No perfume dos meus dedos,
Há um gosto de sofrimento,
Como o sangue dos segredos
no gume do pensamento.
Por onde é que eu vou?
Fechei as portas sozinha.
Custaram tanto a rodar!
Se chamasse, ninguém vinha.
Para que se há de chamar?
Que caminho estranho!
Eras coisa tão sem forma,
tão sem tempo, tão sem nada…
– arco-íris do meu dilúvio! –
que nem podias ser vista
nem quase mesmo pensada.
Ninguém mais caminha?
A noite bebeu-te as cores
para pintar as estrelas.
Desde então, que é dos meus olhos?
Voaram de mim para as nuvens,
com redes para prendê-las.
Quem te alcançará?
Dentro da noite mais densa,
navegarei sem rumores,
seguindo por onde fores
como um sonho que se pensa.
Por onde é que vou?
No
poema, estão presentes duas figuras: um «eu» e um «tu». A lógica nele seguida é
semelhante à de outras composições poéticas de Cecília Meireles: antes de o
«tu» ser referido, a atenção concentra-se no «eu». A esse propósito, observe-se
o uso do determinante possessivo logo no verso 1: “meus dedos”.
O texto
abre com uma sinestesia (“No perfume dos meus dedos, / Há um gosto de
sofrimento” – há uma mistura do olfato e do tato, que, por sua vez, é associado
ao paladar”), que, além de misturar vários sentidos, os associa ao campo das
emoções e do intelecto, amalgamando “dedos”, “gosto”, “sofrimento” e “pensamento”.
Note-se que o pensamento é associado a algo cortante, o gume. Desta forma, o
sujeito poético apresenta-nos um «eu» complexo que, simultânea e confusamente,
interage com o mundo através dos sentidos, das emoções e do intelecto.
O nome
«perfume», presente logo no verso inicial, pode constituir uma referência ao
poder encantatório da poesia. Recordemos, a este propósito, as palavras de
Otávio Paz (O arco e a lira), segundo o qual “A atitude do poeta é muito
semelhante à do mago”.
A
segunda estrofe – um monóstico – associa-se ao título, dado que o sujeito
poético, embora desconhecendo o caminho, parece iniciar uma trajetória: “Por
onde é que eu vou?”
A
terceira estrofe foca-se num objeto concreto e inanimado: as portas. O «eu»
anuncia que as fechou, mas de um modo não convencional, pois, em vez do
movimento habitual para as manejar, as roda. Ora, o ato de rodar é mais
demorado do que o gesto habitual, o que exige sacrifício e esforço por parte do
«eu»: “Custaram tanto a rodar!”. Por sua vez, a presença do pronome indefinido
«Ninguém» realça a sua solidão e o apelo em vão: “Se chamasse, ninguém vinha.”
Por outro lado, o recurso ao pretérito perfeito do indicativo (“Fechei”) sugere
uma tentativa difícil de se desenvencilhar do passado. A interrogação seguinte
(“Para que se há de chamar?”) acentua a solidão e a inutilidade de qualquer
esperança na obtenção de ajuda.
Novo
monóstico sugere que as experiências do passado deram lugar à tentativa de
experimentar novas vivências: “Que caminho estranho!” Esta exclamação evidencia
o espanto do sujeito poético face à estranheza do caminho que se lhe oferece.
Convém notar que os monósticos do poema são caracterizados pelo tom
questionador (interrogações) ou de perplexidade (exclamação). Sucede que esses
questionamentos e esse espanto estão associados ao presente, como se este tempo
fosse estranho ao «eu», que aparentemente tem mais familiaridade com o passado
(bem como com o futuro). O passado está associado à memória e a factos que
sucederam, ao passo que o futuro é incerto, hipotético, dado que ainda não
aconteceu. Assim sendo, justifica-se plenamente a identificação do sujeito
poético com o passado e o futuro em detrimento do presente, visto que é neles
que reside a atemporalidade, isto é, a possibilidade de transgredir as
imposições do cronológico.
Após
uma “viagem” pela natureza do «eu» poético, a quinta estrofe introduz o «tu» de
forma repentina e inesperada. A sua descrição é feita de forma ambivalente. De
facto, começa por ser referido como «coisa», algo que o afasta da ideia de
humano. Isto significa que ele se aproxima do indefinido ou do domínio em que
as palavras se tornam insuficientes para qualquer tipo de conceituação. Essa
incapacidade de definição do «tu» abrange os dois versos iniciais da estrofe: “Eras
coisa tão sem forma, / tão sem tempo, tão sem nada…”.
No
entanto, no verso 3, demarcado por travessões e finalizado por exclamação, o
«tu» é caracterizado como “arco-íris do meu dilúvio!”, um fenómeno natural,
portanto. O facto de o «tu» ser associado a um fenómeno natural bastante raro,
caracterizado pela multiplicidade de cores, sugere que o «tu» proporciona ao
sujeito poético cor e claridade, num cenário onde predomina o caos e a
escuridão. Por outro lado, o interlocutor ser representado por um arco-íris
pode sugerir a sua capacidade de trazer serenidade e alegria, suavizando a
existência conflituosa do «eu». Esse contacto entre o «eu» e o «tu» ocorreu no
passado, como se pode depreender do uso do pretérito imperfeito do indicativo (“Eras”),
o que significa que foi trazido para o presente através da memória, bem como a
valorização daquele tempo sobre este último.
Novo
monóstico interrogativo (“Ninguém mais caminha?”) enfatiza a solidão do sujeito
poético, bem como evoca a sua ausência de familiaridade relativamente ao
caminhar, já indiciada em “Que caminho estranho!”.
O início
da sétima estrofe (“A noite bebeu-te as cores / para pintar as estrelas”)
sugerem a «morte» do interlocutor, mas este evento faz parte também do passado,
que é revivido no presente através da memória. Deste modo, podemos associar o título
do poema a uma nova viagem existencial, a do sujeito poético pelas suas experiências
passadas, presentes e até as possíveis futuras. Por outro lado, essa viagem
pelo tempo parece ser impulsionada, essencialmente, pela necessidade de se unir
ao «tu».
No terceiro
verso desta estrofe, é destacada a ação do olhar: “Desde então, que é dos meus
olhos? / Voaram de mim para as nuvens.” Será através do olhar que o sujeito
poético poderá reentrar o «tu», como se
depreende a partir da penúltima estrofe. Essa viagem far-se-á pela “noite mais
densa”, para o céu, o lugar onde o interlocutor se encontra e o lugar que
indicia uma referência à morte. Dado que se associa à incerteza, ao mistério,
compreende-se que o céu, simbolizando a morte, apresente as mesmas
características do mar. Procurando recuperar a ligação perdida ao «tu», essa
espécie de “paraíso perdido”, o futuro consiste em prosseguir a viagem, isto é,
em navegar pelos mistérios da morte através da sua própria contemplação. De
tudo isto resulta a noção de que esse reencontro é incerto e a razão da viagem
constitui a própria busca.
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