Português: Análise do poema "O navio negreiro", de Castro Alves

terça-feira, 25 de julho de 2023

Análise do poema "O navio negreiro", de Castro Alves


    “O navio negreiro” foi publicado após a promulgação da lei Euzébio Queirós, datada de 1850, que proibia o comércio de escravos, e a legislação de 1854 que impedia o desembarque de navios negreiros nas costas brasileiras. Está dividido em seis secções, de extensão diversa, compostas sobretudo por sextilhas e versos decassílabos, abordando temáticas ao gosto romântico, como, por exemplo, a liberdade do ser humano, ou outras, como a visão sensorial e emotiva da Natureza. Por outro lado, essas seis secções partem do ambiente exterior e envolvente para o interior do navio negreiro, culminando com uma crítica acutilante à nação que permite realidades tão degradantes e infames como a escravidão.
    A primeira secção abre com a localização especial e a descrição do cenário através da anáfora “Stamos em pleno mar”, que inicia as quatro quadras iniciais. Além do mar, é referido outro espaço – o céu – e os dois confundem-se (“Doudo no espaço / Brinca o luar […] / E as vagas após ele correm… causam”), num movimento agitado, indiciado pelas formas verbais no presente do indicativo «correm», «causam» e «saltam», bem como o adjetivo «inquieta». Além destes recursos, encontramos também, logo a partir da primeira estrofe, comparações bem expressivas (“Como turba de infantes inquieta”, “como espumas de ouro”) e a animalização de elementos da Natureza (“Brinca o luar – dourada borboleta”, “Nesta seara os corcéis o pó levantam”).
    A referida confusão do mar e do céu fica bem clara: “Dois infinitos / Ali se estreitam num abraço insano”), concretizando-se “num abraço insano” que recupera a ideia de loucura anteriormente já sugerida pelo adjetivo «doudo» (verso 1). Essa confusão faz-se tanto de características físicas (“azuis, dourados”) percecionadas pelo sentido da visão como psicológicas (“plácidos, sublimes”), para posteriormente se transformar numa unidade: “Qual dos dous é o céu? Qual o oceano?” Mar e céu não se distinguem.
    De seguida, o «eu» poético foca-se na embarcação, nomeando-o (“veleiro brigue”) e identificando alguns dos seus elementos: “abrindo as velas”, “vibrações marinhas”, etc. A comparação entre o barco e as andorinhas confirma a forte conexão entre o mar e o céu, comungando ambos do mesmo movimento.
    A quinta estrofe é marcada por várias interrogações, que suscitam dúvidas para as quais parece não haver resposta: “Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?” (note-se a associação entre a indefinição, o desconhecimento do rumo do barco e a imensidão do oceano que atravessa). De seguida, o mar adota a forma de um deserto (“neste saara”) que é atravessado metaforicamente pelas ondas (“os corcéis o pó levantam”) que “não deixam traço”). O sujeito poético, situado num plano superior contempla esse cenário (“Embaixo – o mar em cima – o firmamento”), sentindo-se feliz (“Bem feliz quem”) por poder usufruir daquela paisagem sublime (“Sentir deste painel a majestade”) e sem limites (“E no mar e no céu – a imensidade!”). As emoções do «eu» – de felicidade, prazer, êxtase – baseiam-se no que os diferentes sentidos captam: o tato (“que doce harmonia traz-me a brisa!”) e a audição (“Que música suave ao longe soa!”; “como é sublime um canto ardente!”), além da visão. Dirigindo-se a Deus (“Meu Deus!”), ele parece antever desde já o canto dos náufragos num mar imenso e que não se detém (“Pelas vagas sem fim boiando à toa!”).
    A atenção do sujeito poético centra-se, então, no veleiro. Começa por se dirigir aos “Homens do mar!” para, de seguida, os caracterizar psicologicamente (“rudes marinheiros”) e anunciar a diversidade de nacionalidades a que pertencem (“dos quatro mundos!”). Apesar disso, há um traço comum que os une: possuem um passado semelhante (“Crianças que a procela acalentara”) e têm o mar como destino (“No berço desses pélagos profundos!”).
    A estrofe seguinte abre com um apelo, traduzido pela repetição do verbo «esperar» no imperativo: “Esperai! Esperai!”. O «eu» marca claramente a sua presença no texto através do uso da primeira pessoa do pronome pessoal forma de sujeito (“deixai que eu beba…”), nutrindo-se da sua criação (“Esta selvagem, livre poesia”), caracterizada por meio de uma hipálage que a apresenta como um canto acompanhado pela música do mar (“Orquestra – é o mar que ruge pela proa / E o vento, que nas cordas assobia”).
    De seguida, o «eu» poético procura encontrar uma justificação através da anáfora: “Por que foges assim…? / Por que foges do…?”). Segue-se-lhe a expressão do desejo de o acompanhar (“Oh! quem me dera acompanhar-te”), estabelecendo uma comparação entre “a esteira” e o “doudo cometa”, numa clara retoma da relação entre o mar e o céu que foi iniciada no começo do poema e está sempre associada à ideia de loucura, novamente veiculada pelo adjetivo «doudo».
    A última quadra da primeira secção introduz um novo elemento – o albatroz –, designado como “águia do oceano” e a quem o sujeito poético faz um apelo: “dá-me estas asas”. Neste ponto, convém ter presente a influência que a literatura francesa exercem sobre os autores brasileiros pós-independência. Assim sendo, é possível associar esta referência ao albatroz ao poema “L’ Albatros”, da autoria de Charles Baudelaire, e identificar várias semelhanças: o cenário semelhante, a presença do mar, a narração de uma cena ocorrida em alto mar, os mesmos atores – os marinheiros, a identificação entre o «eu» e o albatroz, a superioridade espacial e espiritual do poeta relativamente ao homem comum, associada a um domínio aéreo e celeste. Por outro lado, enquanto símbolo da poesia, o albatroz adquire um caráter demoníaco quando é posto em paralelo com o Leviathan, o monstro bíblico que vive no mar e aí permanece se não for acordado. Capaz de devorar o Sol, Leviathan é a entidade que, por extensão, devora do divino e, assim, possibilita a imposição do mal. Tal como sucede no poema de Baudelaire, o albatroz é o companheiro do poeta e com ele desempenha a mesma tarefa de transmissor de uma mensagem. Além disso, enquanto símbolo da liberdade, esta ave estabelece, através da associação com Leviathan, uma ligação estreita com o espaço marítimo, dominando-o.
    Na segunda secção, descritiva como a primeira, o sujeito poético contra a sua atenção nos marinheiros, os quais trocaram o seu lar em terra por um novo no mar, cujo ritmo é poesia (“Ama a cadência do verso / Que lhe ensina o velho mar!”) e merece ser cantado (“Cantai!”).Apesar de o mar ser um espaço repleto de perigos e associado à morte, o «eu» incita os marinheiros a não a recearem (“que a morte é divina!”), enquanto o barco desliza e se afasta envolvido pelo sentimento da saudade (“Resvala o brigue à bolina / Como golfinho veloz. / […] Saudosa bandeira acena / As vagas que deixa após.”).
    De seguida, o sujeito lírico elogia-os por serem de várias nacionalidades e se submeterem ao desafio de enfrentarem as viagens marítimas por outras terras. A cada nacionalidade é associado um referente diferente: à espanhola, “as cantilenas / Requebradas de langor”; à italiana, a cultura lírica clássica (“Relembra os versos de Tasso”) ou a história de Romeu e Julieta (“Canta Veneza dormente / – Terra de amor e traição”); à inglesa, o espaço insular e o conquistador Nelson; à grega, a cultura clássica, pela referência a Ulisses e a Homero (“Do mar que Ulisses cortou, / […] Vão cantando em noite clara / Versos que Homero gemeu…”). Os únicos marinheiros que não possuem qualquer referente são os de origem francesa, aludindo o sujeito poético, de forma genérica, a um passado glorioso (“Canta os louros do passado / E os loureiros do porvir!”).
    A última estrofe desta secção apresenta-nos três versos que englobam todos os marinheiros (“Nautas de todas as plagas”), formando um conjunto que aprecia a viagem e que encontra nela uma certa melodia celeste (“Vós sabeis achar nas vagas / As melodias do céu!...”).
    A terceira secção é a mais breve, pois é constituída por uma única sextilha, e traça-nos uma visão genérica da situação vivida no interior do navio, caracterizada por um ambiente de horror e indignação (“Que quadro de amarguras! / E canto funeral!... Que tétricas figuras!... / Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!”), traduzido pelas exclamações, pelas reticências e pelas repetições. O vocabulário enquadra-se no campo semântico do terrível: “amarguras”, “funeral”, “tétricas”, “infame e vil”, “horror”. Perante este cenário, novamente observado a partir de um plano superior, o sujeito poético mostra-se, desta vez, chocado com o que vê, não escondendo a sua revolta e o seu repúdio.
    A quarta secção é bem mais extensa: seis sextilhas. Nelas, descrevem-se os horrores que acontecem no navio. O primeiro verso remete para a figura de Dante: “Era um sonho dantesco”. Tal significa que a embarcação é a encarnação do Inferno descrito pelo escritor italiano, com a diferença de que a ele vão parar não os mortos ,mas os vivos. A presença da cor vermelha remete para o «sangue», que é a consequência dos violentos castigos sofridos pelos marinheiros (“Tinir de ferros… Estalar de açoite…”), uma mancha negra que se confunde com a noite (“Legiões de homens negros como a noite”) e que causa horror mesmo que numa atividade lúdica (“horrendo a dançar”).
    A estrofe seguinte traz-nos uma figura feminina que amamenta os seus filhos não com leite, mas com sangue, num cenário horrendo: “cujas bocas pretas / Rega o sangue das mães”. Outras mulheres mais jovens (“Outras moças, mas nuas e espantadas”) movimentam-se no meio dos cadáveres (“No turbilhão dos espectros arrastados”), ansiosas e magoadas, mas em vão (“Em ânsia e mágoa vãs!”).
    As imagens paradoxais da sextilha posterior mostram-nos que o cenário descrito não gerou qualquer pranto, antes se ouve uma “orquestra irónica, estridente” e ocorre uma dança macabra, da qual emerge um ser macabro, uma serpente, que simboliza o Mal: “E da ronda fantástica a serpente / Faz doudas espirais”. A vocalização do sofrimento (“Ouvem-se gritos…”) incita ao castigo e não à piedade (“o chicote estala / E voam mais e mais…”).
    Nova imagem mostra-nos que os escravos formam uma cadeia de agrilhoados (“Presos nos elos de uma só cadeia”) que, paradoxalmente (“E chora e dança ali!”), estão unidos por diferentes sinais de loucura, em resultado da brutalidade de que são vítimas: “Um de raiva delira, outro enlouquece, / Outro, que martírios embrutece, / Cantando, geme e ri!”. O capitão do navio é, simultaneamente, o carrasco: “o capitão manda a manobra, / […] «Vibrai rijo o chicote, marinheiros! / Fazei-os mais dançar!...”.
    Os três versos iniciais da terceira estrofe repetem-se na última sextilha desta secção: o Inferno constitui um pesadelo em que já não são corpos que se anunciam, mas «sombras». Num tumulto de ruídos (“Gritos, ais, maldições, preces ressoam!”), sobressai a figura de Satanás, como se Deus estivesse surdo às preces dos escravos.
    Na quinta secção, o sujeito poético interpela Deus para que este lhe dê uma justificação para tanto sofrimento que observa (“Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura… se é verdade / Tanto horror perante os céus?!”), o qual se apresenta como uma mancha indelével (“Ó mar, porque não apagas / […] / De teu manto este borrão?...”) contra a qual nenhum elemento consegue atuar: “Astros! noites! tempestades! / Rolai das imensidades! / Varrei os mares, tufão!”). Perante aquele quadro e, sobretudo, a atitude de Deus, que, em vez de se compadecer de tamanho sofrimento e horror, ri (“Que não encontram em vós / Mais que o rir calmo da turba”), o sujeito poético fica indignado e furioso. Ao verificar que o seu apelo não é escutado e atendido, recorre à Musa, que funciona como alegoria do poema de denúncia: “Dize-o tu, severa Musa, / Musa libérrima, audaz!...”).
    Na estrofe seguinte, o «eu» poético atribui uma identidade aos supliciados: primeiro às figuras masculinas (“São os filhos do deserto / […] / A tribo dos homens nus”), depois às femininas (“São mulheres desgraçadas”). Os homens viveram um passado em que eram “simples, fortes, bravos” e hoje veem-se reduzidos a “míseros escravos”, reduzidos a nada (“Sem luz, sem ar, sem razão…”). Por seu turno, as mulheres são associadas a Agar, personagem bíblica que emprestou o corpo a Sara, esposa de Abraão, para lhe assegurar a descendência através do filho Ismael, e que foi vítima da ingratidão de Sara e da cobardia de Abraão, conservando ambos um papel positivo e remetendo para Deus a responsabilidade de banir Agar. Esta representa, pois, a mãe martirizada (“Como Agar sofrendo tanto, / Que nem o leite de pranto / Têm que dar para Ismael.”), sofredora e incapaz de amamentar os filhos. Todas estas personagens foram retiradas do seu habitat natural (“Lá nas areias infindas, / Das palmeiras no país”), do qual se têm de despedir (“Adeus, ó choça do monte, / Adeus, palmeiras da fonte!... / Adeus, amores, adeus…”). Segue-se a travessia do deserto (“Depois, o areal extenso / Depois, o oceano de pó”), que leva à desistência (“Ai! quanto infeliz que cede, / E cai p’ra não mais s’erguer!...”) e à morte (“Mas o chacal sobre a areia / Acha um corpo que roer”). Na sequência, é apresentado o contraste entre um passado de liberdade (“Ontem a Serra Leoa / […] / O sono dormido à toa / Sob as tendas d’amplidão”) e um espaço ilimitado e um presente com um espaço confinado, infecto e imundo – o porão (“o porão negro, fundo / Infecto, apertado, imundo”) –, onde ronda a morte (“Pelo arranco de um finado, / E o baque de um corpo ao mar…”).
    A estrofe seguinte retoma a oposição entre os dois tempos, um passado de liberdade e um presente de maldade, escravidão e sofrimento (“Ontem plena liberdade / Hoje… cúmulo de maldade / Nem são livres p’ra morrer”), compondo um cenário que suscita o riso escarninho de Satanás (“E assim zombando da morte / Dança a lúgubre coorte”). Esta secção fecha de forma circular com a repetição liberal da primeira sextilha.
    A sexta e última secção do poema, composta por três oitavas, compreende uma feroz crítica por parte do sujeito poético dirigida à sua pátria por manter a prática de atos desumanos como a escravatura: “Existe um povo que a bandeira empresta / P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...”. Tudo isto deixa-o ainda mais indignado: “E deixa-a transformar-se nessa festa / Em manto impuro de bacante fria!” A interpelação dirigida a Deus traduz a incompreensão pelo facto de a sua pátria – representada pela bandeira – se manter indiferente a tanto sofrimento, mesmo que apenas traduzida através da poesia.
    Na oitava seguinte, o sujeito poético dirige-se à bandeira (“Auriverde pendão de minha terra”) e revolta-se por esta servir dois propósitos distintos: ela foi o símbolo de um povo vitorioso, cheio de esperança e livre (“Estandarte que a luz do sol encerra / E as promessas divinas da esperança… / Tu que, da liberdade após a guerra, / Foste hasteado dos heróis na lança”), porém atualmente é desprezível, pois permite a escravatura e a morte (“Antes te houvessem morto na batalha / Que servires a um povo de mortalha!…”). Atente-se no recurso ao adjetivo «auriverde», que aponta para as cores da bandeira brasileira (verde e amarelo),símbolo da identidade nacional e valorizador da riqueza natural do ouro e das florestas do Brasil.
    O poema termina com o sujeito poético a manifestar a sua vergonha pela situação que descreveu (“Extingue nesta hora o brigue imundo / O trilho que Colombo abriu nas vagas”. A descoberta de Colombo deixou nos mares uma ferida (“Da etérea plaga”); se a descoberta do Novo Mundo só acarretou coisas vis, era preferível que as navegações nunca tivesse ocorrido.
    Por outro lado, a composição apresenta um subtítulo: “Tragédia no mar”. O nome «tragédia» remete para o modo dramático e, num sentido mais geral, reporta-se a uma situação caracterizada pela ocorrência de uma desgraça, enquanto a expressão “no mar” remete para uma localização espacial, um local muito vasto, isolado e solitário, traços que acentuam a tragicidade da situação.
    As personagens do texto formam dois grupos conflituantes: o dos dominados (os escravos) e o dos dominadores, representado pelo capitão. Eles, mesmo sem comunicarem entre si, configuram um quadro particularmente trágico que choca quem a ele assiste. Sucede que a situação descrita no poema está presente noutra forma de arte: a pintura “Navio Negreiro”, da autoria de Johann Moritz, um pintor alemão que viajou pelo Brasil entre 1822 e 1825, pintando os povos e os seus costumes, quando integrou a missão do barão Langsdorff. Desde logo, são óbvias as semelhanças entre os títulos das duas obras de arte. Além disso, no quadro encontramos um cenário que é constituído por um amontoado de negros, homens, mulheres e crianças. Os corpos nus formam uma mancha negra que se junta à ausência de luz nesse espaço algo cavernoso, interior e fundo. Confinados a esse espaço exíguo – o porão, no qual se veem prateleiras onde tem de se acomodar aquele amontoado de escravos –, isolados no meio de um mar sem retorno, estas figuras estão agrilhoadas com correntes e algemas, símbolos de domínio, ordem e poder. Contrastando com a multidão de escravos seminus, três homens brancos, envergando roupas limpas e bem tratadas, transportam um escravo morto que é necessário retirar do navio. Deste modo, tanto no poema como na pintura, assistimos a um drama da tortura que a figura bíblica de Agar representa. Perante esta mãe sofredora, os cristãos não se compadecem minimamente. O conflito entre duas forças desiguais é claro e o Mal não tem solução: à força em número de escravos, completamente desmaterializada, opõe-se a força política encarnada pelo capitão (“No entanto o capitão manda a manobra, / E após, fitando o céu que se desdobra / Tão puro sobre o mar”), que desvia o olhar em vez de se apiedar, como faz o «eu» poético. A vida dos escravos é regida pela sociedade dos brancos; o escravo perde a sua identidade e a sua existência pertence ao seu senhor.

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