugal ser um estado laico, reconhece-se a primazia da tradição religiosa
judaico-cristã.
Trinta
anos depois da publicação de Terra do
Pecado, obra de que Saramago sempre procurou distanciar-se, conforme
confessou a Carlos Reis em Diálogos com
José Saramago, Manual de Pintura e
Caligrafia aparenta ser uma “espécie de laboratório em que o autor ensaia
as grandes características da sua prosa.
A saber,
. a emergência de(a) M.(ulher) como mola de conhecimento,
. o ateísmo e as consequentes críticas à religião,
. o empenho ideológico,
. a mistura de subgéneros literários,
. o abandono do registo sintático-discursivo linear,
. o uso peculiar da pontuação, apesar
de, no que toca a este ponto, Saramago considerar que a mudança se verifica com
o romance seguinte, Levantado do Chão:
“Até que, em 79, decidi que tinha de o escrever. E comecei sem nada de especial
do ponto de vista formal. E, se eu tivesse continuado por aí, não teria dado
com certeza nascimento ou origem ao que se pode chamar o meu modo peculiar de
narrar – não quero dizer estilo. Então aconteceu-me um daqueles momentos muito
belos que acontecem, quando acontecem. Aí a páginas vinte e tal, sem ter
pensado nisso, começo a escrever libertando-me de toda essa história da
pontuação, escrevendo como depois o livro saiu. E a tal ponto que, quando o
acabei, tive de voltar às vinte e tal páginas iniciais para pô-las de acordo
com o resto […]. Julgo que foi o estar a contar as histórias que me tinham sido
contadas, como se estivesse a contar a quem me contou, que fez com que a
narração ganhasse aquela espécie de «vou agora contar-vos, pelas minhas
próprias palavras, aquilo que vocês me contaram». Sucedeu porque foi como
se eu tivesse dito àqueles homens e mulheres, que eu conheci no Alentejo:
«Agora sentem-se aí, que eu vou contar-vos a vossa história.”[3].
Atente-se,
relativamente à questão da pontuação, o que Saramago já havia dito em Cadernos de Lanzarote – Diário II: “Todas
as características da minha técnica narrativa atual (eu preferiria dizer:
do meu estilo) provêm de um princípio básico segundo o qual o dito se destina a ser ouvido. Quero com isto significar que é como narrador oral que me
vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem
lidas como para serem ouvidas. Ora, o narrador oral não precisa de pontuação,
fala como se estivesse a compor música e usa os mesmos elementos que o músico:
sons e pausas, altos e baixos, uns, breves ou longas, outras. Certas
tendências, que reconheço e confirmo (estruturas barrocas, oratória circular,
simetria de elementos), suponho que me vêm de uma certa ideia de um discurso
oral tomado como música.”.
Outra
das razões que justifica a inserção do Evangelho
nesta primeira fase tem a ver com o facto de ser possível a localização exata
da ação no espaço e no tempo, algo que já não sucede com os romances Ensaio sobre a Cegueira (1995) e Ensaio sobre a Lucidez (2004). Por outro
lado, o autor continua a recorrer à nomeação das personagens, um modo de as
individualizar.
2.ª fase (1995-2004) – Ciclo universal:
- ressimplificação formal;
- questionação sobre “o que é
ser-se humano”;
- apelo à imaginação do leitor
através
. do anonimato das personagens;
. da indefinição dos espaços, o que
permite sucessivas relocalizações.
Esta
fase corresponde a uma certa recusa de uma espécie de barroquismo e à
necessidade maior de clareza. Esta inflexão é justificada também pelo desejo de
“saber, no fundo, […] o que é isto de ser-se um ser humano […], é essa coisa
tão simples e que não tem resposta: quem somos?”[4].
Deste modo, as personagens perdem o nome, os enredos são situados em
espaços-tempo indefinidos (não obstantes romances que nos remetem para locais
específicos, como Todos os nomes,
1997), permitindo sucessivas relocalizações, de acordo com a imaginação de cada
leitor.
3.ª fase (2005-2009) – Os romances fábula:
- nova
ressimplificação formal (maior obediência à sintaxe e à pontuação
tradicionais);
- narrativas
mas próximas do conceito de narratividade;
- predomínio
de uma linha cómica, sem condicionar as preocupações ideológicas do autor.
A nova
ressimplificação formal, marcada pelos traços atrás identificados (maior
obediência à sintaxe e à pontuação tradicionais, delinear de uma narrativa mais
próxima do conceito de narratividade), é caracterizada, sobretudo, pela linha
cómica que Saramago introduz nas suas obras, o que não invalida, porém, a
manutenção das suas preocupações ideológicas que perpassam o seu trabalho. Essa
veia crónica não é, todavia, um exclusivo desta 3.ª fase, pois já se encontra
em romances como Memorial do Convento,
Todos os Nomes ou A Jangada de Pedra, seja através da
presença de um tom caricatural e cómico, seja através da introdução de
episódios, comentários ou alusões que tendem a suavizar o tom predominantemente
grave das narrativas. No entanto, parece claro que o tom predominante em José
Saramago é essencialmente sério, recolhido, marcado pelo pessimismo e pelo
desalento, em conexão com as suas preocupações de índole humanista e
humanitária.
Bibliografia:
. O
Ano da Morte de Ricardo Reis, Ana Paula Arnaut;
. Diálogos com José Saramago, Carlos Reis;
.
[1]
Cristopher Rollason (“Saramago and Orwell”, in Adriana Alves de Paula Martins
& Mark Sabine (eds.), In Dialogue
with Saramago: Essays in Comparative Literature). Ver, a propósito, Ana
Paula Arnaut, José Saramago, Lisboa:
Edições 70, pp. 40-43.
[2] Ana
Paula Arnaut, O Ano da Morte de Ricardo
Reis.
[3] Ana
Paula Arnaut, O Ano da Morte de Ricardo
Reis.
[4]
Entrevista a Jefferson del Rios, Beatriz Albuquerque e Michael Laub, “A
terceira palavra”, in Revista Bravo
(São Paulo).
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