Português

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Carácter apoteótico-trágico

          Foi o próprio Sttau Monteiro quem qualificou esta peça como uma apoteose trágica. Partindo desta afirmação, podemos considerar os seguintes aspectos que conferem tragicidade à obra e a aproximam das tragédias clássicas:

  • O tom geral da obra.
  • O carácter excepcional  e nobre das personagens:
- Gomes Freire é um homem corajoso, determinado e defensor intransigente dos ideais de liberdade;
- Matilde é uma mulher de grande nobreza moral que vive um conflito entre os seus sentimentos «humanos» e a progressiva consciencialização do seu dever de verdadeira patriota.
  • A unidade  e simplicidade de acção: tal como sucedia nas tragédias clássicas, Felizmente há Luar! desenvolve-se em torno de uma acção única: prisão, julgamento e morte do general Gomes Freire de Andrade.
  • O carácter apoteótico, quase de homenagem, à figura heróica do general, cuja morte irá manter acesa a chama da esperança do povo português, num final verdadeiramente apologético.
  • O despojamento cénico.
  • A hybris (o desafio):

sábado, 7 de maio de 2011

Personagens

          É possível organizar as personagens em diferentes grupos, de acordo com a didascália inicial:
  • As personagens do poder - "Três conscienciosos governadores do Reino":
                    - D. Miguel, o representante do poder político;
                    - principal Sousa, o representante do poder religioso;
                    - Beresford, o representante do poder militar.

  • Os delatores:
                    - Vicente, "um provocador em vias de promoção";
                    - Andrade Corvo e Morais Sarmento, "dois denunciantes que honraram a classe",
                       cuja existência história se encontra comprovada.
  • As personagens do antipoder:
                    - general Gomes Freire de Andrade, sempre presente embora ausente;
                    - Matilde de Melo, "a companheira de todas as horas";
                    - Sousa Falcão, "o inseparável amigo";
                    - Frei Diogo de Melo, o confessor e amigo do general.
  • O povo:
                    - Manuel, "o mais consciencioso dos populares";
                    - Rita, "a mulher de Manuel";
                    - Os populares, "o pano de fundo permanente".

Contexto (época da acção - 1817)

          Na esteira de Brecht, Sttau Monteiro construiu uma peça a partir de um acontecimento do início do século XIX para, dessa forma, denunciar a situação de ditadura e opressão que se vivia no tempo da escrita da peça (1961). Dito de outra forma, o autor não tenciona prestar uma homenagem aos acontecimentos e às figuras que os protagonizaram em 1817, mas intervir criticamente nos domínios político, social e religioso do princípio dos anos sessenta do século XX. Assim, o século XIX constitui uma metáfora do século XX.


  • A acção da peça decorre no ano de 1817, um período conturbado da nossa História, que precede uma das grandes viragens do país: a Revolução Liberal.
  • Nas vésperas dessa revolução, a situação de Portugal era de crise em todos os sectores.
  • Crise política:
- as recentes invasões francesas tinham deixado o país num estado deplorável;
- a família real e a corte fugiram para o Brasil por causa das invasões francesas;
- esta atitude real suscitou no povo uma sensação de cobardia e de abandono por parte do rei;
- a sede da Monarquia e a capital do Império foram também transferidas para o Brasil;
- as riquezas do estado eram igualmente canalizadas para o Brasil;
- a administração do reino foi entregue a uma tríade: D. Sousa Coutinho, D. Miguel Pereira Forjaz e o oficial inglês William Beresford;
- o auxílio inglês para reorganizar e comandar o exército português (na resistência aos franceses) - Beresford é o símbolo do domínio britânico

Contexto (tempo da escrita)

  • O panorama que se vivia em Portugal em 1961 não era muito diferente do que é descrito em Felizmente há Luar!.
  • O regime político instituído sob a direcção de Salazar e que vigorou em Portugal sem interrupção, embora com alterações de forma e conteúdo, desde 1933 até 1974, apresenta alguns aspectos semelhantes aos regimes ditatoriais instituídos por Benito Mussolini na Itália e por Adolf Hitler na Alemanha.
  • O Estado Novo distinguiu-se pelo seu carácter autoritário, nacionalista, corporativo, imperialista, profundamente católico e anti-marxista, que recusava a formação de partidos e que impedia a luta de classes.
  • Ao longo dos seus quarenta e dois anos de existência, o Estado Novo criou organizações militares para a defesa e propagação dos seus ideais; controlou o ensino e a cultura e colocou a oposição à mercê de poderosos instrumentos de repressão, como a censura e a polícia política.
  • Em 1957, foi assinado, em Roma, o tratado fundador da CEE, tendo surgido, em 1959, a EFTA (Associação Europeia do Comércio Livre), factos que estimularam a oposição à política do Estado Novo de Salazar.
  • Em 1958, Humberto Delgado concorreu à Presidência da República pela oposição democrática, tendo sido derrotado, provavelmente por fraude eleitoral.
  • Em 1959, D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto e feroz opositor do regime salazarista, foi forçado a exilar-se. O número de presos políticos aumentou significativamente até 1960.
  • Em 1961, iniciou-se a guerra colonial, assistindo-se à mobilização de milhares de jovens e ao exílio de outros. Em Maio, os sessenta e dois subscritores do Programa para a Democratização (liberais e homens da esquerda socialista e comunista) foram presos pela PIDE.
  • Em 1962, ocorreram várias greves estudantis, acompanhadas de forte repressão policial.
  • Em 1965, a PIDE assassinou o general Humberto Delgado.
  • Em 25 de Abril de 1974, ocorreu uma revolução que derrubou o Estado Novo e pôs fim à ditadura, implantando a democracia e a liberdade, tendo como precedentes:
a) a guerra colonial;
b) o crescente descontentamento popular, pela falta de liberdade, pela opressão, pela miséria, insegurança, delação..., dando origem à formação de grupos clandestinos de oposição ao regime;
c) o descontentamento de determinados círculos militares, nomeadamente «os capitães».

Tempo histórico

          A acção da peça decorre em 1817 - ainda que seja uma metáfora de 1961 - e contém várias referências ao contexto que se vivia na época:
  • alusão à ausência da família real do país em consequência da sua fuga para o Brasil, em resultado das invasões francesas e de acordo com a combinação prévia com a Inglaterra, em 1807;
  • referências às invasões francesas;
  • a aliança de Portugal com a Inglaterra: os ingleses instalaram-se em terras lusas desde 1808 para reorganizar a sua defesa face à ameaça das invasões francesas, acabando por interferir na governação do reino - daí a presença de Beresford;
  • referências (inúmeras) aos estrangeirados (pág. 33);
  • referência à revolta de Pernambuco, ocorrida em 1817 e que inspirou, de certo modo, a conspiração portuguesa desse mesmo ano (pág. 37);
  • o exercício arbitrário do poder por uma Junta Provisória, que tomou a seu cargo, naturalmente, os negócios do reino;
  • alusão ao crescimento exponencial do clima de descontentamento, de revolta e dos ideais de revolução e liberdade («A polícia não chega para arrancar os pasquins revolucionários das portas das igrejas...» - pág. 40) contra o rei, os ingleses e a regência;
  • referências à Revolução Francesa (pág. 42);
  • a perseguição a todos os liberais;
  • as perseguições políticas constantes, baseadas na delação, no favoritismo e na troca de favores, reprimindo a liberdade de expressão, a circulação de ideias e qualquer tentativa de implantação do liberalismo - o regime absolutista, ainda de direito divino;
  • o clima de recessão económica e de instabilidade social decorrentes das invasões francesas (1807, 1809 e 1810) - referências à miséria do povo e à estratificação social;
  • a repressão contra os conjurados de 1817, levada a cabo pela Junta Provisória;
  • a condenação à morte de Gomes Freire de Andrade, um estrangeirado liberal e militar competente e prestigiado, supostamente envolvido numa conspiração.

Tempo do discurso

          A economia / concentração do tempo da acção implica o recurso frequente a referências ao passado e / ou ao futuro. No entanto, no caso da peça em análise, de um modo geral, elas não têm por objectivo narrar propriamente os acontecimentos, mas ajudar a compreender a importância ou a evolução das situações ou das personagens.


1. O presente

          O presente está intimamente ligado à definição de espaços psicológicos. Neste âmbito, destaca-se o recurso ao monólogo interior (anunciado pela incidência da luz) como processo de caracterização de alguns desses espaços, sobretudo aqueles que, por serem mais inconfessáveis, não podem ser compartilhados. Por exemplo, Beresford apresenta assim os seus receios, nomeadamente o de ser substituído pelo general Gomes Freire de Andrade (pág. 63), enquanto D. Miguel reflecte sobre as suas características de homem de gabinete, incapaz de lidar com o povo (p. 70).


2. O passado

          Através de recuos no tempo, destaca-se o passado do general, contado pelo Antigo Soldado (pp. 18 a 20) e por Matilde (pp. 85, 90, 93, 101, 138) (as lutas, a vida em Paris, etc.), a infância de Vicente (p. 27), bem como o passado de Matilde (pp. 91 e 92).
          O passado recente revela-se igualmente importante. Por exemplo, principal Sousa revela os seus sonhos, que evidenciam a sua consciência pesada e os medos que dominam o seu inconsciente: "Dedos imundos tocam-me as vestes. [...] Estava no Campo de Sant'Ana, subindo ao cadafalso, enquanto à minha volta os gritos do povo me não deixavam, sequer, ouvir a sentença..." (p. 68).
          Assim, as referências ao passado mostram como este condiciona o futuro. É o que sucede quando D. Miguel usa o facto de Andrade Corvo e Morais Sarmento terem pertencido à maçonaria para fazer «chantagem» (pp. 49 e 50).


3. O futuro

          3.1. Desejos para o futuro

          Para compreender as personagens e os seus comportamentos, é importante conhecer os desejos que norteiam os seus objectivos. Vicente recorre à denúncia para obter o cargo de polícia que realizará o seu sonho de bem-estar socioeconómico (pp. 31 e 38). Morais Sarmento e Andrade Corvo planeiam o seu futuro discorrendo sobre as vantagens que a denúncia lhes trará e sobre os inconvenientes sociais dessa traição e modo de os ultrapassar (pp. 45 a 47). Já Beresford revela que é o seu sonho de poder viver em

Tempo da acção

          O tempo da acção refere-se à duração dos acontecimentos retratados na peça e aparece referenciado nas didascálias e / ou falas das personagens.
          Por outro lado, constata-se que os dados relativos ao tempo da acção são escassos, tornando-o concentrado, visando-se assim a intemporalidade da sua mensagem, isto é, a «estória» não é datável, pertence a qualquer tempo.
          Na esteira de Brecht ou Gil Vicente, a passagem do tempo não é linearmente explicitada, visto que as acções se sucedem, bem como os espaços em que são representadas, reduzidas à sua essência, ou simbologia, não sendo marcado o decurso dos dias.
          O tempo narrado não coincide, portanto, com o tempo da acção, o que se comprova facilmente se recordarmos que o retrato de Gomes Freire assenta em referências a momentos importantes da sua vida, como as campanhas militares ou a passagem por Paris, anteriores ao início da acção representada em palco. Com efeito, a época retratada, como já foi dito noutras postagens, é a das revoltas liberais: o general inicia a sua actividade militar em 1782 e é julgado, condenado e enforcado como traidor em 18 de Outubro de 1817; já o tempo da acção é consideravelmente mais reduzido, pois começa num dia não especificado - sabemos que Rita dorme e que chegou tarde, às cinco horas -, numa fase em que as ideias revolucionárias fazem o seu caminho (pp. 35, 67 e 68) e os governadores preparam a sua repressão, e termina, como o tempo narrado, na referida noite de 18 de Outubro de 1817, a única data explicitamente inscrita na peça.
          No primeiro acto, a acção incia-se com a alvorada («São horas de irmos indo, mulher.» - pág. 17), culminando na prisão do general, que ocorreu de noite, de acordo com informações posteriores das personagens. Após um início de peça em que é mais lento e coincide com a descrição da situação de miséria popular e com o retrato de Vicente e dos outros delatores, o ritmo acelera progressivamente, assumindo a pressa dos governadores em esmagarem a agitação revolucionária. A partir daqui, somos confrontados com uma sucessão rápida de entradas e saídas dos denunciantes, que vêm, individualmente, trazer as suas informações, pontuadas por referências temporais que sugerem a rapidez da contra-revolução - «Há dois dias» (pág. 50 e 68), «Ontem à noite» (pág. 60) - num crescendo que se torna alucinante no final do acto, quando os discursos dos três governadores apelando à contra-revolução são apresentados sequencialmente, logo após a tomada de decisão (pp. 73-74), sem qualquer indício temporal.
          O acto segundo coincide com o tempo da repressão sem limites. Os indícios temporais continuam a ser diminutos, porém, através das falas dos populares, sabemos que o acto se inicia na manhã do dia em que o general e os restantes conjurados foram presos, facto que ocorreu na noite precedente e que, historicamente, se localiza no dia 25 de Maio de 1817. Este acto finaliza com a execução do general e dos seus companheiros em 18 de Outubro desse ano (pág. 129), durante uma noite de luar: «Esta praga lhe rogo eu, Matilde de Melo, mulher de Gomes Freire d'Andrade, hoje, 18 de Outubro de 1817». A concentração do tempo está, pois, em consonância com a pressa dos governadores em julgarem e executarem os revoltosos, pretendendo desse modo dar uma lição pública que terminasse de vez com as ideias revolucionárias, bem como com a ânsia de Matilde em conseguir libertar Gomes Freire.
          Embora a falta de indicações temporais possa fazer crer que o tempo da acção é mais curto do que o tempo histórico, tal não é exacto, se atentarmos na fala de Matilde quando afirma que Gomes Freire passou 150 dias na masmorra (pág. 129), o que, grosso modo, coincide, de facto, com o tempo histórico: 147 dias. Outras indicações da passagem do tempo são-nos fornecidas por Sousa Falcão («Só ao fim de seis dias lhe abonaram dinheiro para comer.» - pág. 111) e Matilde («Há quatro dias que não me deito e que não sinto, na minha, qualquer mão amiga...»).

          Em suma, o tempo da acção / história comprova aquilo que as fontes históricas referem: a organização do processo de condenação e a execução dos conspiradores decorreu de forma muito rápida, não oferecendo qualquer hipótese de defesa aos réus.

Tempo da escrita: o Estado Novo (1961)

          Felizmente há Luar! foi publicado em 1961, ano em que o Estado Novo e Salazar florescem ainda.
          Este regime foi o responsável por um clima de opressão e de violação dos direitos humanos mais básicos: o de expressão, de manifestação e associação. A oposição apenas poderia existir de forma clandestina e o esforço para manter a ordem era exercido de modo violento, recorrendo-se frequentemente à força, dado que o governo se regia por princípios totalitários, baseados no autoritarismo.
          Um dos braços do regime era a PIDE / DGS, uma polícia política e espécie de nova Inquisição do século XX, apoiada em informantes (os «bufos»), que recebiam um pagamento mensal para denunciar qualquer pessoa ou actividade que parecesse suspeita. A pressão da PIDE, por outro lado, fazia sentir-se de diversas maneiras: tortura, despedimentos, perseguições, prisões, deportações, exílios...
          De facto, a censura, que existia em Portugal desde o século XV, tornou-se um precioso instrumento do salazarismo, exercendo-se nos diversos sectores da vida, nomeadamente o ideológico e literário, o responsável pela estagnação criativa e artística do país. Muitos escritores e mais obras ainda, incluindo Sttau Monteiro e a peça em análise, foram censurados e etiquetados de «subversivos».
          Curiosamente, a década de 60 do século passado coincidiu com um acentuado crescimento económico do país, o que não inviabilizou que continuasse a primar pelas miseráveis condições de vida e de trabalho, pela ausência de condições higiénicas e de salubridade, por uma elevada taxa de mortalidade infantil e de analfabetismo, tudo indicadores de pobreza que nos colocavam na cauda da Europa.
          Por outro lado, o ano de 1961 marca também o início da guerra colonial, que fomentou a emigração clandestina ou o exílio de muitos jovens que lhe procuravam, assim, fugir.
          Todo este caldo serviu de rastilho a um clima crescente de descontentamento geral que se evidenciou em várias manifestações estudantis e greves que contestavam o regime, e também o aparecimento de movimentos de oposição política que exigiam eleições livres e democráticas.
          Em suma, a publicação de Felizmente há Luar! coincide com um descontentamente galopante, em parte estimulado por uma opinião politica e progressivamente informada sobre o que acontecia na maioria dos países europeus ocidentais, onde a democracia já havia triunfado.

Tempo da representação

          O tempo da representação corresponde à duração da peça e está dependente da extensão do texto, do ritmo sugerido nas didascálias e do encenador, que possui liberdade para introduzir as alterações que considerar necessárias, mas, regra geral, é um tempo curto.

          No que diz respeito às épocas da representação, estas são diversas e dependem do interesse que a peça desperta, em determinado momento, a determinado encenador, mas também de outras condicionantes (por exemplo, a sua actualidade).
          Felizmente há Luar!, por motivos políticos, foi representada pela primeira vez, em antestreia, na sede do Club Franco-Portugais de La Jeunesse, no dia 1 de Março de 1969, e foi estreada no dia 30 desse mesmo mês no Théâtre de l'Ouest Parisien, também de Paris.
          A primeira representação em Portugal só foi possível depois do 25 de Abril de 1974. Concretamente, realizou-se no Teatro Nacional, em 1978, com encenação do próprio Sttau Monteiro.

Apresentação da peça

1. Características genéricas da peça
a) Publicação: 1961.
b) Estrutura: a peça é constituída por dois actos e não está dividida em cenas.
c) Particularidades: o paralelismo entre o tempo da acção (séc. XIX) e o tempo da escrita (década de 60 do séc. XX) permite ao autor denunciar indirectamente o totalitarismo e a violência do Estado durante a ditadura de Salazar, através do recurso à distanciação histórica.
d) Tema:
explícito: a rebelião e a condenação à morte do general Gomes Freire de Andrade, acusado de conspirar contra o Estado durante o período que antecede o Liberalismo (séc. XIX);
implícito: a luta intemporal do ser humano contra a tirania, a opressão e todas as formas de perseguição.
e) Classificação: drama narrativo.
f) Motivo de censura: a peça denuncia a hipocrisia da sociedade e defende valores como a liberdade e a justiça social - por isso, foi proibida pela censura da ditadura.
g) Representação:
-» Portugal: apenas após o 25 de Abril, em 1978, no Teatro Nacional;
-» representação anterior, em França, em 1969.

2. O carácter dual da peça
. Em Felizmente há Luar!, a evocação de situações e de personagens do passado serve de pretexto para falar da época em que a peça foi escrita (1961). Através da máscara do passado, o espectador é levado a reflectir sobre a realidade ditatorial:
-» dois tempos:
-1817 - tempo da história: o regime absolutista;
- 1961 - tempo da escrita: o regime ditatorial de Salazar.
. A estrutura externa é dual:
-» dois actos:
- Acto I: Apresentação da situação;
- Acto II: Desenlace trágico.
. O primeiro acto apresenta-se como de natureza épica e o segundo de natureza dramática.
. Elemento estruturador da acção -» Gomes Freire de Andrade:
» é odiado pelos governadores;
» é amado pelo povo;
» origina a sequência de episódios da peça;
» é o símbolo da luta pela Liberdade e pela Justiça;
» atrai a admiração e a esperança do povo oprimido;
» atrai a desconfiança e o ódio dos governadores detentores do poder;
» a sua condenação e a sua execução são o cerne das conversas e condicionam o comportamento das restantes personagens.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Funções das didascálias

          À semelhança de qualquer peça de teatro, Felizmente há Luar! apresenta dois textos paralelos: um constituído pelas falas das personagens e outro, mais extenso e minucioso do que é habitual, de carácter descritivo, analítico e, por vezes, judicativo. São as chamadas didascálias ou indicações cénicas.
          Por vezes, elas são consideradas um texto menor no conjunto do texto dramático. No entanto, na realidade, constituem um complemento essencial ao texto principal.

          Na peça, há dois tipos de didascálias. Um acompanha as falas das personagens, aparece em itálico e, por vezes, entre parênteses, preenchendo o papel tradicional deste tipo de texto: indicação do nome das personagens, das suas movimentações em cena, do seu tom de voz, gestos, guarda-roupa, etc. O outro surge ao lado do texto principal, é mais extenso e constitui uma forma de «análise interpretativa do texto principal».

          Sttau Monteiro, consciente da situação política que se vivia em Portugal nos anos sessenta do século XX, sabia que muito dificilmente esta sua peça teria possibilidades de ser representada no seu país, por isso decidiu transformar as didascálias numa espécie de linhas de leitura, um texto extremamente rico e constituído por um conjunto de preciosas indicações de trabalho para actores, encenadores, directores de actores e para o próprio leitor / espectador. Veja-se, a título exemplificativo, a didascália inicial: "A pergunta é acompanhada dum gesto que revela a impotência da personagem perante o problema em causa. Este gesto é francamente «representado». O público tem de entender, logo de entrada, que tudo o que se vai passar no palco tem um significado preciso. Mais: que os gestos, as palavras e o cenário são apenas elementos duma linguagem a que tem de adaptar-se".

          Observe-se o seguinte quadro, que ilustra as diferenças entre os dois tipos de didascálias:
Fonte: Colecção Resumos (pág. 40)

          Em síntese, as didascálias funcionam na peça como:
  • indicação do nome da personagem antes de cada fala;
  • indicação da entrada ou saída de personagens;
  • explicações do autor ("O público tem de entender, logo de entrada..." - pág. 15):
  • referências aos adereços que compõem o espaço cénico;
  • referência à posição das personagens em cena ("Ao dizer isto, a personagem está quase de costas para os espectadores." - pág. 16);
  • indicação das pausas: "pausa" (pág. 16);
  • caracterização do tom de voz das personagens e suas flexões ("Muda de tom de voz." - pág. 16; "Volta ao seu tom de voz habitual." - pág. 16; "O tom é irónico." - pág. 17);
  • apresentação da dimensão interior das personagens ("O gesto é lento, deliberadamente sarcástico." - pág. 17);
  • ilações que funcionam como informações e como forma de caracterização das personagens ("Fala com entusiasmo. Vê-se que Gomes Freire é o seu herói." - pág. 20);
  • indicações sonoras ou ausência de som ("Começa a ouvir-se, ao longe, o ruído de tambores." - pág. 17; "Este silêncio é pesado." (pág. 21);
  • expressão fisionómica dos actores ("As personagens olham para as mãos e para os lados..." - pág. 21; "O antigo soldado encolhe os ombros." - pág. 22);
  • movimentação cénica das personagens ("Ao falar da cara, levanta-se, assumindo a posição dum senador romano." - pág. 27);
  • sugestão do aspecto exterior das personagens ("Beresford vem fardado. A farda, ainda que regulamentar, não é espaventosa e está um pouco usada." - pág. 41);
  • indicações aos actores ("... Quando passa dum para o outro, os seus gestos devem ser rápidos e enérgicos para que o público compreenda o que se está passando." - pág. 78);
  • expressão do estado de espírito das personagens e a sua evolução ao longo da cena: tristeza, esperança, medo, desânimo, etc., dos oprimidos; sarcasmo, ironia, escárnio, indiferença, galhofa, adulação, desprezo, irritação, etc., dos opressores.

Antigo Soldado

          O Antigo Soldado, que fez parte do seu regimento, representa os soldados que viam no general Gomes Freire um herói («Gomes Freire é o seu herói.»), sendo, assim, a pessoa ideal para demonstrar a influência que aquele possuía nos seus homens. Com efeito, por um lado, Gomes Freire representa para eles o ideal da liberdade; por outro, a simples referência ao seu nome semeia o orgulho e a saudade dos tempos que combatiam com ele.

          O Antigo Soldado mantém algumas semelhanças com uma das personagens centrais de Memorial do Convento, Baltasar Sete-Sóis, visto que ambos combateram e foram desprezados pelos seus exércitos a partir do momento em que deixaram de o poder fazer, a partir do momento em que deixaram de lhes ser úteis, dando, portanto, razão a Vicente, quando este argumenta, na sua estratégia de desacreditar Gomes Freire, que os soldados, que fazem parte do povo, só servem os generais enquanto têm préstimo, capacidades, sendo posteriormente abandonados à miséria («Este homem está aqui porque já não serve para nada. Ouviram? Está aqui porque já não interessa aos generais. O queles querem é servir-se da gente! Quando um homem chega a velho e já não pode andar por montes e vales, de espingarda às costas, para eles se encherem de medalhas, tratam-no como um pobre fugido à polícia: abandonam-no, mandam-no para a porta das igrejas pedir esmola...» - pág. 22) .De facto, no início da peça, ele surge integrado no grupo dos populares miseráveis, limitando-se, no presente, a expressar a sua nostalgia e saudade sempre que recorda os tempos passados ao lado do general.


Rita

          Rita desempenha um «papel duplo» na peça de Sttau Monteiro. De facto, por um lado, encontramos a esposa de Manuel, uma mulher submissa ao marido, angustiada com a situação e que lhe implora que não se envolva em questões políticas. Estes traços significam que a sobrevivência do marido é o cerne das suas preocupações, o que nos revela uma mulher profundamente apaixonada por ele.

          No segundo acto, encontramos uma outra Rita, a mulher solidária e cúmplice de Matilde, que compreende o seu sofrimento e a sua dor, que denuncia a violência exercida sobre o general, que mostra o seu desespero e revolta com a situação vivida.

          Juntamente com o marido, ela simboliza o povo oprimido, impotente, sem vitalidade e ânimo para alterar as circunstâncias em que vive. Ou seja, tem consciência da situação que o oprime, mas não consegue alterá-la, depositando no general todas as suas esperanças para que tal se concretize. Quando ele é preso, simboliza(m) a desilusão, a frustração e a desesperança de toda uma classe que se vê, de súbito, entregue a si própria e incapaz de mudar a situação.

Sousa Falcão

          António Sousa Falcão é o inseparável amigo de todas as horas do general, é o amigo fiel e leal em quem se pode confiar.

          Admirador profundo do general, com ele partilhou sonhos e ideais, no entanto reconhece que muitas vezes não actuou de forma consentânea, isto é, que não possui a coragem, a determinação, a combatividade e a força interior para passar à acção e seguir o seu herói. Só no final da pela deixa transparecer a raiva e o desespero reprimidos durante muito tempo, quando D. Miguel o acusa de ser amigo de um traidor e então exclama: "Cão! Covarde! Assassino!" (pág. 119). Solidário, manifesta constantemente o seu apoio incondicional a Matilde, sofrendo juntamente com ela e mostrando-se angustiado e desiludido com a condenação do general.

           De facto, no final da peça, vive uma crise interior, motivada pela condenação do general, o que o leva a efectuar uma introspecção / reflexão acerca da sua existência e a concluir, desiludido, que nem sempre actuou segundo os seus ideais; que foi um fraco e cobarde, pois faltou-lhe a tal coragem para agir (contrariamente a Gomes Freire, apesar de defenderem os mesmos ideais de liberdade e justiça). A própria postura ("ombros caídos e braços pendentes" - pág. 87) reflecte a sua fraqueza interior. Todavia, esse reconhecimento proporciona-lhe alguma paz interior. É de notar, por outro lado, que, nos momentos finais, Sousa Falcão se apresenta de luto, não pelo general, mas por si, por não ter tido a mesma coragem daquele.

          Em suma, a figura de Sousa Falcão representa a impotência perante a prepotência e o despotismo no poder.
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