De acordo com a «definição actual» de romance histórico, este terá tido início no século XIX, com o Romantismo, período literário que valorizava imenso o passado histórico. Romances anteriores, como o Princess de Clives, da autoria de Madame de Lafayette, não cabem nesta classificação, uma vez que não possuem traços essenciais como a factualidade e o rigor histórico.
Assim, diversos autores consideram que o primeiro romance histórico foi a obra Waverley, saída da pena do escritor britânico Sir Walter Scott (1771 - 1832), natural de Edimburgo, Escócia, escrito em 1814 e que veio definir as características do género. Dentre as suas obras, a mais conhecida será, eventualmente, Ivanhoe, escrito em 1820. A sua obra, considerada globalmente, está associada à afirmação da história e dos interesses da Escócia, cuja sociedade retratou através da acção individual dos seus membros num contexto definido com pormenor. A sua influência espalhou-se pela Europa, chegando naturalmente a Portugal e sendo visível em Alexandre Herculano e Almeida Garrett, particularmente em O Arco de Santana.
1.1. Características do romance histórico
O romance histórico procura a recriação histórica, que passa, entre outras coisas, pela criação de ambientes, traduzidos pela chamada «cor local», obtida através de uma série de recursos:
- evocação, o mais fiel possível, da linguagem da época e dos diferentes grupos sociais;
- descrição pormenorizada do vestuário e da indumentária das personagens;
- reconstituição de espaços (cidades, castelos e monumentos), com especial incidência nos aspectos arquitectónicos;
- recriação de grandes movimentações das personagens (saraus, torneios, manifestações populares), procurando criar a ilusão de fidelidade ao tempo narrado;
- a presença de personagens referenciais, ao lado de personagens ficcionais, frequentemente os heróis dos romances históricos, na medida em que proporcionam ao autor maior / total liberdade criativa.
A procura dessa fidelidade ao real histórico leva os escritores a socorrerem-se de fontes diversas: «documentos antigos», «velhos livros», «memórias», etc. Exemplificativa deste aturado trabalho de pesquisa é a polémica que envolveu, há alguns anos, o jornalista-escritor Miguel de Sousa Tavares e o seu romance Equador, acusado de plagiar obras estrangeiras, ao incluir no seu texto extractos das mesmas.
1.2. O romance histórico português
O primeiro autor português a cultivar uma forma de romance histórico foi Alexandre Herculano (Lendas e Narrativas; O Bobo; Eurico, o Presbítero...), cujos protagonistas eram geralmente personagens medievais profundamente românticas no que diz respeito ao seu comportamento e forma de sentir e estar.
No entanto, é visível a sua preocupação com a veracidade nas constantes referências às fontes, pergaminhos ou manuscritos consultados.
No entanto, é visível a sua preocupação com a veracidade nas constantes referências às fontes, pergaminhos ou manuscritos consultados.
Outro autor a merecer destaque é Camilo Castelo Branco; porém, nas suas obras, a História serve somente como enquadramento a intrigas particulares. As próprias personagens históricas são manipuladas pelo autor de acordo com as suas intenções e objectivos narrativos.
Ainda no século XIX, Eça de Queirós «revolucionou», de certa forma, o conceito de romance histórico, nomeadamente na obra A Ilustre Casa de Ramires, onde colocou uma das personagens na pele de escritor, precisamente, de romances históricos, o que lhe permitiu a explicitação de alguns processos de construção deste tipo de texto.
Nas últimas décadas do século anterior (XX), o romance histórico ganhou novo fôlego, embora, tal como no passado, sujeito a diferentes concepções e abordagens.
1.3. Classificação do Memorial
A discussão em torno da designação do Memorial como romance histórico ou não prossegue. Sendo verdade que a obra transgride algumas das suas «regras» típicas, também é certo que evidencia alguns processos característicos da recriação do passado como, por exemplo:
- a linguagem das personagens;
- a descrição pormenorizada dos espaços físicos e de determinados ambientes;
- o relato de episódios que reconstituem acontecimentos históricos;
- a referência à indumentária das personagens.
Por outro lado, Memorial integra-se na concepção do romance histórico que alia personalidades, eventos e espaços históricos com personagens, acontecimentos e espaços ficcionados. No caso vertente, podemos identificar os seguintes elementos históricos:
a) Personalidades históricas:
- D. João V;
- D. Maria Ana Josefa;
- os infantes Maria Bárbara, Pedro e José;
- D. Francisco e D. Miguel, irmãos do rei;
- o músico Scarlatti;
- o arquitecto Ludwig;
- o padre Bartolomeu de Gusmão;
- o bispo inquisidor D. Nuno da Cunha;
- o censor do Paço;
- frei Boaventura de S. Gião;
- a madre Paula de Odivelas.
b) Eventos históricos:
- a vinda de D. Maria Ana Josefa;
- o casamento de D. João V e D. Maria Ana Josefa;
- o "voo" da máquina voadora em 1709, na Casa da Índia;
- os autos-de-fé (1711 e 1739);
- a edificação do convento de Mafra, entre 1717 e 1730;
- a bênção da primeira pedra do convento, ocorrida a 17 de Novembro de 1717;
- as procissões religiosas, como a do Corpo de Deus descrita no romance;
- as epidemias de cólera e de febre amarela em Lisboa, em 1723;
- as touradas;
- o sismo de 1723;
- os cortejos nupciais de 1729;
- a sagração da basílica do convento a 22 de Outubro de 1730.
c) Espaços:
- Lisboa e arredores (Palácio Real, Ribeira, Terreiro do Paço, Rossio, S. Sebastião da Pedreira, Odivelas, Azeitão, Arrábida...);
- Mafra e arredores: Alto da Vela, Pêro Pinheiro, Serra de Montejunto, Serra do Barregudo;
- Alentejo (Montemor, Évora, Vila Viçosa, Elvas, Aldegalega, Palácio de Vendas Novas, etc.).
Mas são, igualmente, diversos os aspectos ficcionados:
a) Personalidades:
- Sebastiana de Jesus, mãe de Blimunda;
- Blimunda e os seus poderes mágicos;
- Baltasar, ex-soldado, maneta e operário nas obras do convento;
- os pais de Baltasar (João Francisco e Marta Maria), sua irmã (Inês Antónia) e seu cunhado (Álvaro Diogo);
- João Elvas, amigo de Baltasar e antigo soldado também;
- os trabalhadores do convento: Manuel Milho, José Pequeno, João Anes, Francisco Marques, Julião Mau-Tempo, etc.
- a recolha das vontades, operada por Blimunda;
- o voo tripulado da passarola;
- a importância da música de Scarlatti na cura de Blimunda;
- a peregrinação de Blimunda durante dez anos em busca de Baltasar.
- casa de Blimunda;
- casa dos pais de Baltasar;
- abegoaria;
- etc.
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