O poema
“Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira, foi escrito em 1925 a pedido do
escritor e amigo Gilberto Freyre, para representar o Recife da meninice do
poeta.
O
texto, que aborda a temática da infância, é constituído por 80 versos,
alternadamente longos e curtos e sem pontuação. Por outro lado, ele constitui
um exemplo de revolução contra a poesia tradicional brasileira, como se pode
comprovar pelo uso da linguagem simples e coloquial, pela valorização do
quotidiano, do universo comum, rotineiro, habitual, recriado a partir do olhar
artístico. Em várias passagens do poema, o poeta aproveita o espaço em branco
da folha para dispor as palavras, trabalhando, assim, o aspeto visual do texto.
O título,
“Evocações do Recife”, antecipa o tema do poema: o resgate, através da evocação
da infância vivida em Recife, capital de Pernambuco, mais concretamente a
cidade que a memória do homem adulo preservou. O nome “Evocação” deriva da
forma latina “evocatione”, que significa “chamar a si”, “recordar”,
“relembrar”. Assim, o sujeito poético faz uma viagem no tempo que o transporta
até um passado remoto, o da infância feliz, fundamental para a formação do
homem adulto que rememora o passado. O sujeito lírico recorda, pois, esses
momentos de felicidade com ternura, como se fosse ainda a criança que brincava
na rua.
Abertura do poema
Esta
primeira parte do poema constitui uma espécie de prólogo, destinado a
apresentar o tema que será desenvolvido: um olhar ternurento, não sobre o
Recife atual, moderno, mas do passado provinciano, que ele vai evocar e
celebrar – a cidade da sua infância. Para o conseguir, começa por a
desmistificar para, de seguida, a particularizar através de várias imagens e
impressões tiradas da memória.
Ao «eu»
poético não interessam os factos históricos presentes nos livros didáticos, mas
o espaço das primeiras aventuras, das experiências amorosas, das primeiras
frustrações e primeiras descobertas.
Assim
sendo, o verso inicial constitui uma espécie de chamamento do Recife, lugar da
sua meninice, para, logo de seguida, explicitar, através do advérbio de negação
«não» e do paralelismo semântico, aquilo que não quer evocar. Começa pela
“Veneza Americana”, isto é, o lugar comum, cuja associação está relacionada com
o facto de os rios Capibaribe e Beberibe estarem incorporados na paisagem da
cidade de Recife, dividindo-a em três bairros, excluindo a ideia de dependência
e uma imagem exterior, estrangeira. De facto, a expressão ”Veneza americana” do
verso 2 constitui uma referência aos dois rios mencionados, que determinam a
paisagem da cidade de Recife, dividindo-a em três bairros principais, daí esse
apelido. No poena, inicialmente, o nome do curso de agua é grafado em
conformidade com a norma culta (Capiberibe) e, de seguida, foi escrito segundo
a fala popular (Capibaribe).
Essa
negação do que é exterior ao próprio Brasil prossegue nos versos 3 e 4:
“Mauritssatd, que significa “Cidade de Maurício, é uma alusão ao período de
domínio neerlandês do Recife, governado por Maurício de Nassau (“Não a
Mauritssadtd dos armadores das Índias Ocidentais”). Mauritssadt era o nome dado
pelo administrador neerlandês Maurício de Nassau a Recife por ocasião da
invasão neerlandesa. Por seu turno, “o Recife dos Mascates” constitui uma
alusão à Guerra dos Mascates, que teve lugar em Pernambuco no início do século
XVIII e que envolveu os mascates, que lutavam pela independência de Recife
contra os senhores o engenho de Olinda.
O
Recife que evoca não é, igualmente, “o […] que aprendi a amar depois” nem o
“das revoluções libertárias”, uma alusão à Revolução Praieira, ocorrida entre
1848 e 1849, de caráter liberal, quando o povo se revoltou contra os
latifundiários e os comerciantes portugueses. Neste passo, a cidade é
apresentada como um espaço de transformação, representada pela presença de dois
tempos verbais, traduzidos pela expressão “aprendi a amar” e pelo vocábulo
“depois”.
Essa
transformação é rememorada pelo «eu» poético nos versos seguintes. No sétimo,
ele refere o Recife inocente (“sem história nem literatura”), como a infância,
não impregnado de «história» e sentido racional, antes um Recife de sensações,
de primeiras impressões sobre o mundo, ou seja, o Recife da sua formação. A
expressão “sem mais nada” não contém um sentido negativo; traduz a essência do
que foi a cidade para o sujeito poético, o Recife da experiência empírica da
criança e das suas descobertas e
experiências.
O verso
9 encerra esta primeira parte, definindo o seu foco. Todos os versos
anteriores, a partir do primeiro, são construídos de forma negativa, mas o nono
perde esse tom: “Recife da minha infância”. OI determinante possessivo «minha»
particulariza a cidade: não é uma qualquer, é a do «eu». Por outro lado, o uso
da primeira pessoa do singular confere grande subjetividade a essa rememoração
do espaço e do tempo da infância. O verso 10 significa que as características
históricas do Recife são substituídas pelas lembranças da infância do poeta.
Exame do Recife
Seguidamente,
o sujeito poético descreve, de forma pormenorizada, os instantâneos da vida
quotidiana da sua infância, como se ele estivesse, pelo fluxo da consciência, a
caminhar pelas ruas da sua meninice, palco das suas inesquecíveis brincadeiras.
Ao recordá-las, associa-lhes várias figuras dessa fase da sua vida: Totônio
Rodrigues (sobrinho do avô do poeta), Aninha Viegas, a preta das bananas, os
vendedores de rolete de cana e de amendoim, a rua da União, a rua do Sol, o rio
Capibaribe, o sertãozinho de Caxangá e a casa do avô. Essa associação é feita
através de formas verbais no pretérito imperfeito (“brincava”, “botava”, “tomavam”,
etc.), que retratam ações passadas que se prolongam no tempo.
Estamos
parente uma espécie de crónica da infância, por meio da qual recorda o espaço
(a Rua da União), as brincadeiras (“eu brincava de chicote-queimado e partia as
vidraças da casa de dona Aninha Viegas”) e as figuras humanas (dona Aninha
Viegas, Totônio Rodrigues, etc.). Além disso, o «eu» poético dá-nos conta de
impressões rápidas, descrições subjetivas: “Totônio Rodrigues era muito velho e
botava o pincenê na ponta do nariz…”. Este verso, por exemplo, constitui uma
impressão, um instantâneo da memória, uma fotografia.
O verso
12 dá-nos conta de mais comportamentos, hábitos e relações interpessoais: “Depois
do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros,
risadas”. O seguinte prossegue a crónica da infância, ainda que de forma
ambígua, pois o coloquialismo “a gente” tanto pode referir-se a «eles», as
crianças, como incluir o sujeito poético no grupo: “a gente”, isto é, “nós,
crianças”.
Os
versos 14 a 16 continuam a recordar as brincadeiras infantis, neste caso
através de formas verbais no presente (“sai”), para introduzir uma celebração e
recuperar uma pluralidade de vozes: “Os meninos gritavam: / Coelho sai! / Não
sai!”. A estrutura fragmentada do poema é representada pelas brincadeiras infantis
(“chicote-queimado”), pelas figuras humanas que povoam o imaginário do poema (“Aninha
Viegas”, “Totônio Rodrigues”) e pelas situações comuns da vida quotidiana: “cadeiras
nas calçadas”, “mexericos”, “namoros”, “risadas”.
A forma
verbal «politonavam” sugere a ideia de canto em vários tons através das “vozes
macias” (sinestesia), que entoam a cantiga infantil: “Roseira dá-me uma rosa /
Craveiro dá-me um botão”. Os parênteses e as reticências dos versos 20 e 21
funcionam como uma espécie de aparte, introduzindo um tipo de comentário do
«eu» adulto, o qual proporciona que a cantiga infantil adquira um outro
significado. Assim, a rosa em botão são meninas que não envelheceram, pois morreram
jovens, ao contrário do sujeito poético, que envelheceu e, agora, rememora o
passado.
Os três
seguintes (22 a 24), que poderiam constituir um só, visto que estão
espacialmente fragmentados, encerram o parêntesis e regressam ao passado,
recordando o som de um sino ecoando pela noite (pela memória?). Desta forma, o
«eu» poético funde dois planos: o objetivo (ligado à cidade) e o subjetivo
(relacionado com as recordações de infância).
A
expressão coloquial “Uma pessoa grande” traduz a visão infantil do sujeito lírico
de um adulto, uma pessoa mais velha. Esse adulto é Totônio Rodrigues, sobrinho
do avô do poeta, uma figura muito velha. E a memória continua a fluir,
centrando-se agora nos costumes da época (o fogo, o hábito de fumar) e na
frustração do «eu» por não poder gozar da liberdade total dos adultos: “E eu
tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.”
Impressões pessoais mais marcantes
Além
das figuras humanas, também as ruas são rememoradas pelo sujeito poético, dado questão
associadas a momentos de alguma felicidade. A recordação começa pela Rua da
União, que é referida pela segunda vez, agora enfatizada pela presença das
reticências, que sugerem o saudosismo do «eu», como se, após nomear a rua,
soltasse um suspiro.
Os
nomes dos arruamentos (“União”, “Sol”, “Saudade”, “Aurora”) reforçam a ideia
dos valores humanos e apontam para o princípio das coisas essenciais, não
contaminadas pela “história” e, por isso, puras, essenciais. Novos parênteses,
no verso 34, refletem de novo a fala do homem adulto e as suas impressões do
presente, as quais configuram uma crítica e revelam o seu distanciamento da
cidade do Recife, pois desconhece como está e o próprio nome, resistindo apenas
a “geografia” na sua memória. Por outro lado, as ruas são associadas a gestos
transgressores da infância: fumar e pescar escondido. O uso de formas verbais
no infinitivo mostra que essas transgressões não são objeto de censura, antes
são encarados com naturalidade, enquanto modos de descobrir o mundo.
A
memória, por vezes, é traiçoeira. Assim, o «eu» engana-se no verso 39 ao
pronunciar o nome “Capiberibe”, mas logo se corrige: “Capibaribe”. O travessão
indica a fala. Estas duas formas de grafar o nome do rio estão relacionadas,
também, com um episódio ocorrido numa aula, quando o poeta era aluno de José Veríssimo,
professor de Geografia no Ginásio Nacional de Recife. Certo dia, o professor
perguntou qual era o maior rio de Pernambuco e o poeta, querendo ser o primeiro
a responder, gritou “Capibaribe”, como sempre ouvira pronunciar (com «a»). O
professor retorquiu-lhe de forma irónica: “Bem se vê que o senhor é um
pernambucano” (pois os pernambucanos pronunciavam o nome do rio com o tal «a»)
e corrigiu-o: “Capiberibe”.
São vários
os exemplos do recurso à linguagem coloquial e um deles é o 41, nomeadamente
pela presença da expressão “Lá longe”, que aponta, de forma imprecisa, em
termos de distância, para o espaço do “sertãozinho” (atente-se no diminutivo,
que, neste caso, sugere afetividade e mão tamanho/dimensão).
O verso
42 volta a relacionar a infância à ideia de liberdade: a palha serve ao «eu» do
passado como banheiro, isto é, um espaço privilegiado de liberdade. Da infância
fazem parte também as brincadeiras, as cantigas de rua, as travessuras e
igualmente aquilo que poderíamos chamar primeira experiência erótica,
concretamente a visão de uma mulher nua a tomar banho. Este passo obedece a uma
construção curiosa: a localização temporal indefinida, característica do mundo
infantil – por exemplo, das lendas ou dos contos populares – (“Um dia”); a
visão da “moça nuinha” (o nome «moça» a sugerir a sua juventude; o diminutivo
usado para intensificar a nudez, isto é, a mulher estava muito, completamente
nua); a reação intensa à visão (“Fiquei parado o coração batendo”) e a reação
descontraída e divertida dela (“Ela se riu”). O nome «alumbramento» intensifica
a reação do «eu» poético ao episódio, o seu deslumbramento, que pauta a
descoberta do desejo, o prenúncio do crescimento e do fim da infância. O verso 51
dá-nos conta do passo seguinte no processo de aprendizagem e crescimento: o
contacto físico com a mulher (“eu me deitei no colo da menina”).
O poeta mira o Brasil
O poema
está prenhe de impressões, normalmente dadas de forma fragmentária, como sucede
de novo nos versos 47 e 48, a partir da rememoração das cheias causadas pelo
rio. As exclamações do verso 47 (“Cheia!
As cheias!”) indiciam a impressão viva que ficou marcada na memória do
«eu», a desordem e os estragos que ela causaram (o boi morto, as árvores, os
destroços), ideias acentuadas pelo acumular de palavras sem conjunções a liga-las
e/ou vírgulas a separá-las. Dito de outra forma, essa sucessão de vocábulos e a
ausência de pontuação (verso 47) sugerem a fúria com que as águas das enchentes
arrastavam as coisas e a imagem das coisas arrastadas velozmente pela água da
cheia, o que permite também que o leitor visualize a cena. Dentro da fúria da
natureza (verso 48), o «eu» poético contempla a intervenção humana (“ponte do
trem de ferro”) e a coragem e o caráter destemido do ser humano comum (“caboclos
destemidos em jangadas de bananeiras”).
Os
versos seguintes proporcionam-nos o conhecimento da cultura do estado de
Pernambuco, começando pelas manifestações religiosas cristãs (“Novenas” – verso
49), seguindo-se as comemorações típicas, como as Cavalhadas. O verso 51
retoma, como vimos anteriormente, a questão da descoberta da afetividade e do desejo
(“Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos”).
O verso
54 e seguintes levam-nos de volta à Rua da União e aos elementos típicos que
lhe estão associados: os frutos (as bananas), as figuras humanas (a preta que
vende bananas, vestida ainda como escrava – “pano da Costa” –, os vendedores),
os produtos comercializados (bananas, roletes de cana, amendoins) – as comidas típicas
da região. Qual a importância destas referências? Uma nação, um povo também se
define(m) pelos seus hábitos e costumes alimentares.
Por seu
turno, os pregões indiciam o prazer que o «eu» poético sentia ao ouvi-los,
publicitando os ovos e o seu custo (a pataca era a moeda usada no Brasil na
época), porém este passo não termina de forma eufórica, antes de forma bem melancólica.
De onde vem essa melancolia? Do facto de tudo o que recorda e lhe traz uma
enorme felicidade ter ocorrido “há muito tempo” (e hoje já não existe).
Consciência do homem em relação à poesia
Entre
os versos 63 e 71, a linguagem parece explodir de brasilidade, com
palavras/expressões como “a gente”, “nuinha”, “midubim”, “me lembro”; com o registo
de fala em “coelho sai / não sai”; com o pregão “ovos frescos e baratos / dez
ovos por uma pataca”. Essa linguagem típica opõe-se à linguagem académica,
retórica e artificial, a qual não exprime os valores brasileiros. Ora, é um
pouco isso que se encontra entre os versos 63 e 66, que se reportam à vida da
infância que não era mediada, sujeita às normas e interferências externas, como
acontece com os livros e os jornais. O verso 64 e seguintes descrevem o homem
comum, não subordinado aos dogmas do bom gosto dos jornais e dos livros; a fala
do povo é o reflexo de uma forma singular de viver, não mais tributária do
colonizador ou da Europa. A língua errada do povo é a língua certa do povo; o
português lusitano e o português brasileiro separaram-se, como o mostra a
sinestesia “fala gostoso”, que sugere o modo como a língua era falada pelos
brasileiros: com prazer, com naturalidade, sem seguir já a sintaxe que, por
causa da passagem do tempo, se afastou da dos antigos colonizadores. “É
macaquear / A sintaxe lusíada”: o poeta defende a ideia de aproximar a escrita
da fala do povo, “porque ele é que fala gostoso o português do Brasil”. Aqui,
Manuel Bandeira retoma o projeto de Mário de Andrade sobre a necessidade de abrasileirar
a língua.
Posteriormente,
o poema centra-se no «nós», isto é, nos poetas brasileiros, dos quais o «eu»
faz parte, que continuam a macaquear, isto é, a imitar de forma caricata /
grotesca a sintaxe portuguesa, criticando, assim, a submissão brasileira ao
português de Portugal. Por outro lado, o sujeito poético revela a inocência e a
ignorância da ordem do mundo que caracterizaram a sua infância, bem como a
ideia de que o exterior pouco ou nada contribuiu para a sua formação. As suas
raízes, com efeito, estão no Recife, com as suas ruas, cheiros, cores, fauna,
flora e figuras humanas.
Lamento e reflexão sobre a passagem do tempo
A parte
final do poema mostra a consciência do «eu» de que a infância já passou, ficou
no passado, porque, afinal, o tempo decorre, a vida é breve e a velhice e a
morte aproximam-se. É, por isso, que ele recorda, de modo triste e melancólico,
as imagens do passado: “Recife”, “Rua da União”, “A casa do meu avô”, ou seja,
a cidade, a rua, a casa. De seguida, através de uma exclamação, exprime toda a
sua incredulidade e melancolia pelo fim da infância: “Nunca pensei que ela
acabasse!” (v. 76).
O poema
finaliza com a referência à morte do avô, à perda do Recife da sua infância, da
Rua da União e da própria casa do avô, tudo perdido no tempo. O sujeito poético,
mesmo que em estado de choque, está consciente da passagem do tempo e da
efemeridade da vida (“Tudo lá parecia impregnado de eternidade”). O Recife
morto é o da infância, cujo maior valor é o facto de ser brasileiro e
autêntico, com os seus modos de viver, de agir, de alimentar e de conviver.
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