O poema que serviu de base ao tema
musical foi composto em 1973 pelos compositores e intérpretes brasileiros Chico
Buarque e Gilberto Gil, para ser apresentado no programa “Phono 73”, que
divulgava os trabalhos, em duplas, dos maiores artistas agregados à editora
Phonogram.
A canção, graças ao seu conteúdo
profundamente crítico da situação política brasileira da época, acabou por ser
lançada apenas em 1978, tornando-se um dos maiores hinos anti-ditadura,
inscrevendo-se, portanto, no campo da música de protesto.
O tema do poema é a denúncia
da repressão, do autoritarismo e da violência que caracterizaram a ditadura no Brasil.
A composição abre com uma referência
bíblica a São Marcos: “Pai, se queres, afasta de ruim este cálice”. Esta citação
bíblica remete-nos para o calvário de Jesus Cristo, marcado pela perseguição,
pelo sofrimento e pela traição de que foi vítima. Por outro lado, ela contém um
pedido de um filho dirigido ao seu pai: o afastamento de si de um cálice. No
entanto, tendo em conta o contexto político brasileiro de então e a semelhança
de pronúncia entre o nome «cálice» e a forma verbal «cale-se» (semelhança essa
acentuada pela fonética do português do Brasil), é possível fazer outra leitura
desta passagem. Assim, o sujeito poético pede ao pai que afaste de si esse
«cale-se», isto é, implora-lhe que afaste a censura e a violência, dado que o
cálice contém «vinho tinto de sangue». Deste modo, o sujeito lírico estabelece
uma analogia entre a paixão (o sofrimento) de Cristo e o do povo brasileiro,
sujeito a um regime violento: na Bíblia, o cálice continha o sangue de Jesus;
no poema, o sangue é o das vítimas do regime.
Na primeira estrofe, o «eu»
interroga-se como será possível beber essa «bebida amarga», ou seja, como será
possível aceitar a amargura, a dor, o trabalho árduo e mal remunerado, como se
fossem coisas normais. Além disso, tudo isto é obrigado a aceitar calado, em
silêncio, uma referência clara à opressão e à ausência de liberdade de
expressão. De acordo com o próprio Chico Buarque, a «bebida amarga» é Fernet,
uma bebida alcoólica italiana que o cantor e compositor costumava beber.
Resta-lhe o peito, isto é, o que ele sente relativamente à situação e, quiçá, a
coragem e determinação para resistir.
O sujeito poético continua a
socorrer-se da linguagem metafórica de cariz religioso, afirmando-se «filho da
santa», subentendendo-se que se refere à pátria, entendida pelo regime político
como inquestionável, à semelhança de um dogma bíblico. Porém, preferiria ser
«filho da outra». Tendo em conta a sequência rimática, pode deduzir-se que o
termo a usar seria provavelmente «puta», contudo, por causa da censura, os
autores terão optado por uma linguagem mais «suave». O «eu» deseja outra
realidade, caracterizada pela inexistência da mentira, de autoritarismo e de
violência.
O início da segunda estrofe alude a
um método usado pela polícia militar: invadir, durante a noite, as casas das
pessoas, arranca-las das suas camas, prender umas e fazer desaparecer outras. A
consciência deste facto dilacera o sujeito poético, por acordar em silêncio
tendo consciência da violência que ocorria durante a noite e que,
eventualmente, também o atingiria («Se na calada da noite eu me dano»).
O sujeito lírico deseja soltar um
«grito desumano» contra a situação, procurando, assim, ser ouvido e combate-la.
O silêncio deixa-o atordoado, impotente, mas, apesar disso, conserva-se atento,
pronto para agir se surgir uma oportunidade. Entretanto, mantém-se passivo na
arquibancada, esperando que o «monstro da lagoa» surja. A expressão «monstro da
lagoa» remete-nos para o imaginário dos contos infantis, simbolizando o mal que
nos vem aterrorizar e que devemos temer. Neste sentido, a expressão poderá ser
entendida como uma metáfora da ditadura, do poder repressivo que estava
escondido, mas pronto para atacar a qualquer momento. Por outro lado, ela
designava também os corpos de pessoas desaparecidas que apareciam,
ocasionalmente, a boiar nas águas de um rio ou do mar, vítimas do regime
ditatorial.
A terceira estrofe abre com nova
metáfora – a da «porca gorda» –, que representa o governo ditatorial e corrupto,
que «já não anda», isto é, não funciona mais. A gordura remete para o pecado da
gula, ou seja, para a ganância que dominava a «porca», o governo, que, de tão
gorda(o), já não se consegue mexer. A «faca», nova metáfora, que simboliza a
violência e a brutalidade, já não «corta» por ter sido tão usada, ou seja, está
a perder força, eficácia. A alusão ao facto de ter sido muito usada sugere o
grau de violência que tem sido praticada sobre as vítimas pelas entidades
governamentais e policiais.
A referência à dificuldade de abrir
a porta representa o desejo de liberdade do «eu», que permanece silenciado, com
«essa palavra presa na garganta». De seguida, questiona-se de que adianta «ter
boa vontade», numa referência à passagem bíblica «Paz na terra aos homens de
boa vontade», sugerindo que não tem paz. De que adianta ter boa vontade para
com o governo se a paz não vem? Daí vem o «pileque homérico»: tudo estava tão
fora do lugar que é como se o mundo estivesse todo bêbedo.
Perante a impotência e a repressão,
mantém-se, no entanto, o pensamento crítico, mesmo que calado, representado pela
«cuca / Dos bêbedos do centro da cidade», isto é, as pessoas rebeldes e
desajustadas que procuram sobreviver e continuam a desejar e a lutar por uma
vida melhor.
A estrofe seguinte contrasta com as
anteriores, porque introduz a ideia da esperança, através da possibilidade de o
mundo não ser pequeno, ou seja, de o mundo não se limitar àquilo que o sujeito
poético conhece. Além disso, talvez a vida não seja um facto consumado, isto é,
talvez não tenha de ser tão dolorosa e a ditadura não seja uma circunstância
irremediável, eterna.
Numa atitude de rebeldia, o «eu» reclama
o direito a ser dono da sua vida e a escolher o que fazer com ela, de acordo
com os seus desejos e regras, sem ter de obedecer a ordens e regras de outrem.
É isso que significam os versos «Quero inventar o meu próprio pecado / Quero
morrer do meu próprio veneno». Para que tal se concretize, é necessário «perder
de vez tua cabeça», ou seja, é necessário derrubar o poder opressivo e
ditatorial. O sujeito poético deseja ser livre e reprogramar-se de tudo aquilo
que a sociedade conservadora lhe inculcou e deixar de estar subjugado a ela.
«perder teu juízo».
Os dois versos finais fazem
referência a métodos de tortura comuns na época: a inalação de óleo diesel por
parte das pessoas que eram presas. Além disso, apontam para uma tática de
resistência: fingir perder os sentidos, para que a tortura fosse interrompida.
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