domingo, 25 de dezembro de 2022
sexta-feira, 23 de dezembro de 2022
Análise do poema "A canção do africano"
O poema é constituído por nove
estrofes, cinco sextilhas e quatro quadras, com rima emparelhada e interpolada
nas sextilhas (AABCBC) e cruzada nas quadras, com dois versos brancos ou soltos
(ABCB). Nas quadras, o poeta dá voz ao escravo africano cativo em terras
brasileiras, colocando na sua boca uma suposta canção popular africana, que ele
canta dentro de uma senzala expondo o seu sentir de cativo e exilado.
Na primeira estrofe, o «eu» poético
apresenta o escravo africano preso numa senzala húmida e acanhada, sentado no
chão junta a um pequeno braseiro, inundado pela saudade de África, a sua terra
natal, que o faz chorar silenciosamente enquanto canta uma canção cujo teor
ainda se desconhece, mas indiciado desde já pelo título da composição
poética: a recordação da sua vida em África.
Na segunda, são introduzidas outras
figuras que se encontram no interior da senzala: uma mulher, também escrava,
com uma criança ao colo, que ela embala nos braços para a adormecer. Quando
ouve uma canção entoada pelo homem, a figura feminina começa também a cantar, num
tom de voz bem baixo, pois não quer que o filhou ouça.
A terceira estrofe – a primeira
quadra – revela-nos o conteúdo da canção pela voz do próprio cantor. O tema
musical, marcado pela saudade de África, caracteriza-a como uma terra muito distante
(“Minha terra é lá bem longe”), de onde vem o sol, menos bela do que as terras
brasileiras (o resultado desta comparação, isto é, a superioridade da beleza brasileira
relativamente ao continente africano, mostra que o poeta romântico, por mais
que queira, não consegue escapar ao seu espírito ufanista). No entanto, apesar
disso, a sua saudade e os eu amor são dedicados à terra de onde foi roubado: “Mas
à outra eu quero bem!”).
A quadra seguinte dá continuidade à
canção, que dá conta de quão quente é o astro-rei em África através de várias
hipérboles (“O sol faz lá tudo em fogo, / Faz em brasa toda a areia;”), todavia
o «eu» afirma que é bela a visão da estrela da tarde no céu de África, que é
apelidada de “papa-ceia”, o equivalente ao planeta Vénus ou Estrela d’Alva: “Ninguém
sabe como é belo / Ver de tarde a papa-ceia!”
A próxima quadra volta a estabelecer
uma comparação entre o Brasil e a África, através, nomeadamente, da vastidão
das terras, comparada por sua vez à do mar (“Aquelas terras tão grandes, / Tão
compridas como o mar”) e ao menor número de palmeiras (“Com suas poucas
palmeiras”). Deste modo, o «eu» poético estabelece um contraste entre a
natureza paradisíaca brasileira e a escravidão que lá se faz sentir.
A última quadra que dá voz à canção
saudosa do escravo canta a felicidade que este experimentou na sua terra natal
e que é um sentimento coletivo (“Lá todos vivem felizes”), recorda as danças
típicas africanas (“Todos dançam no terreiro”) e, sobretudo, denuncia a
escravatura que experimenta no Brasil, por oposição à liberdade que existia em
África: «”A gente lá não se vende / Como aqui, só por dinheiro”.» Por outro
lado, nesta estrofe, à semelhança do que sucede nas demais quadras, está
presente uma antítese entre os dois primeiros versos e os dois últimos: ela
começa aludindo ao sonho bom que era a vida em África e termina afirmando que o
povo africano não é movido pelo dinheiro como o brasileiro, que é capaz de
vender pessoas em troca do vil metal.
Na estrofe seguinte, o «eu» poético
recupera a sua voz no poema, para contar que o escravo fica em silêncio junto
ao fogo que se começava a apagar. A escrava, que cantava baixinho enquanto
embalava o filho no colo, emudece também: mais do que cantar, ela soluça,
chorosa, triste pela saudade da sua terra (“O escravo calou a fala, / Porque na
húmida sala / O fogo estava a apagar; / E a escrava acabou seu canto, / Pra não
acordar com o pranto / O seu filhinho a sonhar!”). Deste modo, o que ela
silencia não é a canção ou o canto, mas o choro, para que o filho não acorde.
As duas últimas estrofes dão notícia
da preparação das três figuras para se deitarem: “O escravo enão foi deitar-se…”;
“E a cativa desgraçada / Deita seu filho…”. Porém, estas notas são apenas o
pretexto para o «eu» poético denunciar a realidade dura enfrentada pelos
escravos. Por exemplo, o cativo, se simplesmente acordasse tarde, seria
espancado: “Pois tinha de levantar-se / Bem antes do sol nascer, / E se
tardasse, coitado, / Teria de ser surrado, / Pois bastava escravo ser.”. Por seu
turno, a mulher deita-se angustiada e receosa, com medo que, durante a noite, o
seu «dono» surgisse e lhe levasse o filho. Pelo contrário, a criança, por
oposição aos adultos, ainda não tem consciência da realidade e de que não passava
de uma simples mercadoria naquele ambiente de escravidão, em que homens, mulheres
e crianças de pele negra não tinham liberdade nem voz.
quarta-feira, 21 de dezembro de 2022
Análise do poema "A Cachoeira de Paulo Afonso"
A obra explora liricamente o tema
romântico da impossibilidade da vivência do amor, o cerceio dos direitos
primários – representado pela violação sofrida pela escrava Maria –, a
escravidão e, por fim, a restauração moral dos indivíduos escravizados, que
efetivam metafisicamente o seu amor através do suicídio, despenhando-se de uma
cachoeira a bordo de uma canoa. Deste modo, o casal preserva a honra por meio
da morte e liberta-se da tragédia e da opressão social através da recuperação
do seu próprio destino. A narrativa constrói-se em torno do estupro sofrido por
Maria às mãos do filho do senhor de escravos. Apesar do desejo de vingança,
Lucas, o escravo amante de Maria, desiste desse seu propósito quando descobre
que o criminoso é seu meio-irmão. Dado que o projeto de vingança não se concretizará,
o casal lança-se do alto da cachoeira de Paulo Afonso, um conjunto de imensas
quedas de água do Rio São Francisco, na Baía, assegurando, assim, a sua união
cósmica.
Os poemas que constituem a obra são
os seguintes: “A tarde”, “Maria”, “O baile na flor”, “Na margem”, “A queimada”,
“Lucas”, “Tirana”, “A senzala”, “Diálogo dos ecos”, “O nadador”, “No barco”,
“Adeus”, “Mudo e quedo”, “Na fonte”, “Nos campos”, “No monte”, “Sangue de
africano”, “Amante”, “Anjo”, “Desespero”, “História de um crime”, “Último
abraço”, “Mãe penitente”, “O segredo”, “Crepúsculo sertanejo”, “O bandolim da
desgraça”, “A canoa fantástica”, “O São Francisco”, “A cachoeira”, “Um raio de
luar”, “Despertar para morrer”, “Loucura divina”, “À beira do abismo e do
infinito” e “A cachoeira de Paulo Afonso”.
Maria e Lucas marcam um encontro no
rio S. Francisco. Ela chega primeiro e decide banhar-se no curso de água, no
entanto é surpreendida por um homem. Inicia-se, então, uma longa perseguição
pelos campos, até que é alcançada e estuprada. Enquanto isso, Lucas anda pela
mata cantando o seu amor por Maria. Quando chega a casa dela, não a encontra, por
isso volta a percorrer a mata à sua procura. Encontra-a a dormir numa canoa que
ia descendo o rio em direção à cachoeira Paulo Afonso (hoje desaparecida para
dar lugar a uma hidroelétrica). O escravo nada até à embarcação e acorda a
amada, que confessa que está ali de propósito para cometer suicídio.
Posteriormente, conta-lhe que, enquanto tomava banho numa fonte, foi atacada e
estuprada, não sem antes ter tentado escapar. Lucas não duvida de Maria nem a
culpabiliza, mas diz-lhe que, em vez de se matar, ambos deveriam procurar o
culpado e vingar-se. No entanto, a escrava recorda uma promessa que ele fizera
a sua mãe no leito de morte: a velha escravizada tinha revelado que fora
estuprada pelo patrão (o Senhor) e morta por ciúmes pela sua esposa (a Sinhá). Além
disso, pedira-lhe que não se vingasse, o que o torna impotente perante a
situação trágica em que se vê envolvido. Na sequência, Maria fá-lo prometer que
não buscará vingança. Como sucede por vezes com algumas vítimas de agressão, a
jovem parece sentir-se culpada do crime que ela própria sofreu. Maria revela,
então, que o estuprador tinha sido Sinhozinho, o filho do patrão e irmão
paterno de Lucas. A memória do último pedido da mãe convence-o a não procurar
vingança. Aparentemente concordando com ambas as mulheres vitimizadas, para não
desrespeitar a promessa feita e assassinar o seu meio-irmão, conclui que a
morte é a melhor solução e abraça-se a Maria enquanto a canoa se precipita na
cachoeira de Paulo Afonso, no rio São Francisco.
A obra abre com o poema “A Tarde”,
que descreve a atmosfera bucólica e deslumbrante em que vivia Maria, uma jovem
delicada como a flor do sertão e sensual, com um corpo harmonioso e belo como a
natureza, a qual desempenha um papel relevante em todas as situações em que a
antítese é chamada a sublinhar contrastes reveladores de um conflito moral ou
sentimental. As paisagens predominantes são as naturais, como a natureza
sertaneja. Ocasionalmente, surge, nas visões das personagens, a paisagem
bíblica, como, por exemplo, no texto “A Senzala”, em que há referência à
luz do Paraíso, feita por Lucas.
No poema “Maria”, é-nos
apresentada a protagonista, logo após o desvendar, em “A Tarde”, da atmosfera
bucólica em que vivia. Temos, assim, o uso de uma técnica romântica: inserir as
personagens no ambiente que as rodeia. Maria é uma mucama, palavra que não tem
o mesmo significado da literatura africana, e o seu retrato corresponde ao
modelo romântico da figura feminina, ou seja, o de uma escrava, mulher mulata,
uma presença que desperta o desejo, a luxúria, que está carregada de
sensualidade: “‘‘A grama um beijo te furta / Por baixo da saia curta, / Que a
perna te esconde em vão… / Mimosa flor das escravas.”. Ao longo do poema, o
sujeito lírico mistura essa imagem de escrava à condição de mulher duplamente
violada – por ser mulher e por ser escrava negra –, suscitando no leitor
sentimentos de compaixão.
Em “O baile na flor”, o
sujeito poético descreve a rara beleza da natureza, comparando a floresta com
um baile no qual os convidados são silvos e fadas, flores e insetos, que bailam
ao som de uma animada “orquestra de grilos nas flores”, e explora a riqueza
exuberante, «mágica» e intocada e cheia de vida da fauna e da flora brasileira.
Na descrição da “Queimada”, o
narrador percorre o campo a cavalo, acompanhado do seu perdigueiro, à procura
de descanso e de reencontro consigo mesmo, o que proporciona cenas que captam
tanto a realidade física e geográfico quanto a social, pois nelas estão
presentes tipos regionais, como o tropeiro, o vaqueiro, o violeiro, a mulata,
entre outros, que formam com os elementos naturais um painel variado e
grandioso. Nesse seu percurso, o «eu» testemunha um incêndio que destrói tudo,
como consequência da ação humana. Esta parte funciona como uma espécie de
prólogo do que está para ser narrado. A natureza é antropomorfizada, é vista
como um conjunto de vidas. Nela, o coração sangra e o cedro, tal como um ser
humano, esbraceja para o alto perante a devastação total.
Lucas entra em cena no poema
homónimo, que mostra como o «eu» lírico valoriza o negro enquanto homem, que
passa a ter uma identidade: chama-se Lucas, é um lenhador, escravo e
pretendente de Maria. O poema valoriza a sua beleza negra, destacando traços do
seu rosto, as suas mãos, o seu vigor físico, bem como o seu canto. Descendo a
encosta do monte, ao clarão da queimada, à procura da cabana, ele pensa na sua
amada e canta baixinho a tirana, uma melodia criada por si mesmo. Na canção,
Lucas faz referência à beleza da amada, que não é percebida apenas pelo
escravo, pois o filho do patrão também já tinha notado a sensualidade de Maria.
Em simultâneo, a natureza é enquadrada como o trabalho do escravo lenhador e
como uma espécie de sua mãe, ele que é tão vigoroso como a floresta: “Um belo
escravo da terra / Cheio de viço e valor… / Era o filho das florestas! / Era o
escravo lenhador! / Que bela testa espaçosa, / Que olhar franco e triunfante! /
E sob o chapéu de couro / Que cabeleira abundante! / De marchetada jiboia /
Pende-lhe a rasto o facão… / E assim… erguendo o machado // Na larga e robusta
mão…”.
O sétimo poema, intitulado “Tirana”,
parece uma cantiga, pelo uso da redondilha maior, que lhe dá um ritmo
acentuado. Aliás, a seleção do ritmo e da métrica é típica de um certo
folclore, mas nele encontramos outras características, como a comparação da
mulher com elementos da natureza do Brasil: manoca, baunilha, valorizada pela
forma como cresce, pelo seu odor, que mostra uma certa sensualidade. No que diz
respeito à caracterização de Maria (mulata, com tranças, etc.), a descrição é
toda eufemística, dado que a intenção é idealizar o negro, tal como a de José
de Alencar passava por valorizar o índio. O processo é o mesmo, o que diverge
são as figuras e a respetiva função: a idealização do indígena tinha por
objetivo a busca das raízes da nacionalidade, enquanto a do negro visava a sua
defesa. Em ambos os casos, a idealização procura a aproximação ao branco.
Castro Alves coloca um véu sobre o negro, pois é sempre referido por “moreno” /
“mulato”. No “Navio Negreiro”, o objetivo era chocar o leitor; neste poema, é
arrastá-lo. A estrofe final tem uma imagem parecida com a que aparece no final
de Iracema: Martim ouve a voz de Iracema na palmeira.
Em “Senzala”, o sujeito
poético procura retratar a casa onde Maria, a escrava mulata, vivia, uma
habitação pequena, bela e singela, e onde os passarinhos chilreavam e
brincavam.
No poema “O Nadador”, é
introduzido o filho do patrão, que surpreende Maria a tomar banho no rio, a
qual se assusta com a sua presença. A perseguição e o estupro são motivos que o
excitam, dado que a escrava denota o sentido da caça. Este tipo de atos, na
época da escravatura, era bastante comum, por isso, se o pai cometera tal
violência no passado, o filho imita-o e repete-a. Além do caráter repugnante e
intolerável do crime que é a violação, a verdade é que a mesma provoca a
desestruturação do sentido da família negra. O escravo, como consequência,
via-se impossibilitado de ter o mínimo de organização social e psicológica. De
facto, a escravidão e a depravação sexual andam de mãos dadas, pois fazem parte
do regime da escravatura. Um dos motivos que justificava estas atitudes por
parte dos fazendeiros era, além do prazer da caça, o interesse financeiro. Com
efeito, estes atos favorecia o crescimento do número de escravos, pois eram
muitas vezes estimulados a procriar em troca da liberdade. Contudo, os
fazendeiros, em muitos casos, encarregavam-se pessoalmente de aumentar o seu
número de escravos.
Por outro lado, na maioria dos
poemas românticos sobre escravos, a beleza do corpo da escrava é descrito como
mulher-flor e mulher-caça, isto é, como um objeto. Este poema de Castro Alves
realiza uma série de inversões e deslocamentos relativamente ao que era
característico entre os românticos. O erótico e o sensual, por exemplo, são
inscritos simultaneamente; a tragédia que atinge este casal é situada num nível
racial e social. A violência erótica complementa a violência racial, social e
económica. Há uma série de fatores que desencadeiam esta prática violenta, como
o desejo de dominação do objeto, dado pela atração sexual. Ganha destaque a
união do prazer com a violência sexual como prática social: para o obter, o
homem necessita de caçar um ser de outra espécie, alguém que seja diferente de
si, o que pode passar pela posição social, como é o caso do senhor e da
escrava. Esta diferença social torna a prática sexual em algo tão satisfatório
como a caça. Maria, na sua condição de escrava, constitui o objeto ideal para
esta busca de prazer sexual.
A obra mostra que Maria é diferente
das outras mucamas: ela não quer nada do patrão, não possui nenhum interesse,
como sucede no caso de uma troca de favores, visto que não faz uso dos seus
atributos físicos para retirar benefícios. Na verdade, ela é metaforizada como
a noiva da morte, dado que os seus projetos de felicidade são destruídos
tragicamente. Maria é descrita como a “flor manchada por cruel serpente”, “a
rola”, “a perdiz” tomada pelo violador. A sedução não existe, apenas violência,
a qual determina não só o drama do casal, mas o da sociedade, cuja repressão
não deixa margem para a concretização do desejo de liberdade.
Numa sociedade escravocrata, brancos
e negros desempenhavam papéis bem definidos. O facto de o homem burguês branco
ver a mulher de categoria social inferior – neste caso, a escrava – como objeto
sexual associou a ideia do prazer sexual à decadência social e até económica, o
que inviabilizava qualquer hipótese de existir sentimentos afetivos entre
pessoas de estratos sociais e económicos diferentes.
Em “Adeus”, Lucas critica o
facto de Maria, a sua amada, lhe ter dito adeus, pois sem ela ele não consegue
viver; pelo contrário, se a separação se concretizasse, morreria de tanta dor,
situação que prossegue em “Mudo e quedo”, onde se mostra a desgraça de
um amor passado e a dor que deixa marcas permanentes para aquele que fica – uma
das características do romantismo brasileiro.
O primeiro monólogo de Maria na obra
sucede nos poemas “Na Fonte”, “Nos Campos” e “No Monte”,
nos quais a escrava relata, na primeira pessoa, a experiência da violência
sexual que sofreu. Para Castro Alves, o estupro da mulher amada pelo dono de
escravos correspondia ao derradeiro degrau na descida moral do escravo à
indignidade irrestrita. Maria, após percorrer a mata durante bastante tempo,
chega a uma fonte, um ambiente que representa o local onde Pã
(uma divindade que alguns autores associam à masturbação, à epilepsia e, inclusive,
à violação) espera as ninfas. A jovem escrava decide banhar-se na água da
fonte, mas, de súbito, surge em cena o filho do patrão. Maria fica em pânico
(segundo alguns autores, este nome provém precisamente de Pã), pois estava num
local ermo, sozinha com ele, estava nua e sem ninguém que lhe pudesse acudir.
Começa a correr, então, para o campo, mas a fuga é em vão, dado que logo é
alcançada pelo homem, que representa o deus acima referido no poema, só que,
enquanto Pã era escuro e perseguia ninfas brancas, o filho do patrão é branco e
encontra-se na presença de uma “ninfa mulata”.
A cena, que deveria corresponder a
um momento de sedução do amado (Lucas) transforma-se num ato de extrema
violência física que impede o encontro amoroso dos dois escravos. O erotismo e
a sexualidade adquirem, assim, um caráter manifestamente negativo, associado à
violência física e psicológica, a um comportamento patológico e doentio, não só
em termos psicológicos e genéricos, mas também físicos e concretos, visto que estas
atitudes levaram a que o negro brasileiro adquirisse doenças venéreas, como,
por exemplo, a sífilis, sobretudo nas senzalas coloniais.
A obra gira em torno do casal de
escravos, que lutam pela dignidade, pela liberdade e pela moral da personagem
feminina, que foi violentada. No poema “Desespero”, encontramos o
discurso de Lucas, quando a amada lhe implora que esqueça a vingança e ele lhe
responde dizendo que a jovem nunca soubera o que era ser escrava de verdade,
que os escravos são injustiçados desde o berço. Deste modo, Castro Alves
procura mostrar que o papel do negro nunca foi de apatia e inércia, pelo
contrário ele constitui-se como sujeito, tal como Maria, que é estuprada e se
preocupa com o seu valor moral.
Em “História de um Crime”,
Maria descreve o cenário do episódio da morte da mãe de Lucas: “estreita e
lodosa sala”, na qual arquejava a mulher em “triste agonia”, numa noite sombria
de vendaval, e a parca iluminação do espaço contrastava com a face amarelada de
Cristo na parede; os latidos do cão de guarda; o abatimento físico da escrava
nos seus derradeiros instantes de vida (“o derradeiro suor”, “acordava a
mártir”, “ouvia em torno com medo”, “Do peito cansado, exangue, / Às vezes
rompia o sangue”).
Nos poemas seguintes – “Último
Abraço”, “Mãe Penitente” e “O Segredo” –, rememoram-se os
eventos passados, presentificando-os, estabelecendo o «eu» poético um
paralelismo entre os traumas vivenciados pela mãe de Lucas e por Maria, o que
evidencia a perpetuação da violência senhorial entre sucessivas gerações de
escravos. Estes poemas convocam também a questão da religião, à qual está
associado um caráter omisso perante a violência, como é o caso do estupro de
Maria. Além disso, apenas os brancos eram protegidos; a mãe de Lucas não teve
nenhuma prece quando estava a morrer; o padre era representado por duas
crianças, como se pudessem dar a extrema-unção: “Ainda me lembro agora /
Daquela noite sombria / Em que u’a mulher morria / Sem rezas, sem oração!... /
Por padre – duas crianças… / E apenas por sentinela / Do Cristo a face amarela
/ No meio da escuridão.” (“História de um crime”). A imagem da mãe
agonizante é bastante emotiva, como se pode comprovar pelo uso de recursos como
os vocativos (“Filho, adeus!”) e nas apóstrofes exclamativas (“Que sina, meu
Deus!”, “Pois que seja feita, Senhor!”). O apelo insistente da escrava,
dirigido ao filho, é intenso e pleno de emoção e dramatismo: “Chega-te perto…
mais perto; / Nas trevas procura ver-te / Meu olhar, que treme incerto, /
Perturbado, vacilante…” (“Último Abraço”). Um outro recurso importante é
a gradação de ideias relacionadas com os abusos cometidos contra si: “De
espedaçarem-se as carnes / O tronco, o açoite, a tortura, / De tudo quanto
sofri.”), cuja progressão ascendente denuncia a violência a que foi sujeita. No
final de “Mãe Penitente”, a mulher pede perdão ao filho por o predispor,
na condição de propriedade alheia, ao sofrimento infindável: “fiz o maior dos
crimes: / – Criei um ente para a dor e a fome!”
Por seu turno, “O Segredo”
está dividido em quatro segmentos. Os dois primeiros compreendem a fala da mãe
de Lucas, na qual ela, no leito de morte, lhe revela que o pai é o patrão, de
quem primeiro foi vítima e que quem a havia induzido à morte fora a sua esposa,
num ímpeto de raiva e ciúme. De facto, estas figuras, dominadas pelo ciúme,
visto que não eram amadas nem respeitadas pelos maridos, procuravam dominar,
tiranizar e exercer violência sobre os escravos, com o objetivo de se vingarem.
Esta noção é comprovada pela seguinte fala da mãe: “Matou-me como um tigre carniceiro,
/ Bem vês, / Uma branca mulher, que em se resume / Do tigre – a malvadez / Da
cascavel – rancor!” De seguida, apela ao filho que tenha piedade do pai,
obrigando-o a prometer-lhe que nunca se vingaria dele em nome dos laços de
sangue que os unem: “Mas hás de jurar primeiro, / Que jamais tuas mãos
inocentes / Ferirão meu algoz derradeiro…”; “Deixo-te, pois… / (…) Um crime a
perdoar…”. O terceiro segmento do poema é constituído por uma estrofe que dá
conta do desalento do pequeno Lucas atrelado ao corpo da mãe já morta. As doze
estrofes seguintes regressam ao presente, ao momento em que Maria e o amado
dialogam sobre a promessa feita à mãe na infância e, na sequência, a jovem
confessa o nome do seu violador: o filho do patrão, meio-irmão de Lucas. Na
última estrofe de “O Segredo”, o escravo sustenta não apenas o desejo de
defender a honra dos seus, mas também a recusa do seu rebaixamento moral:
“Ninguém! que a nada humilho-me”, mas, logo de imediato, é esmagado pela
revelação de Maria: “Mata-me!... É teu irmão!...”. Esta revelação de parentesco
altera dramaticamente o curso dos acontecimentos, nomeadamente o futuro do
casal de jovens escravos. É o momento da anagnórise da tragédia clássica grega,
segundo a qual a revelação de um dado desconhecido muda o rumo da ação. É o que
acontece, por exemplo, em Frei Luís de Sousa, quando é revelado que o
Romeiro é, afinal, D. João de Portugal, ou n’Os Maias, o conhecimento de
que Carlos e Maria Eduarda da Maia são irmãos.
A revelação do crime e do parentesco
entre Lucas e o estuprador da sua amada, juntamente com a promessa feita há
muitos anos à mãe daquele, impedem a concretização do sonho de permanecerem
juntos, do seu amor. Perante estes dados e inconformismo com a situação, a
morte surge como a solução para o drama, pois, paradoxalmente, traz consigo o
símbolo da liberdade. Deste modo, Eros torna-se Thanatos (irmão de Hipno, o
sono, e filho de Caos e das Trevas), ou seja, o erotismo desemboca na morte, no
momento em que ambos se precipitam na cachoeira. Este desfecho pode ser
associado ao mito do mergulhar, afogar-se e renascer, no fundo, o batismo.
Assim sendo, o gesto dos amantes representaria a morte para um nascer de novo.
A partir do poema “Despertar para
Morrer”, somos confrontados com antíteses que enfatizam a descrição da
violação erótica e social e traduz as sensações de surpresa e de imprevisto,
enquanto, em “Loucura Divina”, se assiste à transmutação da natureza,
entre o mundo real e o mundo ideal. Por exemplo, quando se alude à morte, esta
corresponde ao seu oposto – “redenção”; a “canoa”, que se refere ao “esquife”,
passa a possuir o sentido de “berço”, embalado não pela morte, mas pela mãe
natureza. Este poema mostra um diálogo entre duas pessoas que discutem o que
seriam os sons que estão a ouvir, desconhecendo que se tratava da morte, que os
chamava sob a forma do som da cachoeira. Por outro lado, mostra que, para Lucas
e Maria, a morte é uma libertação. No processo de busca da morte, os escravos
deixam a canoa em que navegam deslizar rio abaixo, até a mesma se precipitar na
cachoeira, concretizando, assim, metaforicamente em himeneu, isto é, um
casamento. Nele, as estrelas são como as tochas de uma igreja; os rochedos são
a representação de incensos e Deus é o sacerdote que celebra a união dos
“noivos da morte”. Assim sendo, Maria e Lucas consumam as núpcias na morte. A
natureza envolvente constitui o cenário da celebração da sua união externa.
No poema final, “À beira do
abismo e do infinito” revela-nos uma cena em que a morte cobre o casal de
escravos através das águas do rio São Francisco num último suspiro e beijo de
amor que os eterniza.
O suicídio do casal remete para a
história de Romeu e Julieta. O amor entre este casal não constitui a negação da
vida, pois o seu caráter trágico aprofunda e enobrece o verdadeiro sentido do
seu amor, visto como transcendental. Algo semelhante parece acontecer com Maria
e Lucas, só que num âmbito diferente, pois a impossibilidade de concretização
do seu amor deve-se não a uma rivalidade e ódio entre famílias, como sucede na
peça de Shakespeare, mas em diferenças hierárquicas e sociais. O desejo de
liberdade e o amor parecem ser coartados pela repressão da época. Assim, o
suicídio tem um caráter social que é fruto dessa repressão, a qual tornou
impossível o sonho dos amantes: o casal de escravos em conflito com as forças
sociais que o coage e desmoraliza. No final a morte representa a abdicação da
vida, pois esta não corresponde às expectativas de Maria e Lucas, que não se
submetem aos ditames do regime escravocrata. As mortes assumem um caráter de
recusa e de protesto contra esse sistema, contra essa «organização» social. A
morte, enquanto símbolo de redenção, transpõe o sentido do amor do casal,
atingindo, assim, a transcendência do amor: “A canoa rolava!... Abriu-se a um
tempo / O precipício!... e o céu!...”.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2022
Análise do poema "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias
“Canção do Exílio” é o poema mais conhecido de Gonçalves Dias, um texto pertencente `primeira fase do Romantismo, datado de julho de 1843, quando o poeta se encontrava em Coimbra, Portugal, desenvolvendo temáticas como o patriotismo e o saudosismo em relação à terra natal, publicado em 1846, na obra Primeiros Cantos, livro de estreia do escritor maranhense (trata-se, na verdade, do primeiro poema do livro).
Há um aspeto que marca os poemas do
Romantismo e que, por vezes, aparece em Gonçalves Dias: a epígrafe,
sobretudo de autores românticos. Neste caso, temos um extrato de um poema de
Goethe (1749-1832), intitulado “Balada de Mignon”, que manifesta a saudade de
uma terra paradisíaca e distante e um desejo de evasão no tempo e no espaço,
marcado pela oposição entre o «cá» e o «lá»: “Conheces o país onde florescem as
laranjeiras? Ardem na escura fronde os frutos de ouro… / Conhecê-lo? / Para lá,
/ para lá, / quisera eu ir!”. Nestes versos de Goethe, nota-se o louvor da
pátria e dos seus aspetos característicos. Gonçalves Dias segue o «modelo» do
poeta alemão e compõe um poema que glorifica as belezas da sua terra natal. Em
ambos os textos, mostra-se o sentimento que sente o exilado em relação à terra
de origem, elogiam-se as árvores (em Goethe, são as laranjeiras e, em Gonçalves
Dias, as palmeiras) e existe uma forte musicalidade. Há ainda a oposição entre
um cá e um lá, que é um espaço idealizado e exótico. Gonçalves Dias sente
necessidade de marcar a oposição, por causa da saudade que o indígena sente e
transmite-a através de um tom simples e ingénuo. Mas que saudade é esta? Há
quem diga que ela é tão intensa que se desliga do sentimento português e é uma
autêntica saudade indígena, que tem todas as características do elemento
português e algo mais.
É um poema ingénuo que não toma
aspetos filosóficos, mas aspetos simples da vida que nos rodeia e dos quais o
poeta sente saudade. É uma idealização do «lá» (o que não se encontra fora do
Brasil) em relação ao «cá» (o que há no país natal), daí a presença do
saudosismo característico de quem está há algum tempo distante do seu país de
origem. De facto, Gonçalves Dias compôs estes versos quando se encontrava em
Portugal, estudando Direito na Universidade de Coimbra, numa época em que era
frequente que intelectuais abastados brasileiros cruzassem o Atlântico para se
formarem em faculdades portuguesas.
Por outro lado, há que ter em conta
que o Brasil tinha declarado a independência recentemente, vinte e um anos
antes, o que levou os autores românticos a sentirem a necessidade de
trabalharem para a construção de uma identidade nacional, por isso começaram a
produzir uma literatura com tons mais nacionalistas.
O próprio título “canção”
marca desde logo um certo ritmo muito suave e adaptado ao sentimento de saudade
expresso; é um poema substantivado e com uso frequente da técnica da repetição,
que é própria da canção e serve para marcar a intensidade, toda a valorização
do «lá» e a consequente oposição com o «cá».
O encadeamento das estrofes, a
repetição do tema reforçam o sentimento de saudade marcado pela simplicidade
que é quase a nota principal do poema. Como não há adjetivos, os nomes são
muito expressivos e Gonçalves Dias usa-os de forma acumulada. Daqui resulta um
poema com uma carga de lirismo enorme, marcado pela simplicidade e sentimento
de exílio. O poema pode ser visto como exemplo da poesia específica do Brasil,
embora seja feita fora do Brasil. Os elementos basilares são elementos da
natureza. “palmeiras”, “sabiá”.
Há autores que, nas suas críticas, o
consideram um dos poemas mais belos da literatura brasileira pelo tom de
saudade, simplicidade e solidão e pelo seu alto grau de equilíbrio, vindo da
simplicidade e da melodia.
Voltando ao título, «exílio»
é um nome que remete para uma situação em que determinada pessoa está fora do
seu país de origem, onde ela gostaria de estar. O exílio pode ser voluntário,
quando o indivíduo decide ir para outro lugar por vontade própria, como foi o
caso de Gonçalves Dias, que se deslocou a Portugal para estudar, ou forçado, como,
por exemplo, Camões quando foi para a Índia.
O tema do texto é a exaltação
e a nostalgia da terra natal, uma temática muito cara aos românticos, para os
quais o sentimento que diferencia o homem dos outros animais é precisamente o
amor da pátria. Para evitar que os habitantes das localidades mais inóspitas do
globo se precipitassem para as regiões temperadas, provocando uma catástrofe, a
providência divina ter-lhes-ia infundido o “instinto da pátria”, que “colou os
pés de cada homem ao seu torrão natal, com um imã invencível: os gelos da
Islândia, e os areais abrasados da África estão povoados” (Chateaubriand, in O
génio do cristianismo). Quanto mais adversas as condições de um país, maior
a força desse instinto, que decai naquelas latitudes onde a facilidade da vida
e as riquezas destroem os vínculos naturais que prendem o homem à terra natal.
Esses elos podem residir em pequenas coisas, como no sorriso dos pais ou no
latido de um cão, mas é sobretudo a paisagem que infunde com mais intensidade a
afeição pela pátria. No caso da literatura brasileira, o texto que fixa o
sentimento de que, comparada à paisagem natal, a natureza de outros países
parece inferior é “Canção do Exílio”.
O sujeito poético, em versos
heptassilábicos, começa por destacar dois símbolos brasileiros: o sabiá, que
representa a rica fauna brasileira, e as palmeiras, que representam a flora. De
seguida, compara o lugar onde se encontra no momento da enunciação, «aqui», com
a “minha terra”, introduzida logo no primeiro verso, e repetidamente referida
como «lá», atestando, assim, a distância que os separa. Em todas as comparações
que estabelece, ressalta a superioridade da terra natal em relação à do exílio.
Assim, compara as aves da terra natal com as de «lá», que não gorjeiam como
«aqui», o que significa que a riqueza natural existente no Brasil não se
encontra em nenhum outro local. Note-se, também, que o «eu» não especifica
nenhuma ave, antes se lhes refere de forma geral. A antítese «lá» e «aqui»
indicia que o sujeito poético não está em solo brasileiro e o poema constitui
uma vaga lembrança das saudades da pátria.
As comparações prosseguem na quadra seguinte,
sempre exaltando a pátria amada e a natureza e colocando-a acima daquela onde
se encontra fisicamente. A primeira comparação (“Nosso céu tem mais estrelas”)
remete para o ufanismo, isto é, para a ideia do ideal: as estrelas que se veem
e brilham no céu brasileiro são exatamente as mesmas que brilham no céu onde o
«eu» se encontra – Portugal. A pátria descrita pelo «eu» parece muito melhor do
que é na realidade. Por exemplo, não fala nas questões da discriminação, das
profundas desigualdades sociais ou da escravatura. A idealização da natureza
prossegue nos versos seguintes, ao mencionar as “nossas várzeas”, que têm mais
flores, e os “Nossos bosques”, que têm mais vida. Os dois versos finais remetem
de novo para a idealização: “Nossa vida / mais amores”. O Brasil é um local
paradisíaco. Ou seja, partindo dos elementos mais prosaicos da natureza (as palmeiras,
o sabiá, as estrelas, as flores), as comparações estabelecidas pelo sujeito
poético acabam por atingir, num crescendo, a própria vida, que, diminuída e
amesquinhada no exílio, alcança a plenitude na terra natal. Note-se, por outro
lado, que o «eu» não se refere àquilo que o Brasil possui e que falta à terra
do exílio, optando por comparar coisas que existem em ambos os espaços
(estrelas, flores), para afirmar sempre a superioridade que esses elementos
adquirem na terra natal.
A comparação mostra como o sujeito
poético prefere, em vez de enumerar as coisas boas da sua terra, o confronto das
mesmas com as comuns da terra onde se encontra exilado, constituindo a
localização o critério para determinar a sua preferência. Estrelas, várzeas,
flores, bosques, vida, amores – tudo isto existe em Portugal e no Brasil. O
que, de facto, provoca a saudade não é, portanto, a sua simples existência, mas
a qualidade que a existência desses elementos adquire quando enquadrados na
moldura da pátria. O sujeito poético não compara o que a sua terra natal tem
com o que a terra do exílio não possui; sugere, isso sim, o maior valor de que
as mesmas coisas se revestem quando localizadas no Brasil. Por outro lado, não
é a evocação dos elementos (palmeiras, aves, etc.) que desperta a saudade, mas
é esta que, como se pré-existisse a qualquer elemento objetivo, oferece ao «eu»
poético a afetividade com que «julga» o «aqui» e o «lá». Não há qualquer juízo
objetivo ou realidade objetiva, pelo contrário: toda a certeza do sujeito de
enunciação é subjetiva, ou seja, é a sua convicção dogmática de que, qualquer
que seja o objeto, tudo o que pertença ao país de origem é superior ao
estrangeiro.
A partir da terceira estrofe,
contactamos com o estado de alma do sujeito poético relativamente à sua pátria,
destacando-se um sentimento: a saudade. Além dela, ele dá-nos conta da sua
solidão e do pensamento aturado voltado para a terra natal: “Em cismar,
sozinho, à noite…”. Observe-se que o adjetivo se encontra isolado por vírgulas,
indiciando a extrema solidão que o magoava, a solidão meditativa e noturna,
exatamente o ambiente adequado à reflexão e à manifestação de estados
nostálgicos e melancólicos. Os dois versos que retomam os dois versos iniciais
do poema e que formam uma espécie de refrão indicia a obsessão do «eu» com a
sua terra natal. De facto, depois de descrever o seu estado de alma, em que dá
destaque à sua condição meditativa propícia à saudade, o sujeito poético repete
esses versos, o estímulo que esteve na base da sua obstinada nostalgia.
Os quatro versos iniciais da estrofe
seguinte enfatizam de novo a saudade e a solidão que sentia. A sua terra tem “primores
/ Que tais não encontro eu cá”. O nome «primores» acentua a ideia de que a
saudade não nasce dos atributos peculiares da terra brasileira, mas da
insistência em conferir maior valia a coisas que se encontram em toda a parte,
quando estão em solo nativo. Seguem-se os versos que repetem, enfaticamente, a
melancolia e a nostalgia, prosseguindo o estado obsessivo: o «eu» não se limita
a repetir o tópico da terra natal; vai mais longe, reiterando a solidão que
favorece a sua lembrança. Podemos concluir que esta estrofe obedece a uma
estrutura tripartida: a “racionalização” sintética da preferência do «eu» pela
pátria (dois versos); a reiteração da situação afetiva de onde nasce o
sentimento da saudade (dois versos seguintes; o retorno da obsessão fundamental
(dois versos iniciais).
Já na última estrofe dá conta do seu
desejo de regressar ao solo pátrio e de poder ver de novo as suas belezas: “Não
permita Deus que eu morra, / Sem que eu volte para lá…”, mas, ao mesmo tempo,
indicia o pressentimento doloroso de que o exílio se poderá tornar definitivo.
O advérbio de lugar «lá» designa, de novo, a terra natal, é o eco sintético das
palmeiras, do sabiá e de tudo aquilo, em suma, que tem um valor incomparável no
seu país. Esse advérbio, por outro lado, opõe-se antiteticamente a outros, como
«aqui», «cá» e «por cá».
Formalmente, o poema é
constituído por cinco estrofes: três quadras e duas sextilhas. Desses vinte e
quatro versos, dois foram usados na composição do hino brasileiro: “Nossos bosques
têm mais vida, / Nossa vida, (no teu seio)mais amores”. Os versos ímpares são
brancos (isto é, não possuem rima: “estrelas” / “vida”), ou apresentam rima
toante (“palmeiras” / “gorjeiam”),
enquanto os pares apresentam rima consoante (“flores” / “amores”). Assim sendo,
o esquema rimático é o seguinte: ABCB nas quadras e ABCBDB nas sextilhas.
Além da rima, outro processo que
contribui para a homofonia do poema é a repetição. Assim, podemos observar que
os versos 1 e 2 da primeira estrofe (“Minha terra tem palmeiras / Onde canta o
sabiá”) são retomados integralmente na terceira e na quarte e, com alteração,
na quinta, convertendo-se numa espécie de estribilho ou refrão. Além disso, a
estrofe número três é integralmente repetida na quarta (vv. 9-12 / vv. 15-18).
Verifica-se também a repetição de palavras isoladas, como “gorjeiam”, nos vv 3
e 4; “nosso” e as suas variantes nos vv. 5 a 8; “mais”, nos mesmos versos; “primores”,
nos vv. 13 e 21; “sem”, nos vv. 20, 21 e 23; “lá”, nos vv. 4, 10, 16 e 20; “canta”,
nos vv. 2, 12, 18 e 24; “eu”, nos vv. 10, 14, 16 e 19; “que”, nos vv. 3, 14,
19,20, 21, 22 e 23). Todas estas repetições proporcionam a grande musicalidade
que perpassa a composição poética.
No que diz respeito ao ritmo, esta
caracteriza-se pela repetição de sons agrupados em pequenas unidades regulares.
Nas línguas novilatinas, o ritmo poético é determinado pela tonicidade das
vogais, isto é, pela sucessão de sílabas fortes e fracas, podendo haver também
sílabas de tonicidade intermediária. “Canção do Exílio” foi escrito em versos
heptassilábicos ou de redondilha maior. O esquema rítmico dominante é dado
pelos acentos na terceira e na sétima sílabas de cada verso, como se pode
constatar pela análise da primeira estrofe, na qual esse esquema é quebrado apenas
no terceiro verso, acentuado na segunda, quinta e sétima sílabas:
1. Mi | nha | te | rra | tem | pal | mei | ras, --/---/ [3-7]
2. On | de | can | ta | o | sa | bi | á; --/---/ [3-7]
3. As | a| ves | que a | qui | gor | jei | am -/--/-- [2, 5, 7]
4.Não | gor | jei | am | co | mo | lá. --/---/ [3-7]
De acordo com o esquema, a quebra do
ritmo dá-se quando o sujeito poético introduz o tema da terra estrangeira: é
como se as aves do exílio, único elemento estrangeiro referido na estrofe, desafinassem
o coro dos elementos nativos. Para confirmar essa impressão, a mesma quebra de
ritmo ocorrerá no verso 14, que também faz referência ao «cá» onde o «eu» se
encontra no momento da enunciação: “Que | tais | en | con |tro eu
| cá” [2-5-7-].
Na última estrofe, quando o sujeito
poético exprime o receio de que o exílio se torne permanente e afirma o desejo
de retornar à terra natal, estrofe, portanto, em que a tensão atinge o nível
mais elevado, o ritmo também sofre alterações:
19. Não| per | mi | ta | Deus | | que eu | mo |
rra, --/---/ [3-7]
20. Sem | que eu | vol | te | pa | ra | lá; --/---/ [3-7]
21. Sem | que | des | fru | te os | pri | mo |
res ---/--/ [4-7]
22. Que | não | en | com | tro | por | cá; ---/--/ [4-7]
23. Sem | qu’in | da a | vis | te as | pal | mei
| ras, ---/--/ [4-7]
24. On | de | can | ta o | sa | bi | á --/---/ [3-7]
Deste modo, a quebra do ritmo é uma
escolha doo poeta, que, consciente do seu ofício, o utiliza e às suas variações
para reforçar o sentido do poema. O esquema rítmico dominante é 3-7. As quebras
ocorrem nos versos 3 e 14 (acentuados em 2-5-7) e nos versos 21, 22 e 23
(acentuados em 4-7).
Em suma, o poema qualifica, em tons
superlativos, a terra natal, porém a qualidade atribuída é em si mesma
abstrata. O sujeito poético não descreve qualquer aspeto particular da sua
terra, optando por partir do sabiá, a ave-símbolo do Maranhão, terra natal de
Gonçalves Dias, para a sobrevalorizar. O Brasil, nesta composição, não é isto
ou aquilo; é sempre mais do que o outro espaço.
“Canção do Exílio” é um poema
romântico que veicula uma saudade melancólica e a aspiração a um país edénico,
a uma terra ideal, a uma pátria sonhada e idealizada, constituindo o retorno à
terra natal uma variante da nostalgia romântica. Por outro lado, a composição
apresenta um estilo onde predominam os nomes e os adjetivos sobre os verbos,
apontando para uma conceção não dinâmica da realidade, como se pode constatar
pelo facto de, entre os dez verbos nela presentes (“ter”, “cantar”, “gorjear”, “cismar”,
“encontrar”, “permitir”, “morrer”, “voltar”, “desfrutar”, “avistar”),apenas um –
“voltar” – indicar movimento.
A saudade do torrão pátrio é um sentimento
profundamente brasileiro, na forma de um desprezo cego pela realidade objetiva
do país. Boa ou má, essa realidade jamais conseguirá apagar a saudade e o amor
obstinado pelo seu país.
sábado, 17 de dezembro de 2022
Análise do poema "Leito de folhas verdes"
O tema do poema é a espera,
ou melhor o poema é um lamento do que passa durante p período de espera, com
todos os sentimentos subjacentes: amor, saudade, fidelidade.
Por outro lado, o texto denota
muitas semelhanças com as cantigas de amigo: o sujeito é feminino (“Eu sou
aquela…”); o conteúdo aproxima-o das albas ou alvoradas, pela referência ao amanhecer;
o amado / amigo está ausente; a mulher apaixonada exprime o seu lamento.
Quanto à construção do poema,
podemos encontrar dois pólos. Por um lado, somos confrontados com o sentimento
da índia e com a construção da sua psicologia. Desde logo, há uma alteração do
ambiente que a rodeia: começa-se com a noite, que vai progressivamente dando
origem ao dia, o que implica uma descrição diferente da natureza. Por outro
lado, com o surgimento da manhã, as flores abrem e a mulher começa a desanimar
com a espera. A ligação entre a natureza e a mulher tem um grande efeito lírico
e harmonioso.
A primeira estrofe abre com uma
interrogação retórica que mostra a tensão e a ansiedade amorosa do «eu»
feminino pela ausência e, sobretudo, pela demora da chegada do amado (Jatir),
que ela questiona, sentimentos traduzidos pelas expressões “a tanto custo” e “voz
do meu amor”. A viração e o vento simbolizam a mudança, enquanto as folhas
representam o movimento de iniciação ou ritual. Além disso, a cena da espera
tem lugar à noite: a “viração da noite”, que é doce porque rumoreja
(personificação) e indicia a bisca de intimidade, está ligada ao bosque, que se
opõe ao espaço elevado (a colina ou a montanha), característico do dia. Nesta
perspetiva, dá-se a eufemização da não chegada do objeto amado, através da
personificação da voz do amor e do vento, na noite e no bosque. Os elementos da
natureza, em suma, corroboram o estado de espírito da mulher, a sua angústia, a
sua ansiedade, etc. Essa harmoniosa com a natureza, com aquele cenário harmonioso,
parece transformar Jatir, o amado, na figura do homem/ideal que ela ama ou que a
desperta para o amor. Deste modo, é possível questionar se ela ama mais o
sentimento do amor e a sua sensorialidade ou o homem.
Na segunda e na terceira estrofes, é
descrito o leito de amor, feito sob a copa de uma “mangueira altiva”, árvore que
simboliza o elemento fecundador, desde logo porque o sujeito poético se
encontra debaixo dela e em contacto com a terra, iluminada pela lua, símbolo da
reprodução e da fecundação. E tudo isto sucede à noite, o tempo em que a
semente lançada no solo germina, para nascer de dia. O facto de a mulher estar
debaixo da mangueira e sobre um leito coberto por um tapete de folhas e
iluminada por flores associa-se à ideia da maternidade. Estas imagens remetem
para o imaginário do amor e para a fecundação, associadas à expectativa do
amor. Nota-se ainda que a mulher está ansiosa e tensa, porém esperançosa, visto
que, quando se refere ao leitor, o apelidar de “nosso”, apontando para a ideia
de partilha já assegurada.
Deste modo, o nome «leito»,
determinado pelo determinante possessivo «nosso», sugere claramente que se
trata do leito nupcial, que, ao ser coberto por ela, de forma zelosa, com um “mimoso
tapiz de folhas brandas”, no momento em que o “frouxo luar brinca entre flores”,
evidencia a comunhão do sujeito poético com a natureza. Tudo isto decorre num
cenário harmonioso, mesmo que noturno, como se comprova através do uso dos
adjetivos “mimoso” e “brandas”, bem como do verbo “brincar”. Estas imagens, por
outro lado, sugerem um ambiente onde reina a paz e o bem-estar. O papel da
natureza é o de amiga e bem-feitora, tal como sucede em várias cantigas de
amigo.
A imagem do leito e a sua ligação à
terra transformam as folhas (símbolo do progresso e da transformação) em algo
também ligado à noite, visto que a sua seiva, potencialmente transformadora,
está ao serviço do descanso ou da resignação. Por seu turno, a mangueira,
enquanto árvore, é o símbolo da vida em perpétua evolução e em ascensão para o
céu, evocando a simbologia da verticalidade. Além disso, está associada à
construção de um cenário íntimo, pelo que pode pensar-se também como símbolo
fálico. Por último, há que considerar que esse cenário natural traduz toda a
doçura resultante do ansiado encontro amoroso: o mimoso tapiz de folhas
brandas; o frouxo luar brinca entre as flores; o bogari solta o mais doce aroma
(estrofe seguinte).
Na terceira estrofe, a imagem da
flor que se abriu e do doce aroma que se solta do bogari remetem para o
desabrochar da mulher, que reconhece estar pronta para o amor, tendo consciência
de que deve ficar à espera, no silêncio da noite: a flor abriu-se, o aroma
expande-se, o bosque exala. Esse desabrochar e essa consciência são recentes (“há
pouco”) e são a consciência do conhecimento do amor.
Na quarta estrofe, o amor é
apresentado como “mágico”, mas natural(“respira-se”), luminoso, mas longínquo (“lua
e estrelas no céu”), místico (“preces”), contudo vivido como dom supremo (“melhor
que a vida”). O último verso da quadra confirma que se trata de um amor
perfeito: “um quebranto de amor, melhor que a vida”.
Na quinta estrofe, a mulher é
associada à flor – símbolo da beleza e do princípio passivo do amor –, que
depende do elemento ativo, o sol (o amado), fonte de luz, calor e vida. A
figura do sol simboliza a potência masculina, porém ela ainda não é conhecida,
apenas vislumbrada, como “doce raio de sol” que dá vida. A figura feminina é
uma espécie de mulher virtual, dado que lhe falta o raio de sol – o princípio masculino
– para a efetivar como mulher. Assim sendo, o sujeito poético tem consciência
de que o ser feminino apenas se revela e se completa com o amor e que este lhe
proporciona vida. A imagem dos versos 3 e 4não deixa lugar a dúvidas: a jovem é
a flor que depende dos raios de sol (a presença do amado) para se realizar e
viver: “Eu sou aquela flor que espero ainda / Doce raio do sol que me dê vida.”
As duas estrofes seguintes constroem
a ideia do amor único e da dedicação exclusiva ao amado a partir de uma série
de contrastes: espacial (vales – feminino vs. montes – masculino, lago –
circundado do corpo vs. terra – circundante), pontuando o imaginário do corpo;
temporal (dia -masculino vs. noite – feminino), acentuando o género; abstração
(pensamento) vs. concretude (posse: “és meu, sou tua”), indicando que a
interação entre a figura masculina e a figura feminina é caracterizada pela
exclusividade; pragmática (visão / conhecimento – olhos), contacto (lábios),
atividade (mãos na cinta). Por outro lado, o amor vence todos os obstáculos (“Sejam
vales ou montes, lago ou terra, / Onde quer que tu vás, ou dia ou noite”); a
figura feminina é idealizada – ela dedica total fidelidade ao seu amado: “Outro
amor nunca tive: és meu, sou tua!”, etc.
O último verso da antepenúltima
estrofe (“A arazoia na cinta me apertaram”) configura a materialização de um
compromisso, a realização de um voto. Os índios usavam ao redor da cintura uma
saia de plumas de ema, em certas cerimónias, e as viúvas, na Idade Média,
costumavam depositar um cinto sobre a tumba dos maridos quando renunciavam à
sua sucessão, o que aponta para a estreita relação entre cinto, castidade e
fecundidade. No mundo greco-romano, quando uma jovem desapertava o seu cinto,
entendia-se que setinha entregado a um homem. Assim, a arazoia na cinta
associa-se à castidade, passivamente imposta e aceite, neste caso, pela cultura
indígena. Nesta estrofe, há a tomada de consciência por parte da mulher de que
está pronta para a vida amorosa e para a exclusividade do amor, visto que a
arazoia ainda lá está, ou seja, estamos perante a imagem da mulher que ainda é
virgem e a espera por que tal aconteça.
A última estrofe dá conta da
desilusão do sujeito poético: com a chegada da manhã (“lá rompe o sol”), a
esperança e a expectativa dão lugar à deceção e à tristeza, pois Jatir não
responde ao seu chamamento. Deste modo, pede à brisa da manhã que leve consigo
as folhas do leito inútil: “nem tardo acordes / À voz do meu amor, que em vão
te chama!”; “do leito inútil / A brisa da manhã sacuda as folhas!”. Isto não
significa, porém, o fim da esperança, pois Tupã vai sacudir as folhas, desfazer
o leito, mas elas continuarão a existir.
Assim, a mulher amada somente a
imagem, a memória, visto que Jatir não acode ao seu chamamento, está longe. A
interpelação de Tupã, um deus masculino da mitologia tupi-guarani que
representa o trovão, vai no sentido de ele observar o sol que surge no
horizonte. O leito de folhas de árvore representa a evolução da condição de
menina para a de mulher, condição inútil, mas esperançosa porque o leito é
visitado apenas pela brisa, imagem do anseio e da esperança femininas.
O pedido da jovem a Tupã para que
faça com que a brisa (o desejo) sacuda as folhas do leito traduz o seu sonho e
desejo de amar. Tupã sabe onde nasce o sol, que este é um elemento masculino e
que a sua natureza é procurar a mulher para se completar. Esse desejo de amar e
a comunhão com o amado são traduzidos, no poema, através da progressão temática
e de contrastes: chamada vs. não resposta; esperança vs. impaciência/ansiedade;
espera vs. ausência do esperado; vida vs. não-vida. Estas polaridades revelam o
universo de valores do sujeito poético: a mulher e o homem necessitam um do
outro para se tornarem seres completos.
Em suma, este poema configura também
uma declaração de amor marcada pela ausência e pela angústia da espera por
parte da mulher, cujo estado de espírito vai evoluindo ao longo da composição.
Inicialmente, encontramo-la de noite, questionando a ausência e a demora do
amado, mas esperançosa no regresso de Jatir, cujos passos são movidos pela voz
do puro sentimento da amada que ficou em sua casa (a floresta, debaixo de uma
mangueira). O decorrer da noite traz o vento e as folhas fazem barulho nos
altos bosques, enquanto a jovem permanece sob a mangueira, local onde foi
construído o leito, que ela cobriu com suaves folhas e que brilha através do
luar que rompe entre as flores. A noite avança pela floresta e a flora, na sua
diversidade, solta os seus aromas, entre as quais estão os das flores do
tamarindo e do bogari.
A lua e as estrelas brilham, os perfumes
das flores noturnas espalham-se levados pela brisa, construindo-se, assim, uma
imagem romântica, um ambiente mágico em que o sujeito poético é transportado
para um mundo onírico, no qual ela pode viver o seu grande amor, pois aí não
existe a triste realidade da vida, uma realidade de abandono e de solidão.
O alvorecer rompe e com o nascimento
do sol as flores começam a desabrochar, enquanto a mulher, qual flor vegetando
sem o astro-rei, espera que a energia deste lhe dê ânimo para prosseguir a
espera. O sujeito poético imagina o seu amado caminhando, de dia ou de noite, atravessando
vales, montes, lagos, terras, a quem ela devota todo o seu carinho e desejo, pois
ele é o seu único amor: os seus olhos nunca viram outros olhos, nem os seus
lábios beijaram outros lábios, nem outras mãos apertaram a sua saia na cintura.
No verso 29, a narração retoma a
terceira estrofe e compara o aroma dessa flor, no momento presente, com o aroma
da noite anterior. Aqui começa a mostrar-se desiludida, pois, tal como o
perfume das flores, a sua esperança começa a esvair-se com a chegada do dia.
A nona estrofe retoma a primeira para
mostrar a consciencialização do sujeito poético em relação ao não regresso do
amado. Assim sendo, o leito, tão bem cuidado e construído com amor, torna-se
inútil sem a presença do homem, por isso pede à brisa que o desfaça.
Formalmente, o poema é constituído
por nove quadras, em versos decassilábicos brancos, com ritmo regular, com
exceção da quarta estrofe e da rima toante entre “brisa” e “vida”, que remetem para
a ideia de mudança, veiculada pela brisa. Estilisticamente, destacam-se as
aliterações em torno do som /s/, que sugerem o som da brisa e o balanço das
árvores, e em /n/,que sugere lentidão, que se coaduna com a ideia da espera
lenta da jovem relativamente ao seu amado, que não chega. Tem igualmente
importância a reiteração de determinados vocábulos, como “amor” (cinco vezes), “folha”
(três vezes), “flor” (cinco), “leito” (duas), “lua” (duas) e “sol” (três).
Estas repetições apontam para a temática que domina o poema (o amor), para o
ambiente natural em que se localiza (sol, lua) e para um espaço específico (folhas,
flor, árvores), formando a imagem de uma floresta. Temos também a repetição de
certas palavras no mesmo verso: “prece” (v. 11), “olhos” (v. 25), “lábios” (v.
26), que reforçam a imagem da pureza (prece) que surge a par da sensualidade
(olhos e lábios), uma imagem estereotipada da figura feminina, embora neste
caso se refira a um ser feminino indígena, interpretada e idealizada pelo olhar
e pela cultura europeus. Além disso, encontramos a repetição parcial do verso 9
(“Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco”), no 29 (“Do tamarindo a flor jaz
entreaberta”), a qual marca a progressão do tempo desde o anoitecer até ao
amanhecer, tendo em conta que a flor referida abre à noite e fecha com a chegada
do sol. Este desabrochar e fechar da flor coaduna-se com os sentimentos e as
esperanças do sujeito poético, que está esperançado à noite, mas, com a chegada
do astro-rei, no dia seguinte, vê essa esperança apagar-se, ir-se desfazendo
lentamente. Por seu turno, o verso 2 (“À voz de meu amor moves teus passos?”) repete-se
parcialmente no 34 (“À voz do meu amor, que em vão te chama!”), marcando-se
assim dois tempos: no primeiro, correspondente à primeira estrofe, o sujeito
poético ainda acredita que a sua voz pode guiar os passos do seu amado durante
a caminhada de regresso, atravessando vales e montanhas; no caso do segundo, a
presença da locução adverbial “em vão” aponta para a inutilidade da espera e a
tomada de consciência de que Jatir poderá não voltar de todo. O verso 10 (“Já
solta o bogari mais doce aroma!”) indicia que tanto a flor do bogari como a do
tamarindo exalam um melhor aroma durante a noite do que de dia, ao ser repetido
no verso 30 (“Lá solta o bogari mais doce aroma”). O sujeito poético compara a
vitalidade do seu amor, reforçado pela força abstrata da prece, à intensidade
do aroma, que é mais forte à noite. Contudo, ao amanhecer, está sem ânimo, sem
vitalidade, com pouca esperança de que o seu amado regresse. Ainda no que diz
respeito a recursos estilísticos, o poema contém diversas metáforas. Nos versos
9 e 10 (“Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco, / Já solta o bogari mais doce
aroma!”), marca-se a passagem da noite para o amanhecer através do desabrochar
das flores noturnas que exalam um doce perfume. A metáfora/imagem presente
entre os versos 29 a 32 permite associar os sentimentos da mulher à natureza.
Assim, se a intensidade do aroma das flores era superior durante a noite, as
esperanças da jovem, que durante a noite fortaleciam o seu coração, estão-se
desfazendo à medida que o dia se aproxima.
sexta-feira, 16 de dezembro de 2022
Análise do poema "Mangueira", de Gonçalves Dias
Análise do poema "Marabá", de Gonçalves Dias
Este poema, que relata a luta de uma
jovem mestiça para ser aceite e amada pela tribo, foi publicado no livro Últimos
Cantos, em 1851. A composição é constituída por onze estrofes – seis quadras
e cinco sextilhas, num total de cinquenta e quatro versos, de esquema rimático
AABCCB / DEFE, contendo, portanto, rima emparelhada, cruzada e interpolada. No
que diz respeito à métrica, os versos oscilam entre os cinco e as onze sílabas
métricas.
A única palavra que constitui o título
– Marabá – é de origem indígena, da tripo tupi-guarani, e era usada pelos
índios daquela tribo para designar as pessoas indesejáveis no seu seio. Para
eles, quando uma criança nascia com uma qualquer deficiência física ou nasciam
gémeos – no caso, o que nascia por último poderia trazer tanto benefícios como
malefícios –, mas, como receavam desgraças para a tribo, preferiam sacrificar a
criança. A palavra era usada também para indicar as pessoas nascidas do
encontro de indígenas com brancos, mestiços portanto. Deste modo, podemos
concluir que essas pessoas eram discriminadas pela tribo, pois consideravam-nas
imperfeitas e indignas da sua cultura.
No que diz respeito à estrutura do poema,
temos uma estrutura dialógica entre Marabá e um interlocutor masculino indeterminado.
Somos colocados perante quatro situações:
1.ª) Referência aos olhos.
2.ª) Referência ao rosto.
3.ª) Referência ao colo.
4.ª) Referência aos cabelos.
Em todos os casos, o sistema é o
mesmo: é proposta uma situação por Marabá, mas logo a seguir recusada por
alguém, que acrescenta algo mais.
Desde os primeiros versos, encontramos
um «eu» poético feminino solitário (“Eu vivo sozinha”), que não é aceite pelo
outro e que, por isso, começa a questionar essa rejeição: não seria ela filha
do mesmo deus, para ser rejeitada daquela forma. “Acaso feitura / Não sou de
Tupá?” (Tupá ou Tupã era uma divindade de origem indígena que designava o
trovão). A resposta é-lhe dada por uma figura anónima: ela é «Marabá», ou seja,
produto da mistura do índio e do branco. Quer isto dizer que a jovem é
rejeitada por ser fruto da miscigenação; assim sendo, o seu interlocutor será
uma pessoa branca ou indígena, ou ambas. Por outro lado, fica desde já claro
que a fala do «eu» lírico é reiterada por quem fala com ela. A rapariga
apropria-se do discurso dos outros, porque está tomada por eles, porque se constitui
neles, de forma que, mesmo com o uso de aspas e travessões, não é tão óbvio
como poderia parecer à partida distinguir quando/quem está a falar.
Seja como for, fica desde já
estabelecido que Marabá está cercada por uma barreira étnico-racial
intransponível e que a prende em si mesma: não é puramente indígena nem é
puramente europeia. No fundo, estamos perante uma denúncia e crítica do
eurocentrismo, que não aceitava a miscigenação, mesmo que esta constituísse uma
realidade comum a todos os povos, incluindo os europeus. Porém, há que notar
que, no poema, o indígena também a nega, pelo que a atitude de rejeição é
unânime, o que faz com que ninguém aceite Marabá como ela é e mostre que a
grande fronteira que é exposta no texto resida na origem étnica da jovem, que a
isola daqueles com quem ela se deveria relacionar.
Porém, Marabá não se conforma e
prossegue a sua busca inquietante, argumentando: os seus olhos são garços, são
da cor das safiras, têm luz das estrelas, um brilhar meigo, etc., ou seja, são
esverdeados, precioso, brilhantes e meigos, em suma, muito belos. Este conjunto
de metáforas presente na segunda estrofe associa a figura da mulher à natureza,
através de um conjunto de nomes que nomeiam elementos naturais e que estão
presentes no ambiente brasileiro: safira, estrelas, nuvens, mar. Dito de outra
forma, ao ver-se desprezada pelo seu interlocutor, a jovem enumera as suas
qualidades, as quais deveriam ser suficientes para a sua tribo a aceitar.
Sucede, porém, que essa é a forma como Marabá se vê, não como é vista pelos
outros, mesmo que tenha olhos belos.
De facto, a segunda e a terceira
estrofes veiculam dois olhares diferentes acerca da mulher: o primeiro é o dela
própria (“Meus olhos são garços, são cor das safiras”); o segundo é o do outro
(“Teus olhos são garços, / Responde anojado; mas és Marabá”). A jovem
autocontempla-se: traços das sua beleza de origem europeia são comparados com elementos
da fauna e da flora tropical, como os olhos cor de anajá (tipo de palmeira do
Maranhão); ela autoelogia-se, na tentativa de convencer e seduzir um elemento
do género masculino, ao comparar a cor dos seus olhos à safira, ao mar e ao
«céu anilado»; a cor da sua pele à brancura dos lírios e às “areias batidas do
mar”; enfatiza que a sua te é mais clara que as “aves mais brancas, as conchas
mais puras”; o seu cabelo é anelado em «ondas» e com tano fulgor como o “oiro
mais puro” e com a beleza de um beija-flor.
Em suma:
1. Os olhos de Marabá são garços
(esta característica remete para a sua origem europeia), mas logo a seguir são
recusados e sugeridos os olhos “bem pretos”.
2. O seu rosto é branco, mas é ultrapassado
pela preferência por um rosto moreno.
3. O colo é flexível e elegante, mas
também é recusado, sendo que o que se propõe não difere muito.
4. Ela tem cabelos louros e anelados,
mas o homem prefere-os lisos.
Por outro lado, o retrato de Marabá
pode ser sintetizado da seguinte forma:
• é uma índia mestiça, por oposição à índia genuinamente
brasileira;
• é bela, mas a sua beleza é desprezada pela
sua própria comunidade;
• tem olhos garços (verdes);
• a sua pele é alva (da cor dos lírios);
• os cabelos são louros, longos e anelados;
• vive solitária, desprezada pela sua tribo;
• vive desiludida, por sofrer de
discriminação.
Este quadro permite concluir que
temos aqui presente também a oposição patente em Iracema: a oposição
entre a índia e a virgem loura. Além disso, observando as características desta
mulher, podemos concluir que o seu retrato é idealizado e não corresponde aos
ideais indianistas, que valorizavam antes a figura do índio, que não está
obviamente representada nesta mulher branca. Marabá é descrita através de
comparações que a associam a elementos naturais como os lírios, o sol, o mar,
as safiras, as conchas e a flor de cajá, ou contrastivas com os traços
preferidos pelos indianistas, os quais não deixam lugar a dúvidas acerca do
facto de se entender que os indígenas, tal como a natureza exuberante, constituíam
símbolos pátrios, isto é, modelos a serem seguidos e difundidos, visando a
consolidação da identidade. O desprezo a que Marabá é votada pelos seus
relaciona-se com a noção segundo a qual as suas características físicas não
correspondiam ao que os indianistas sustentavam, daí que ninguém a procure, que
os homens fujam da sua figura e que não pertença à criação pagã, por ter sido
excluída do povo de Tupã.
O verso seguinte confirma a
rejeição: “Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes”. A partir daqui, a
mulher inicia uma jornada de busca desenfreada pela sua identidade, colocando-se
em face de si mesma para mostrar ao outro um sujeito que este não reconhece
nela. Marabá enumera um conjunto de traços, na sua ótica positivas, que deveria
levar à sua aceitação por parte dos outros: o rosto alvo, o colo mimoso, os
cabelos louros. No entanto, as respostas do seu interlocutor têm sempre como
fundamento a desconstrução dos seus argumentos. Cada um deles é contestado e
rebatido: ela é branca, mas o outro prefere um rosto «corado» e crestado pelo
sol do deserto; o colo é mimoso, mas o outro prefere o da “ema orgulhosa” e
vaidosa; os cabelos são louros, mas anelados, e o outro prefere cabelos lisos,
compridos e de outra cor. O discurso do interlocutor de Marabá assenta no
paralelismo adversativo, no sentido de reforçar os seus argumentos, que passam
por enfatizar as características do jovem tidas por ele como negativas e que
fundamentam a sua rejeição, afundando-a num caos interior.
Mediante isto, podemos concluir,
desde já, que Marabá, no processo de procura de uma identidade, se revela uma
figura mutável e multifacetada, pois ela é o que se vê em si, mas também aquilo
que o outro vê nela. A necessidade de ser aceite por este fá-la entrar numa jornada
em busca de si mesma, durante a qual ela procura salientar os seus traços positivos,
para agradar a esse outro. Isto significa que a aceitação de si própria está
condicionada à sua aceitação por parte do outro, algo que não acontece e que
potencializa a rejeição, o não ser aceite por ser o que é: uma mulher que
apresenta traços físicos tanto dos indígenas quanto do europeu branco. Deste
modo, Marabá não se encaixa em nenhum dos quadros: não pertence a uma etnia nem
à outra. Assim, é destituída do seu lugar de sujeito, o que proporciona uma
reflexão sobre a sua condição de cidadã, como o demonstram as duas estrofes
derradeiras, que constituem uma espécie de lamento: a jovem sente a
impossibilidade, mais por razões que estão fora dela do que dentro. O advérbio
«jamais» marca bem a sua solidão.
De facto, depois de todo o poema nos
colocar perante uma cidadã em busca do seu lugar na sociedade, as estrofes
finais mostram-nos uma pessoa derrotada: “Jamais um guerreiro da minha arazoia
/ Me desprenderá: / Eu vivo sozinha, chorando mesquinha, / Que sou Marabá!”.
Depois de interiorizar a rejeição de que é vítima, a mulher conclui: “Sou
Marabá”. Deste modo, ela parece ter aceitado a condição de que lhe foi imposta
pelo outro e, mesmo sofrendo, como se observa em “E as doces palavras que eu
tinha cá dentro / A quem nas direi?”, adota o mesmo discurso do outro, contra o
qual lutava anteriormente, o que indicia que Marabá abdicou da sua condição de
cidadã. Assim sendo, é lícito concluir que a mulher estava mais próxima de se
tornar cidadã quando o outro a rejeitava, rebatendo os seus argumentos, do que
agora, quando se vê como Marabá, isto é, como mestiça. O discurso do
interlocutor venceu.
O poema põe em discussão a
importância da questão da alteridade na construção da identidade. Marabá, a índia
mestiça, miscigenada, envidou todos os esforços para se afirmar enquanto pessoa
autêntica, com as suas características particulares e, naquele momento,
inovadores porque diferentes entre a sua tribo. No entanto, a sua identidade é
determinada pelo confronto de visões ideológicas opostas que são traduzidas nos
discursos conflituantes dela própria e do outro com quem dialoga. Marabá não se
consegue afirmar como o ser que vê em si, mas como é vista pelo interlocutor.
Assim sendo, o processo de construção da identidade consolida-se na
coletividade: negada e rejeitada por toda a sua comunidade, torna-se impossível
para ela a autoafirmação, o que faz com que a identidade mão seja um fenómeno
solitário, antes necessite de ser visto pelo outro. Por outro lado, por detrás do discurso do interlocutor de
Marabá, um discurso antimiscigenação, está a ilusão de uma raça pura, como se
fosse possível a existência de um qualquer povo que não sofresse algum tipo de
miscigenação. Esta ideologia, no texto, sobrepõe-se à realidade, face à derrota
da jovem. Deste modo, a identidade do indivíduo constrói-se em sociedade. Por
outro lado, convém ter presente que esta questão da miscigenação não é bem
vista na poesia da época, dado que o contacto entre os nativos do Brasil e quem
vinha de fora era sempre sinónimo de violência, degradação e morte. Assim
sendo, Marabá constitui uma espécie de metonímia do resultado da corrupção do
povo nativo por parte do homem europeu; um lamento de toda uma etnia que se vê
ameaçada pelo invasor branco e que, por isso, defende, com um instinto de
preservação, a superioridade da sua beleza étnica.
No que diz respeito a influências, no
poema podemos encontrar diversos traços românticos: a jovem indígena mestiça,
com olhos claros e cabelos loiros e anelados, que deseja usar a arazoia, o saiote
utilizado no ritual de casamento; o lamento pela sua solidão na tribo; a
rejeição no coração dos guerreiros; Marabá enquanto símbolo da incompreensão
amorosa: recusada por todos, fica só; a miscigenação; o exotismo que percorre o
poema. No entanto, é possível detetar também características da cantiga de
amigo: o sujeito poético feminino expõe a sua queixa amorosa a um interlocutor,
lamentando o desprezo a que é votada.