Português: Análise do "Poema de finados", de Manuel Bandeira

terça-feira, 25 de julho de 2023

Análise do "Poema de finados", de Manuel Bandeira


    Ao contrário de muitas outras composições poéticas, este texto é caracterizado pela regularidade formal. Assim, é constituído por 12 versos octossílabos, distribuídos por três quadras, com rima entre o segundo e o quarto versos de cada estrofe, sendo os demais brancos ou soltos. Existe ainda rima interna nos versos 3 (“procura”/”sepulturas” – esta rima enfatiza o clima de morbidez presente no poema desde o verso inicial) e 11 (“quero”/”espero”).
    O tema do texto é a morte, mais concretamente o testemunho da perda do pai do sujeito poético, associado à sensação da morte do próprio «eu». A isto soma-se uma súplica do sujeito, órfão paterno, para que o leitor do poema tenha compaixão de si e lhe dedique uma oração. Note-se que o título se encontre no plural, pelo que não se refere “ao finado” pai, mas encadeia “pai e filho”, como se ambos estivessem “finados”, “mortos”. A palavra “finado” é o particípio do verbo «finar» e indica aquilo ou aquele que se finou, que faleceu (eufemismo).
    O primeiro verso do poema alude ao Dia de Finados: “Amanhã é dia dos mortos”. Esta é uma data da liturgia cristã, que cai oficialmente no dia 2 de novembro, posterior ao Dia de Todos os Santos, que aproxima o divino (santos) e o terreno (os mortos, a finitude).
    O culto dos mortos é um ritual muito antigo que faz parte da maior parte das religiões. Inicialmente, estava ligado aos cultos agrários e de fertilidade, dado que as pessoas criam que, como as sementes, os mortos eram sepultados com vista à sua ressurreição. No caso da Igreja Católica, o Dia de Finados foi criado como um vínculo suplementar entre os vivos e os mortos. Já no século I d.C., os cristãos rezavam pelos seus entes falecidos: visitavam os túmulos dos mártires para orar pelos que tinham morrido. Mais tarde, no século V, a Igreja passou a dedicar um dia do ano para rezar por todos os mortos, pelos quais ninguém rezava e dos quais ninguém se lembrava. No século X, a Igreja católica instituiu oficialmente o Dia de Finados e, a partir do século seguinte, os papas Silvestre II (1009), João XVII (1009) e Leão IX (1015) passaram a obrigar a comunidade a dedicar um dia aos mortos. No século XIII, esse dia passou a ser comemorado no dia 2 de novembro, porque o primeiro é a Festa de Todos os Santos. Com o passar do tempo, a celebração ultrapassou o seu traço exclusivamente religioso e passou a estar associado a um momento emocional: a saudade de quem perdeu entes queridos. Presentemente, o Dia de Finados é um dos feriados mais universais, sendo que as pessoas costumam celebrar os seus mortos levando flores aos túmulos e rezando por eles.
    O sujeito poético, através de formas verbais no imperativo na segunda pessoa do singular, dirige-se a um «tu», pedindo-lhe que vá ao cemitério e procure a sepultura do seu pai (dele, «eu» lírico), num tom confessional. A reiteração da forma verbal «vai», no imperativo, por ser idêntico à forma do verbo «ir» no presente do indicativo, suaviza a ordem e sugere um pedido.
    Neste poema, o «eu» poético procura a representação da presença do ouvinte, uma característica da língua falada. Assim, o «eu» dialoga com um «tu» implícito, propiciando um tom próximo da conversa e atenuando a distância entre o «eu» poético e o leitor. Exemplos deste diálogo são o verso 1 (“Amanhã que é dia dos mortos”) e os versos 2 a 8,onde o suposto diálogo com o interlocutor é marcado por formas verbais no imperativo (“vai”, “procura”, “leva”, “ajoelha”), através das quais o «eu» se dirige ao «tu» com uma série de ordens/pedidos. Desta forma, o sujeito poético cria um clima de cumplicidade entre ambos.
    A segunda quadra inicia-se com novo pedido do «eu» poético, através da linguagem coloquial, exemplificada pelo uso do advérbio de intensidade «bem» no verso 5: que o seu interlocutor leve rosas ao túmulo do seu pai. Este gesto de depositar flores numa sepultura corresponde ao cumprimento de um ritual católico para homenagear os que já partiram. A essa oferenda soma-se a postura / posição de humilhação reverente e religiosa (a genuflexão) e a prática da oração. No entanto, o verso seguinte introduz uma nota incomum e ilógica relativamente ao culto: a reza não se destina ao pai (morto), mas ao filho (vivo). Como se justifica este pedido, esta súplica? O filho, o «eu» poético, sofre pela ausência dos seus entes queridos mortos, nomeadamente o pai, de tal forma que a dor e a solidão que o caracterizam levam-no a desejar a morte.
    Neste contexto, o verso 8 é muito significativo: o sujeito poético, ao recorrer ao termo coloquial «precisão», mostra que a necessidade dele, do filho, é muito maior que a necessidade de oração do pai morto. A morte aplacaria o sofrimento de que padece enquanto vivo. Tudo isto, no fundo, casa com a visão cristã pessimista da existência: a vida é sofrimento e amargura. Este pessimismo é acentuado pela reiteração do pronome indefinido «nada», que representa o fim dos desejos e das expectativas em relação à vida: “Pois nada quero, nada espero”. As perdas dos entes queridos levam o sujeito poético a sentir-se só, por isso pede aos que estão de forma que se compadeçam do seu sofrimento. Ele sente essa perda como uma antecipação da sua própria morte, como uma sensação de morte em vida.
    Deste modo, a identidade do «eu» poético passa a ser a do pai morto, pois ele também se julga falecido. Relembre-se que um pai, normalmente, representa um modelo para o(s) seu(s) filho(s), além de simbolizar refúgio, proteção. Ora, sendo assim, perdê-lo é ficar só e por sua conta no mundo, desabrigado, desprotegido, caso não seja emocionalmente autónomo, como parece ser o caso do «eu» poético. Neste contexto, o último verso do poema constitui uma espécie de profissão de fé, uma completa identificação com o pai, sempre presente na sua vida.
    Para finalizar, uma última nota para o ritmo do poema, um ritmo entonacional, durativo e pausado, nomeadamente pela presença da pontuação, de que é exemplo o uso da vírgula no verso 7, que tem como efeito a criação de uma dupla leitura: o sujeito poético desdobra-se entre o «eu» e aquele do qual se fala. Um outro recurso usado pelo sujeito lírico é a chamada técnica do «feedback», cuja função é esclarecer o que o «eu» quer dizer. São exemplos deste processo os versos 3 e 4 e 7e 8.

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