domingo, 28 de março de 2021
sábado, 27 de março de 2021
Análise de "A minha Musa antes de ser", de Adília Lopes
A Musa avisa o «eu», antes mesmo de
desempenhar a sua função (relembremos que o papel das musas era dar inspiração
ao poeta), que lhe cortará a língua por ele ter cantado “sem saber / que cantar
custa uma língua” (vv. 3-4). Trata-se, portanto, de uma musa cruel, perversa,
castigadora, vingativa e maldosa, características evidenciadas pela “ameaça”
que faz ao sujeito poético.
Apesar de reconhecer a crueldade da
sua Musa, o «eu» lírico não tem outra opção que não continuar a conviver com
ela. Assim sendo, o retrato da Musa que é apresentado neste poema é oposto ao
que a mitologia tradicionalmente sustenta: uma divindade que inspirava e
auxiliava os poetas na escrita do poema. De acordo com a Teogonia, de
Hesíodo, sem as musas não poderia haver poesia/canto, visto que a elas se
atribui o aparecimento da linguagem e, por consequência, o aparecimento do
mundo – é na linguagem e pela linguagem que se pode pensar e conceber o mundo.
Deste modo, Hesíodo apresenta-nos as musas como as divindades responsáveis pela
inspiração dos poetas e pela criação e propagação do canto através da
linguagem.
Sucede que, neste poema, a Musa
inspira o sujeito lírico através de um ato cruel e perverso: arrancar a língua.
A composição estrutura-se a partir de um suposto diálogo entre ambos: ele fala
nos versos 1 e 2, abrindo o texto, e 7 e 8, fechando-o, enquanto a figura
mitológica se faz ouvir nos restantes. Esse diálogo é bem evidente pelo uso das
formas verbais nas primeira e segunda pessoas.
A nível estilístico, a repetição
irónica da expressão “minha Musa” acentua o papel tirânico e cruel que a divindade
desempenha na vida do sujeito lírico. Por sua vez, a repetição do nome “língua”
é plurissignificativa. Assim, no verso 4, este vocábulo remete para o órgão
humano que é responsável pela produção de sons e pela comunicação através da
fala. A expressão “custa uma língua”, presente ainda nesse verso, constitui uma
espécie de alerta que a Musa dirige ao «eu» de que o ato de cantar, isto é, de
fazer poesia, não é gratuito nem simples. Quem deseja «cantar» tem de ter
consciência de que uma língua e uma cultura possuem um arcaboiço literário e de
que necessita de respeitar os “pilares literários” que estruturam e
contribuíram para a criação desse mesmo arcaboiço. Por seu turno, o uso de “língua”
no quinto verso remete novamente para o órgão da fala: como o sujeito poético
desrespeitou o aviso da Musa, a sua língua será cortada.
Este acarretará, naturalmente, consequências.
Em primeiro lugar, causa a mudez do sujeito lírico, pois, com a língua cortada,
não conseguirá falar, o que inviabilizará a sua comunicação. No entanto e apesar
disso, ele ainda produz um canto, o que significa que a Musa lhe cortará a
língua para que ele aprenda a cantar e não para o tornar mudo. Assim sendo,
este ato paradoxal põe em causa o tipo de “canto” que é permitido ao sujeito
poético, que parece distanciar-se “do cantar repassado pela tradição literária”.
"Eu sou a luva", de Adília Lopes
Neste poema, o sujeito poético
apresenta-se com diversos «eus».
A composição poética abre com duas
metáforas: a da luva e a da mão, que sugerem a ligação entre duas pessoas,
equiparando-se no que diz respeito ao modo de pensar e de agir. No entanto,
neste poema parece sugerir a existência de conflitos e divisões.
A ausência de pontuação –
nomeadamente de vírgulas – permite-nos fazer diferentes leituras do texto. Assim,
o sujeito poético apresenta-se, no início, marcado por dois nomes: a luva e a
mão. Poderá isto significar que há dois «eus»: a Adília e o eu, que o sujeito
poético procura fazer coincidir, formando um único ser. Deste modo, estaremos
perante a união do sujeito poético (eu) com Adília. Convém, neste contexto, ter
presente o facto de Adília Lopes constituir o pseudónimo literário de Maria
José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira. Deste modo, quando afirma que o «eu»
do poema quer coincidir consigo “mesma”, este «eu» parece não ser já Maria
José, visto que é com Adília (a figura que assina os textos) que o «eu» se quer
unir, formando um único ser. Esta ideia parece ser confirmada por entrevistas
dadas pela própria poeta, que afirma que “Adília Lopes e Maria José da Silva
Viana Fidalgo de Oliveira são uma e a mesma pessoa. São eu.”. No entanto, logo
de seguida acrescenta: “E muitos outros nomes que eu não sei”.
Esta nota permite fazer outra
leitura do poema. Se separarmos as conjunções coordenativas copulativas «e»
presentes nos versos 2 e 3, deparamos com uma pulverização de «eus», visto que,
além de Adília Lopes e Maria José, podem existir “muitos outros nomes”. Assim
sendo, o «eu» que encontramos no início do poema não seria nem Adília Lopes
(embora no terceiro verso apareça uma Adília, convém notar que o sobrenome
Lopes não está presente, o que poderá indiciar a existência de outra figura, de
outro nome, diferente da poeta que assina os seus textos como Adília Lopes) nem
Maria José, mas um «eu» que não sabemos quem é. A leitura do segundo verso,
deste modo, estender-se-ia até à segunda conjunção «e», presente no verso 3.
Este dado permite afirmar que a mão é, agora, Adília. A ocorrência do segundo
«eu». No final desse terceiro verso, poderá remeter tanto para o «eu» do
primeiro verso como para outro, distanciando-se do primeiro. É este segundo
«eu» que quer coincidir consigo mesmo. Assim sendo, se, de acordo com a
primeira leitura, estaremos perante o par Adília Lopes / Maria José, de acordo
com a segunda, seremos confrontados com várias «faces», podendo ser ora Adília
Lopes, ora Maria José, ou ainda muitos outros nomes.