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segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Análise do poema "Vozes de África", de Castro Alves


             “Vozes de África” é um poema escrito por Castro Alves, composto em São Paulo, em 11 de junho de 1868. Trata-se de um texto épico sobre África, constituído por dezanove estrofes, compostas por seis versos cada (sextilhas), com rima emparelhada e interpolada, de acordo com o esquema AABCCB. Por outro lado, é interessante notar que estamos perante um texto inacabado, como o demonstram as linhas pontilhadas entre os versos 42 e 43, 72 e 73, 78 e 79 e 108 e 109.

            O sujeito poético deste poema representa todo o continente africano, isto é, todos os homens e mulheres que eram forçados a abandonar a sua terra para trabalhar como escravos. Assim sendo, podemos deduzir que o «eu» lírico é, no fundo, todo um continente que sofre com os seus homens e mulheres que partem e sofrem todo o tipo de provações. De facto, o texto é construído a partir do ponto de vista do continente africano. Por outro lado, a composição poética denuncia o tráfico negreiro e a escravidão a que os negros eram sujeito e mostra as arbitrariedades e a injustiça que decorrem dessa cultura de aprisionamento da pessoa negra. Em simultâneo, esse mesmo sujeito poético suplica a intervenção e a bondade divinas e procura compreender os motivos que originam tal situação e tanto sofrimento.

            No início do poema, o «eu» personifica a África, por ser uma criação de Deus, e toma para si as palavras ditas por Jesus Cristo, seu Filho, há mais de dois mil anos, na tentativa de ser ouvido por Ele. O mesmo sucederá, ao longo do texto, com os outros continentes, sendo, pois, todos vistos como entidades humanas. Ele clama por Deus de forma desesperada pelo facto de nesses dois milénios ter implorado, em vão, a sua ajuda, no sentido de o libertar do sofrimento (a escravidão). De facto, a composição apresenta o negro como uma vítima e personifica a África (que correspondeu ao «eu»), que, desesperada, pede perdão pelos seus crimes. No fundo, trata-se de um olhar católico sobre a situação, radicado na visão europeia do mundo e das coisas, daí as referências religiosas referidas e a atitude de resignação que se adivinha. De facto, a África dirigir-se-ia não ao Deus monoteísta cristão, mas a um deus (com «d» minúsculo) ou aos deuses, em respeito pela sua cultura politeísta. Assim sendo, se é verdade que Castro Alves reconhece o sofrimento do povo africano, fá-lo a partir de uma perspetiva cristão europeia. África, como tantas vezes tem sucedido ao longo dos tempos, reclama da escravidão que tem sido imposta aos seus filhos e questiona a figura divina por a ter abandonado e se manter silenciosa relativamente ao seu drama.

            Na segunda estrofe, o sujeito lírico faz referência ao mito de Prometeu, o irmão de Atlas que roubou o fogo sagrado aos deuses do Olimpo para o dar aos seres humanos e, por isso, foi acorrentado ao Cáucaso, onde, diariamente, uma ave de rapina lhe comia o fígado, que se regenerava de seguida. Deste modo, Prometeu constitui o símbolo do sofrimento incessante, daí a sua comparação com África, para quem o sofrimento é igualmente eterno. Contudo, neste caso, ainda não se conhece o motivo da punição. No poema de Castro Alves, a ave de rapina que atormentava Prometeu é comparada ao sol ardente que todos os dias castiga o continente africano. Por seu turno, o próprio continente africano está preso por correntes à região litoral de Suez, na Itália: “E a terra de Suez – foi a corrente / Que me ligaste ao pé…”. Note-se que até 1859, quando o engenheiro Ferdinand de Lesseps construiu o Canal de Suez, o Médio Oriente era considerado parte do território africano. Só então houve a separação geográfica e cultural entre esses espaços. Esta nota coloca a Europa na dependência da África, ou seja, a cultura ocidental baseou-se no continente africano para construir muitas das suas formas de conhecimento. O castigo passa também pelo ambiente fragoso e desértico que caracteriza África.

            A partir da terceira estrofe até à sétima, África compara-se às suas irmãs, isto é, aos outros continentes, num percurso que vai do passado ao presente, e indaga a razão do seu sofrimento em relação à Europa e à Ásia: “Minhas irmãs são belas, são ditosas… / Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas”; ”A Europa – é sempre Europa, a gloriosa!...”. Embora se considere irmã dos outros continentes, torna claras as diferenças e queixa-se de que aquelas são as preferidas de deus, pois foram contempladas com coisas maravilhosas, enquanto que ela foi abandonada (v. 49), sendo que até o próprio deserto conspira, escondendo as suas lágrimas, para que Deus não as veja (vv. 46, 47 e48). África contempla as riquezas das suas duas “irmãs”, às quais mais tarde se vem juntar a traidora América. No que diz respeito à Ásia, é enfatizada a sua beleza e exuberância cultural e natural, descrita de forma idealizada, como é característico do Romantismo: os haréns do Sultão, a natureza (os animais – os elefantes brancos, os Himalaias, o rio Ganges, os corais), a cultura e os monumentos / templos, as crenças, os deuses, os pagodes. Relativamente à Europa, está presente uma dose apreciável de realismo crítico, de rancor e ironia quando se lhe refere. Assim, aquela é apelidada, ironicamente, de “Progressista” (quando era a responsável pelo tráfico negreiro), de mulher vaidosa, dominadora e meretriz. Por isso, a voz de África solicita aos ícones da cultura que se libertem dos valores da “grande meretriz” presentes no “mármore de Carrara” (tipo de mármore branco ou azul-cinza de alta qualidade muito usado em esculturas, por exemplo, extraído na zona da cidade de Carrara, da região da Toscana, em Itália) e nos “hinos de Ferrara”, dado que a dominação europeia foi construída em cima da subjugação tirânica e violenta dos povos africanos, pelo que cabe à Europa uma contestação judicial (“litígio”). Ou seja, neste passo, sugere-se uma espécie de ressarcimento de todos os bens e danos cometidos com a exploração do ser africano.

            Contrastando com o poder da Europa e o exotismo exuberante da Ásia, a África só tem para mostrar a sua miséria: “Eu triste abandonada”; “Perdida marcho em vão! / Se choro… bebe o pranto a areia ardente”; “E nem tenho uma sombra de floresta…”. De um lado, encontram-se as irmãs “belas” e “ditosas”; do outro, ela perdida no deserto ígneo do seu sofrimento. Por isso, atormentada, África suplica a proteção salvadora da divindade, que parece, porém, indiferente: «Embalde aos quatro céus chorando grito: “Abriga-me, Senhor!...”».

            Na décima terceira estrofe, volta-se para o seu “Deus terrível”, questionando-o sobre se não chega já de dor e os motivos de tanto sofrimento: “E que é que fiz, Senhor? que torvo crime / Eu cometi jamais que assim me oprime / Teu gládio vingador?!”. Como estes versos indiciam, o «eu» deseja conhecer a origem do crime pelo qual padece até ao presente, isto é, encontrar as razões dos padecimentos africanos. Convém, a este propósito, fixar o seguinte: o poema contém diversas imagens bíblicas e referências religiosas, que o «eu» poético usa para criticar não apenas o sistema esclavagista, mas sobretudo a forma como a Igreja sustentava, através do seu discurso, o direito de os homens brancos escravizarem os seus congéneres negros. Esse discurso “justificava o tráfico atlântico pela transferência do cativo de um mundo africano de barbárie para a civilização cristã brasileira” (MAESTRI). Ora, um mundo civilizado jamais promoveria a escravidão do seu semelhante; ao fazê-lo, a Europa constituía um exemplo de barbarismo. Por outro lado, acusa Deus de ser alguém terrível e cheio de sentimentos de vingança e rancor, ligados à presença de Cam em África, cuja história está narrada no Génesis, livro que também dá conta da jornada épica do povo hebreu, o qual conheceu a escravidão no Egito até ser libertado por Moisés. Esse mesmo povo e o seu sofrimento no cativeiro seriam vingados por Javé. Embora em nenhum passo o referido texto dê a entender que Cam e os seus descendentes se exilaram em África, o uso do nome «vingança» no poema parece indiciar a referência a esse povo.

            A décima quarta estrofe parece fornecer o motivo, a culpa original de África, após o dilúvio: o matrimónio entre duas culturas – “Cam!... Serás meu esposo bem amado… / Serei tua Eloá…”. Cam é o filho mais novo de Noé, que foi salvo do dilúvio, juntamente com os seus dois irmãos (Sem e Jafé), na arca que Deus mandara construir ao pai. Quando o fenómeno bíblico cessou, Noé plantou uma vinha, colheu as uvas nela produzidas, embriagou-se com o vinho feito e adormeceu, nu, na sua cabana. De acordo com o relato bíblico, Cam surpreendeu o pai embriagado, desacordado e nu, e, em vez de o cobrir, foi contar aos irmãos, que, andando de costas, o taparam sem ver a nudez paterna. Quando acordou, Noé amaldiçoou Canaã, um dos filhos de Cam, referindo-se-lhe como “servo dos servos”: “Maldito seja Canaã; servo dos servos será de seus irmãos”. Segundo alguns estudiosos, ao proferir tais palavras, Noé estaria a profetizar que um dos irmãos de Canaã iria herdar a terra dos cananeus (os habitantes da antiga terra de Canaã, situada no Médio Oriente e que correspondia sensivelmente ao atual território de Israel), enquanto outros sustentam que Cam poderá ter mantido relações incestuosas com a mulher do seu pai, pelo que Canaã teria sido amaldiçoado por ser o produto dessa união ilícita. Esta maldição terá sido aproveitada por várias religiões monoteístas para justificar o racismo e a escravidão de negros africanos, que acreditavam ser descendentes de Cam. No Brasil, foi usada para fundamentar a escravização dos índios: “Não há lei divina nem humana que proíba a possessão de escravos […] [e os índios brasileiros] são da descendência da maldição de Cam” (João de Sousa Ferreira, missionário). Por outro lado, a partir do século XVIII, diversos autores europeus começaram a defender que, etimologicamente, a palavra “Cam” significaria «queimado» ou «escurecido», tese que é cabalmente desmentida pelo estudo de línguas antigas. Na versão europeia, como Cam e o seu filho passaram a habitar a África, o homem negro estava fadado à escravidão. Esse matrimónio entre África e Cam é o cruzamento de culturas e etnias que ocorreu ao longo da História desde os remotos tempos bíblicos, o que parece apontar para o pecado original. Seja como for, graças a essa “mancha original” que envolve Cam e Eloá (do hebraico, significa “Deus”), as gerações africanas sofrem o «anátema cruel» ao longo dos séculos. A partir daí, os africanos perderam-se nos valores do «judeu maldito» e foram arruinados e destruídos pelas «garras» da Europa (décima quinta e décima sexta estrofes). Dito isto, o perdão reclamado por África é, portanto, pelo seu crime de ter recebido um viajante “Negro, sombrio, pálido, arquejante” (vv. 79-80), isto é, a figura amaldiçoada de Cam. A sua descrição como homem negro não possui qualquer fundamento bíblico, pelo que o mais provável é que Castro Alves o tenha caracterizado dessa forma para mostrar Cam era um ser etnicamente semelhante àqueles que o expulsaram, ideia que indicia que a cor da pele, a razão apontada para justificar o direito de um homem escravizar outro, deixa de existir. Assim, o poeta procurou mostrar que essa ideologia, a associação entre escravos e negros, era uma criação por quem se dedicava a esse tipo de comércio e tinha, portanto, interesses económicos na situação.

Na décima sexta, o «eu» alude à perseguição a que Moisés e os hebreus foram sujeitos pelos egípcios aquando da fuga do Egito: “Vi meu povo seguir – Judeu maldito – / Trilho de perdição”. Na décima sétima, África mostra o seu ceticismo relativamente ao Cristianismo, pois Cristo sacrificou-se em vão, já que não houve qualquer redenção da humanidade: a África e os seus filhos continuam a alimentar, com o suor e o sangue do seu corpo, as duas «irmãs» dominantes. Cristo foi crucificado e morreu para que os pecados dos homens fossem apagados, no entanto essa crucificação foi inútil para África, dado que o seu pecado original não foi lavado pelo sangue de Jesus, pois continua a sofrer. Mas que pecado foi esse? África recebeu Cam e a sua descendência, facto que justificaria a sua escravização. Note-se que o facto de Jesus Cristo ter sido escondido no continente africano e passar a habitá-lo não o tornou berço da cultura mais elevada (também Belém de Judá, onde Jesus nasceu, era considerada, antes da construção do Canal do Suez, parte de África). Jesus, que passou despercebido entre os egípcios por ter um tom de pele semelhante, depois de morto foi embranquecido pelos europeus para assim propagar a ideologia branca. “No poema a voz d’África diz que o «sangue não lavou a mancha original». Se se considera a mancha original a tal mentira eurocêntrica que, depois de dar interpretação para o racismo, também mentiu ao esconder que enaltecia um negro como seu salvador, é a ancestralidade africana que fala; se se considera a mancha original o corpo negro de Cristo que através da morte livrou o homem negro da escravidão, quem fala pode ter pele negra, mas usa a mesma máscara branca que fez com que Cristo se tornasse branco.” Além disso, o sujeito poético apresenta o continente africano como uma fazenda onde se criam animais para o trabalho: “Meus filhos – alimária do universo, / Eu – pasto universal…” (vv. 101-102).

A penúltima estrofe introduz a terceira irmã, a América «traidora», que se transformou em ave de rapina (“Condor que transformara-se em abutre, / Ave da escravidão, / Ela juntou-se às mais…”), subjugando África no processo de escravidão. De facto, a América, tida como o símbolo da liberdade, e o Brasil, que, nas margens do rio Ipiranga, proclamara o fim da sua submissão a Portugal, são retratados não como portadores dessa promessa de liberdade, mas como um abutre que se alimenta do sangue africano, do seu suor, da sua existência, como o demonstrava a existência de inúmeros escravos nestes territórios, distribuídos pelas plantações e pelos afazeres domésticos. Alude-se depois a outro episódio bíblico, o de José do Egito, que foi vendido pelos próprios irmãos, comparando o destino da personagem bíblica à sina de África ver os filhos vendidos pela irmã malvada

            Na última estrofe, a África suplica por redenção pelo seu crime original: “Basta, Senhor!”, projetando o seu grito no infinito.

            Em suma, o poema configura uma alegoria do destino trágico do ser africano, visto através da própria África enquanto continente. Assim, é esta que narra as suas desgraças, lamenta o seu destino e implora a misericórdia divina. Além disso, os africanos, metonimicamente, apresentados todos como uma nação, queixam-se a Deus pela sua desventura, pela tristeza de ver os seus conterrâneos arrancados do solo pátrio para serem escravizados. Mais do que isso, o poema sugere a ideia da condenação eterna, isto é, a personagem África observa que o seu destino será sempre a exploração, “sem lugar ao sol”. Fica a ideia de desejo de liberdade e autonomia.

            Castro Alves impõe-se como o cantor do negro escravo. Ele assume uma postura de indignação face à escravatura, o que o leva a cantar o escravo. Esta indignação está presente na imagem de grandeza, nas antíteses, símiles, comparações. Tudo nele é grande e infinito. A sua poesia abolicionista caracteriza-se por essa eloquência e grandiosidade. Em Castro Alves, nota-se um certo exagero na escrita e na forma: uso inconsciente de imagens, vertigem oral, abundância de adjetivos, o que contrasta com a contenção de Gonçalves Dias.

            O escravo é aqui apresentado como um drama amplo e abstrato, ao contrário da individualização de A Cachoeira. É como se o negro tivesse em si o próprio destino humano. Tudo isto mostra o destino como um elemento fundamental no Romantismo, sendo a função do poeta cantá-lo. A sua visão do negro acaba sempre por ser idealizada: ele cobre o negro com um manto redentor; é um herói integralmente humano, que sofre e ama. Claro que o processo de defesa do negro aparece numa altura em que ele era a principal fonte de mão de obra, o que justifica a resistência do público e dele mesmo, o que o leva a idealizar os traços físicos e morais do negro.

            Quanto à natureza, ela surge como personagem central e necessária, não só como cenário, mas também como cenário onde se integram as personagens.

Crónica de D. João I: Capítulos CXV e CXLVIII


sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Análise do poema "A canção do africano"


             Este poema, escrito em 1863 por Castro Alves, tem como tema o africano exilado da sua terra natal africana que tem de se encontrar em território brasileiro, ou seja, a composição mostra a solidão de um povo oprimido numa terra estranha. Assim sendo, estamos na presença de um contraste entre continentes: a África representa a liberdade e a América a escravidão. Perante esse desenraizamento e essa solidão, para não se perder, o escravo negro entoa canções da sua terra natal.

            O poema é constituído por nove estrofes, cinco sextilhas e quatro quadras, com rima emparelhada e interpolada nas sextilhas (AABCBC) e cruzada nas quadras, com dois versos brancos ou soltos (ABCB). Nas quadras, o poeta dá voz ao escravo africano cativo em terras brasileiras, colocando na sua boca uma suposta canção popular africana, que ele canta dentro de uma senzala expondo o seu sentir de cativo e exilado.

            Na primeira estrofe, o «eu» poético apresenta o escravo africano preso numa senzala húmida e acanhada, sentado no chão junta a um pequeno braseiro, inundado pela saudade de África, a sua terra natal, que o faz chorar silenciosamente enquanto canta uma canção cujo teor ainda se desconhece, mas indiciado desde já pelo título da composição poética: a recordação da sua vida em África.

            Na segunda, são introduzidas outras figuras que se encontram no interior da senzala: uma mulher, também escrava, com uma criança ao colo, que ela embala nos braços para a adormecer. Quando ouve uma canção entoada pelo homem, a figura feminina começa também a cantar, num tom de voz bem baixo, pois não quer que o filhou ouça.

            A terceira estrofe – a primeira quadra – revela-nos o conteúdo da canção pela voz do próprio cantor. O tema musical, marcado pela saudade de África, caracteriza-a como uma terra muito distante (“Minha terra é lá bem longe”), de onde vem o sol, menos bela do que as terras brasileiras (o resultado desta comparação, isto é, a superioridade da beleza brasileira relativamente ao continente africano, mostra que o poeta romântico, por mais que queira, não consegue escapar ao seu espírito ufanista). No entanto, apesar disso, a sua saudade e os eu amor são dedicados à terra de onde foi roubado: “Mas à outra eu quero bem!”).

            A quadra seguinte dá continuidade à canção, que dá conta de quão quente é o astro-rei em África através de várias hipérboles (“O sol faz lá tudo em fogo, / Faz em brasa toda a areia;”), todavia o «eu» afirma que é bela a visão da estrela da tarde no céu de África, que é apelidada de “papa-ceia”, o equivalente ao planeta Vénus ou Estrela d’Alva: “Ninguém sabe como é belo / Ver de tarde a papa-ceia!”

            A próxima quadra volta a estabelecer uma comparação entre o Brasil e a África, através, nomeadamente, da vastidão das terras, comparada por sua vez à do mar (“Aquelas terras tão grandes, / Tão compridas como o mar”) e ao menor número de palmeiras (“Com suas poucas palmeiras”). Deste modo, o «eu» poético estabelece um contraste entre a natureza paradisíaca brasileira e a escravidão que lá     se faz sentir.

            A última quadra que dá voz à canção saudosa do escravo canta a felicidade que este experimentou na sua terra natal e que é um sentimento coletivo (“Lá todos vivem felizes”), recorda as danças típicas africanas (“Todos dançam no terreiro”) e, sobretudo, denuncia a escravatura que experimenta no Brasil, por oposição à liberdade que existia em África: «”A gente lá não se vende / Como aqui, só por dinheiro”.» Por outro lado, nesta estrofe, à semelhança do que sucede nas demais quadras, está presente uma antítese entre os dois primeiros versos e os dois últimos: ela começa aludindo ao sonho bom que era a vida em África e termina afirmando que o povo africano não é movido pelo dinheiro como o brasileiro, que é capaz de vender pessoas em troca do vil metal.

            Na estrofe seguinte, o «eu» poético recupera a sua voz no poema, para contar que o escravo fica em silêncio junto ao fogo que se começava a apagar. A escrava, que cantava baixinho enquanto embalava o filho no colo, emudece também: mais do que cantar, ela soluça, chorosa, triste pela saudade da sua terra (“O escravo calou a fala, / Porque na húmida sala / O fogo estava a apagar; / E a escrava acabou seu canto, / Pra não acordar com o pranto / O seu filhinho a sonhar!”). Deste modo, o que ela silencia não é a canção ou o canto, mas o choro, para que o filho não acorde.

            As duas últimas estrofes dão notícia da preparação das três figuras para se deitarem: “O escravo enão foi deitar-se…”; “E a cativa desgraçada / Deita seu filho…”. Porém, estas notas são apenas o pretexto para o «eu» poético denunciar a realidade dura enfrentada pelos escravos. Por exemplo, o cativo, se simplesmente acordasse tarde, seria espancado: “Pois tinha de levantar-se / Bem antes do sol nascer, / E se tardasse, coitado, / Teria de ser surrado, / Pois bastava escravo ser.”. Por seu turno, a mulher deita-se angustiada e receosa, com medo que, durante a noite, o seu «dono» surgisse e lhe levasse o filho. Pelo contrário, a criança, por oposição aos adultos, ainda não tem consciência da realidade e de que não passava de uma simples mercadoria naquele ambiente de escravidão, em que homens, mulheres e crianças de pele negra não tinham liberdade nem voz.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Análise do poema "A Cachoeira de Paulo Afonso"


             A Cachoeira de Paulo Afonso é um poema narrativo, composto por trinta e três poemas dramático-narrativos dispostos segundo uma ordem cronológica para cada acontecimento, interligados uns aos outros de modo a formar uma narrativa, publicado em 1876, cinco anos após a morte do seu autor, Castro Alves, e em pleno período em que o movimento abolicionista ganhava força entre os intelectuais brasileiros. A independência do Brasil, em 1822, serviu de estímulo à nação para a redefinição da identidade nacional.

            A obra explora liricamente o tema romântico da impossibilidade da vivência do amor, o cerceio dos direitos primários – representado pela violação sofrida pela escrava Maria –, a escravidão e, por fim, a restauração moral dos indivíduos escravizados, que efetivam metafisicamente o seu amor através do suicídio, despenhando-se de uma cachoeira a bordo de uma canoa. Deste modo, o casal preserva a honra por meio da morte e liberta-se da tragédia e da opressão social através da recuperação do seu próprio destino. A narrativa constrói-se em torno do estupro sofrido por Maria às mãos do filho do senhor de escravos. Apesar do desejo de vingança, Lucas, o escravo amante de Maria, desiste desse seu propósito quando descobre que o criminoso é seu meio-irmão. Dado que o projeto de vingança não se concretizará, o casal lança-se do alto da cachoeira de Paulo Afonso, um conjunto de imensas quedas de água do Rio São Francisco, na Baía, assegurando, assim, a sua união cósmica.

            Os poemas que constituem a obra são os seguintes: “A tarde”, “Maria”, “O baile na flor”, “Na margem”, “A queimada”, “Lucas”, “Tirana”, “A senzala”, “Diálogo dos ecos”, “O nadador”, “No barco”, “Adeus”, “Mudo e quedo”, “Na fonte”, “Nos campos”, “No monte”, “Sangue de africano”, “Amante”, “Anjo”, “Desespero”, “História de um crime”, “Último abraço”, “Mãe penitente”, “O segredo”, “Crepúsculo sertanejo”, “O bandolim da desgraça”, “A canoa fantástica”, “O São Francisco”, “A cachoeira”, “Um raio de luar”, “Despertar para morrer”, “Loucura divina”, “À beira do abismo e do infinito” e “A cachoeira de Paulo Afonso”.

            Maria e Lucas marcam um encontro no rio S. Francisco. Ela chega primeiro e decide banhar-se no curso de água, no entanto é surpreendida por um homem. Inicia-se, então, uma longa perseguição pelos campos, até que é alcançada e estuprada. Enquanto isso, Lucas anda pela mata cantando o seu amor por Maria. Quando chega a casa dela, não a encontra, por isso volta a percorrer a mata à sua procura. Encontra-a a dormir numa canoa que ia descendo o rio em direção à cachoeira Paulo Afonso (hoje desaparecida para dar lugar a uma hidroelétrica). O escravo nada até à embarcação e acorda a amada, que confessa que está ali de propósito para cometer suicídio. Posteriormente, conta-lhe que, enquanto tomava banho numa fonte, foi atacada e estuprada, não sem antes ter tentado escapar. Lucas não duvida de Maria nem a culpabiliza, mas diz-lhe que, em vez de se matar, ambos deveriam procurar o culpado e vingar-se. No entanto, a escrava recorda uma promessa que ele fizera a sua mãe no leito de morte: a velha escravizada tinha revelado que fora estuprada pelo patrão (o Senhor) e morta por ciúmes pela sua esposa (a Sinhá). Além disso, pedira-lhe que não se vingasse, o que o torna impotente perante a situação trágica em que se vê envolvido. Na sequência, Maria fá-lo prometer que não buscará vingança. Como sucede por vezes com algumas vítimas de agressão, a jovem parece sentir-se culpada do crime que ela própria sofreu. Maria revela, então, que o estuprador tinha sido Sinhozinho, o filho do patrão e irmão paterno de Lucas. A memória do último pedido da mãe convence-o a não procurar vingança. Aparentemente concordando com ambas as mulheres vitimizadas, para não desrespeitar a promessa feita e assassinar o seu meio-irmão, conclui que a morte é a melhor solução e abraça-se a Maria enquanto a canoa se precipita na cachoeira de Paulo Afonso, no rio São Francisco.

            A obra abre com o poema “A Tarde”, que descreve a atmosfera bucólica e deslumbrante em que vivia Maria, uma jovem delicada como a flor do sertão e sensual, com um corpo harmonioso e belo como a natureza, a qual desempenha um papel relevante em todas as situações em que a antítese é chamada a sublinhar contrastes reveladores de um conflito moral ou sentimental. As paisagens predominantes são as naturais, como a natureza sertaneja. Ocasionalmente, surge, nas visões das personagens, a paisagem bíblica, como, por exemplo, no texto “A Senzala”, em que há referência à luz do Paraíso, feita por Lucas.

            No poema “Maria”, é-nos apresentada a protagonista, logo após o desvendar, em “A Tarde”, da atmosfera bucólica em que vivia. Temos, assim, o uso de uma técnica romântica: inserir as personagens no ambiente que as rodeia. Maria é uma mucama, palavra que não tem o mesmo significado da literatura africana, e o seu retrato corresponde ao modelo romântico da figura feminina, ou seja, o de uma escrava, mulher mulata, uma presença que desperta o desejo, a luxúria, que está carregada de sensualidade: “‘‘A grama um beijo te furta / Por baixo da saia curta, / Que a perna te esconde em vão… / Mimosa flor das escravas.”. Ao longo do poema, o sujeito lírico mistura essa imagem de escrava à condição de mulher duplamente violada – por ser mulher e por ser escrava negra –, suscitando no leitor sentimentos de compaixão.

            Em “O baile na flor”, o sujeito poético descreve a rara beleza da natureza, comparando a floresta com um baile no qual os convidados são silvos e fadas, flores e insetos, que bailam ao som de uma animada “orquestra de grilos nas flores”, e explora a riqueza exuberante, «mágica» e intocada e cheia de vida da fauna e da flora brasileira.

            Na descrição da “Queimada”, o narrador percorre o campo a cavalo, acompanhado do seu perdigueiro, à procura de descanso e de reencontro consigo mesmo, o que proporciona cenas que captam tanto a realidade física e geográfico quanto a social, pois nelas estão presentes tipos regionais, como o tropeiro, o vaqueiro, o violeiro, a mulata, entre outros, que formam com os elementos naturais um painel variado e grandioso. Nesse seu percurso, o «eu» testemunha um incêndio que destrói tudo, como consequência da ação humana. Esta parte funciona como uma espécie de prólogo do que está para ser narrado. A natureza é antropomorfizada, é vista como um conjunto de vidas. Nela, o coração sangra e o cedro, tal como um ser humano, esbraceja para o alto perante a devastação total.

            Lucas entra em cena no poema homónimo, que mostra como o «eu» lírico valoriza o negro enquanto homem, que passa a ter uma identidade: chama-se Lucas, é um lenhador, escravo e pretendente de Maria. O poema valoriza a sua beleza negra, destacando traços do seu rosto, as suas mãos, o seu vigor físico, bem como o seu canto. Descendo a encosta do monte, ao clarão da queimada, à procura da cabana, ele pensa na sua amada e canta baixinho a tirana, uma melodia criada por si mesmo. Na canção, Lucas faz referência à beleza da amada, que não é percebida apenas pelo escravo, pois o filho do patrão também já tinha notado a sensualidade de Maria. Em simultâneo, a natureza é enquadrada como o trabalho do escravo lenhador e como uma espécie de sua mãe, ele que é tão vigoroso como a floresta: “Um belo escravo da terra / Cheio de viço e valor… / Era o filho das florestas! / Era o escravo lenhador! / Que bela testa espaçosa, / Que olhar franco e triunfante! / E sob o chapéu de couro / Que cabeleira abundante! / De marchetada jiboia / Pende-lhe a rasto o facão… / E assim… erguendo o machado // Na larga e robusta mão…”.

            O sétimo poema, intitulado “Tirana”, parece uma cantiga, pelo uso da redondilha maior, que lhe dá um ritmo acentuado. Aliás, a seleção do ritmo e da métrica é típica de um certo folclore, mas nele encontramos outras características, como a comparação da mulher com elementos da natureza do Brasil: manoca, baunilha, valorizada pela forma como cresce, pelo seu odor, que mostra uma certa sensualidade. No que diz respeito à caracterização de Maria (mulata, com tranças, etc.), a descrição é toda eufemística, dado que a intenção é idealizar o negro, tal como a de José de Alencar passava por valorizar o índio. O processo é o mesmo, o que diverge são as figuras e a respetiva função: a idealização do indígena tinha por objetivo a busca das raízes da nacionalidade, enquanto a do negro visava a sua defesa. Em ambos os casos, a idealização procura a aproximação ao branco. Castro Alves coloca um véu sobre o negro, pois é sempre referido por “moreno” / “mulato”. No “Navio Negreiro”, o objetivo era chocar o leitor; neste poema, é arrastá-lo. A estrofe final tem uma imagem parecida com a que aparece no final de Iracema: Martim ouve a voz de Iracema na palmeira.

            Em “Senzala”, o sujeito poético procura retratar a casa onde Maria, a escrava mulata, vivia, uma habitação pequena, bela e singela, e onde os passarinhos chilreavam e brincavam.

            No poema “O Nadador”, é introduzido o filho do patrão, que surpreende Maria a tomar banho no rio, a qual se assusta com a sua presença. A perseguição e o estupro são motivos que o excitam, dado que a escrava denota o sentido da caça. Este tipo de atos, na época da escravatura, era bastante comum, por isso, se o pai cometera tal violência no passado, o filho imita-o e repete-a. Além do caráter repugnante e intolerável do crime que é a violação, a verdade é que a mesma provoca a desestruturação do sentido da família negra. O escravo, como consequência, via-se impossibilitado de ter o mínimo de organização social e psicológica. De facto, a escravidão e a depravação sexual andam de mãos dadas, pois fazem parte do regime da escravatura. Um dos motivos que justificava estas atitudes por parte dos fazendeiros era, além do prazer da caça, o interesse financeiro. Com efeito, estes atos favorecia o crescimento do número de escravos, pois eram muitas vezes estimulados a procriar em troca da liberdade. Contudo, os fazendeiros, em muitos casos, encarregavam-se pessoalmente de aumentar o seu número de escravos.

            Por outro lado, na maioria dos poemas românticos sobre escravos, a beleza do corpo da escrava é descrito como mulher-flor e mulher-caça, isto é, como um objeto. Este poema de Castro Alves realiza uma série de inversões e deslocamentos relativamente ao que era característico entre os românticos. O erótico e o sensual, por exemplo, são inscritos simultaneamente; a tragédia que atinge este casal é situada num nível racial e social. A violência erótica complementa a violência racial, social e económica. Há uma série de fatores que desencadeiam esta prática violenta, como o desejo de dominação do objeto, dado pela atração sexual. Ganha destaque a união do prazer com a violência sexual como prática social: para o obter, o homem necessita de caçar um ser de outra espécie, alguém que seja diferente de si, o que pode passar pela posição social, como é o caso do senhor e da escrava. Esta diferença social torna a prática sexual em algo tão satisfatório como a caça. Maria, na sua condição de escrava, constitui o objeto ideal para esta busca de prazer sexual.

            A obra mostra que Maria é diferente das outras mucamas: ela não quer nada do patrão, não possui nenhum interesse, como sucede no caso de uma troca de favores, visto que não faz uso dos seus atributos físicos para retirar benefícios. Na verdade, ela é metaforizada como a noiva da morte, dado que os seus projetos de felicidade são destruídos tragicamente. Maria é descrita como a “flor manchada por cruel serpente”, “a rola”, “a perdiz” tomada pelo violador. A sedução não existe, apenas violência, a qual determina não só o drama do casal, mas o da sociedade, cuja repressão não deixa margem para a concretização do desejo de liberdade.

            Numa sociedade escravocrata, brancos e negros desempenhavam papéis bem definidos. O facto de o homem burguês branco ver a mulher de categoria social inferior – neste caso, a escrava – como objeto sexual associou a ideia do prazer sexual à decadência social e até económica, o que inviabilizava qualquer hipótese de existir sentimentos afetivos entre pessoas de estratos sociais e económicos diferentes.

            Em “Adeus”, Lucas critica o facto de Maria, a sua amada, lhe ter dito adeus, pois sem ela ele não consegue viver; pelo contrário, se a separação se concretizasse, morreria de tanta dor, situação que prossegue em “Mudo e quedo”, onde se mostra a desgraça de um amor passado e a dor que deixa marcas permanentes para aquele que fica – uma das características do romantismo brasileiro.

            O primeiro monólogo de Maria na obra sucede nos poemas “Na Fonte”, “Nos Campos” e “No Monte”, nos quais a escrava relata, na primeira pessoa, a experiência da violência sexual que sofreu. Para Castro Alves, o estupro da mulher amada pelo dono de escravos correspondia ao derradeiro degrau na descida moral do escravo à indignidade irrestrita. Maria, após percorrer a mata durante bastante tempo, chega a uma fonte, um ambiente que representa o local onde (uma divindade que alguns autores associam à masturbação, à epilepsia e, inclusive, à violação) espera as ninfas. A jovem escrava decide banhar-se na água da fonte, mas, de súbito, surge em cena o filho do patrão. Maria fica em pânico (segundo alguns autores, este nome provém precisamente de Pã), pois estava num local ermo, sozinha com ele, estava nua e sem ninguém que lhe pudesse acudir. Começa a correr, então, para o campo, mas a fuga é em vão, dado que logo é alcançada pelo homem, que representa o deus acima referido no poema, só que, enquanto Pã era escuro e perseguia ninfas brancas, o filho do patrão é branco e encontra-se na presença de uma “ninfa mulata”.

            A cena, que deveria corresponder a um momento de sedução do amado (Lucas) transforma-se num ato de extrema violência física que impede o encontro amoroso dos dois escravos. O erotismo e a sexualidade adquirem, assim, um caráter manifestamente negativo, associado à violência física e psicológica, a um comportamento patológico e doentio, não só em termos psicológicos e genéricos, mas também físicos e concretos, visto que estas atitudes levaram a que o negro brasileiro adquirisse doenças venéreas, como, por exemplo, a sífilis, sobretudo nas senzalas coloniais.

            A obra gira em torno do casal de escravos, que lutam pela dignidade, pela liberdade e pela moral da personagem feminina, que foi violentada. No poema “Desespero”, encontramos o discurso de Lucas, quando a amada lhe implora que esqueça a vingança e ele lhe responde dizendo que a jovem nunca soubera o que era ser escrava de verdade, que os escravos são injustiçados desde o berço. Deste modo, Castro Alves procura mostrar que o papel do negro nunca foi de apatia e inércia, pelo contrário ele constitui-se como sujeito, tal como Maria, que é estuprada e se preocupa com o seu valor moral.

            Em “História de um Crime”, Maria descreve o cenário do episódio da morte da mãe de Lucas: “estreita e lodosa sala”, na qual arquejava a mulher em “triste agonia”, numa noite sombria de vendaval, e a parca iluminação do espaço contrastava com a face amarelada de Cristo na parede; os latidos do cão de guarda; o abatimento físico da escrava nos seus derradeiros instantes de vida (“o derradeiro suor”, “acordava a mártir”, “ouvia em torno com medo”, “Do peito cansado, exangue, / Às vezes rompia o sangue”).

            Nos poemas seguintes – “Último Abraço”, “Mãe Penitente” e “O Segredo” –, rememoram-se os eventos passados, presentificando-os, estabelecendo o «eu» poético um paralelismo entre os traumas vivenciados pela mãe de Lucas e por Maria, o que evidencia a perpetuação da violência senhorial entre sucessivas gerações de escravos. Estes poemas convocam também a questão da religião, à qual está associado um caráter omisso perante a violência, como é o caso do estupro de Maria. Além disso, apenas os brancos eram protegidos; a mãe de Lucas não teve nenhuma prece quando estava a morrer; o padre era representado por duas crianças, como se pudessem dar a extrema-unção: “Ainda me lembro agora / Daquela noite sombria / Em que u’a mulher morria / Sem rezas, sem oração!... / Por padre – duas crianças… / E apenas por sentinela / Do Cristo a face amarela / No meio da escuridão.” (“História de um crime”). A imagem da mãe agonizante é bastante emotiva, como se pode comprovar pelo uso de recursos como os vocativos (“Filho, adeus!”) e nas apóstrofes exclamativas (“Que sina, meu Deus!”, “Pois que seja feita, Senhor!”). O apelo insistente da escrava, dirigido ao filho, é intenso e pleno de emoção e dramatismo: “Chega-te perto… mais perto; / Nas trevas procura ver-te / Meu olhar, que treme incerto, / Perturbado, vacilante…” (“Último Abraço”). Um outro recurso importante é a gradação de ideias relacionadas com os abusos cometidos contra si: “De espedaçarem-se as carnes / O tronco, o açoite, a tortura, / De tudo quanto sofri.”), cuja progressão ascendente denuncia a violência a que foi sujeita. No final de “Mãe Penitente”, a mulher pede perdão ao filho por o predispor, na condição de propriedade alheia, ao sofrimento infindável: “fiz o maior dos crimes: / – Criei um ente para a dor e a fome!”

            Por seu turno, “O Segredo” está dividido em quatro segmentos. Os dois primeiros compreendem a fala da mãe de Lucas, na qual ela, no leito de morte, lhe revela que o pai é o patrão, de quem primeiro foi vítima e que quem a havia induzido à morte fora a sua esposa, num ímpeto de raiva e ciúme. De facto, estas figuras, dominadas pelo ciúme, visto que não eram amadas nem respeitadas pelos maridos, procuravam dominar, tiranizar e exercer violência sobre os escravos, com o objetivo de se vingarem. Esta noção é comprovada pela seguinte fala da mãe: “Matou-me como um tigre carniceiro, / Bem vês, / Uma branca mulher, que em se resume / Do tigre – a malvadez / Da cascavel – rancor!” De seguida, apela ao filho que tenha piedade do pai, obrigando-o a prometer-lhe que nunca se vingaria dele em nome dos laços de sangue que os unem: “Mas hás de jurar primeiro, / Que jamais tuas mãos inocentes / Ferirão meu algoz derradeiro…”; “Deixo-te, pois… / (…) Um crime a perdoar…”. O terceiro segmento do poema é constituído por uma estrofe que dá conta do desalento do pequeno Lucas atrelado ao corpo da mãe já morta. As doze estrofes seguintes regressam ao presente, ao momento em que Maria e o amado dialogam sobre a promessa feita à mãe na infância e, na sequência, a jovem confessa o nome do seu violador: o filho do patrão, meio-irmão de Lucas. Na última estrofe de “O Segredo”, o escravo sustenta não apenas o desejo de defender a honra dos seus, mas também a recusa do seu rebaixamento moral: “Ninguém! que a nada humilho-me”, mas, logo de imediato, é esmagado pela revelação de Maria: “Mata-me!... É teu irmão!...”. Esta revelação de parentesco altera dramaticamente o curso dos acontecimentos, nomeadamente o futuro do casal de jovens escravos. É o momento da anagnórise da tragédia clássica grega, segundo a qual a revelação de um dado desconhecido muda o rumo da ação. É o que acontece, por exemplo, em Frei Luís de Sousa, quando é revelado que o Romeiro é, afinal, D. João de Portugal, ou n’Os Maias, o conhecimento de que Carlos e Maria Eduarda da Maia são irmãos.

            A revelação do crime e do parentesco entre Lucas e o estuprador da sua amada, juntamente com a promessa feita há muitos anos à mãe daquele, impedem a concretização do sonho de permanecerem juntos, do seu amor. Perante estes dados e inconformismo com a situação, a morte surge como a solução para o drama, pois, paradoxalmente, traz consigo o símbolo da liberdade. Deste modo, Eros torna-se Thanatos (irmão de Hipno, o sono, e filho de Caos e das Trevas), ou seja, o erotismo desemboca na morte, no momento em que ambos se precipitam na cachoeira. Este desfecho pode ser associado ao mito do mergulhar, afogar-se e renascer, no fundo, o batismo. Assim sendo, o gesto dos amantes representaria a morte para um nascer de novo.

            A partir do poema “Despertar para Morrer”, somos confrontados com antíteses que enfatizam a descrição da violação erótica e social e traduz as sensações de surpresa e de imprevisto, enquanto, em “Loucura Divina”, se assiste à transmutação da natureza, entre o mundo real e o mundo ideal. Por exemplo, quando se alude à morte, esta corresponde ao seu oposto – “redenção”; a “canoa”, que se refere ao “esquife”, passa a possuir o sentido de “berço”, embalado não pela morte, mas pela mãe natureza. Este poema mostra um diálogo entre duas pessoas que discutem o que seriam os sons que estão a ouvir, desconhecendo que se tratava da morte, que os chamava sob a forma do som da cachoeira. Por outro lado, mostra que, para Lucas e Maria, a morte é uma libertação. No processo de busca da morte, os escravos deixam a canoa em que navegam deslizar rio abaixo, até a mesma se precipitar na cachoeira, concretizando, assim, metaforicamente em himeneu, isto é, um casamento. Nele, as estrelas são como as tochas de uma igreja; os rochedos são a representação de incensos e Deus é o sacerdote que celebra a união dos “noivos da morte”. Assim sendo, Maria e Lucas consumam as núpcias na morte. A natureza envolvente constitui o cenário da celebração da sua união externa.

            No poema final, “À beira do abismo e do infinito” revela-nos uma cena em que a morte cobre o casal de escravos através das águas do rio São Francisco num último suspiro e beijo de amor que os eterniza.

            O suicídio do casal remete para a história de Romeu e Julieta. O amor entre este casal não constitui a negação da vida, pois o seu caráter trágico aprofunda e enobrece o verdadeiro sentido do seu amor, visto como transcendental. Algo semelhante parece acontecer com Maria e Lucas, só que num âmbito diferente, pois a impossibilidade de concretização do seu amor deve-se não a uma rivalidade e ódio entre famílias, como sucede na peça de Shakespeare, mas em diferenças hierárquicas e sociais. O desejo de liberdade e o amor parecem ser coartados pela repressão da época. Assim, o suicídio tem um caráter social que é fruto dessa repressão, a qual tornou impossível o sonho dos amantes: o casal de escravos em conflito com as forças sociais que o coage e desmoraliza. No final a morte representa a abdicação da vida, pois esta não corresponde às expectativas de Maria e Lucas, que não se submetem aos ditames do regime escravocrata. As mortes assumem um caráter de recusa e de protesto contra esse sistema, contra essa «organização» social. A morte, enquanto símbolo de redenção, transpõe o sentido do amor do casal, atingindo, assim, a transcendência do amor: “A canoa rolava!... Abriu-se a um tempo / O precipício!... e o céu!...”.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Análise do poema "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias


             “Canção do Exílio” é o poema mais conhecido de Gonçalves Dias, um texto pertencente `primeira fase do Romantismo, datado de julho de 1843, quando o poeta se encontrava em Coimbra, Portugal, desenvolvendo temáticas como o patriotismo e o saudosismo em relação à terra natal, publicado em 1846, na obra Primeiros Cantos, livro de estreia do escritor maranhense (trata-se, na verdade, do primeiro poema do livro).

            Aurélio Buarque destaca a simplicidade da composição, marcada pelos seguintes traços:
a ausência de qualificativos, o que favorece a valorização dos nomes, “carregados já por si de um denso conteúdo sugestivo”;
a técnica da repetição;
o encadeamento e o paralelismo, que reforçam o sentimento profundo da nostalgia.

            Há um aspeto que marca os poemas do Romantismo e que, por vezes, aparece em Gonçalves Dias: a epígrafe, sobretudo de autores românticos. Neste caso, temos um extrato de um poema de Goethe (1749-1832), intitulado “Balada de Mignon”, que manifesta a saudade de uma terra paradisíaca e distante e um desejo de evasão no tempo e no espaço, marcado pela oposição entre o «cá» e o «lá»: “Conheces o país onde florescem as laranjeiras? Ardem na escura fronde os frutos de ouro… / Conhecê-lo? / Para lá, / para lá, / quisera eu ir!”. Nestes versos de Goethe, nota-se o louvor da pátria e dos seus aspetos característicos. Gonçalves Dias segue o «modelo» do poeta alemão e compõe um poema que glorifica as belezas da sua terra natal. Em ambos os textos, mostra-se o sentimento que sente o exilado em relação à terra de origem, elogiam-se as árvores (em Goethe, são as laranjeiras e, em Gonçalves Dias, as palmeiras) e existe uma forte musicalidade. Há ainda a oposição entre um cá e um lá, que é um espaço idealizado e exótico. Gonçalves Dias sente necessidade de marcar a oposição, por causa da saudade que o indígena sente e transmite-a através de um tom simples e ingénuo. Mas que saudade é esta? Há quem diga que ela é tão intensa que se desliga do sentimento português e é uma autêntica saudade indígena, que tem todas as características do elemento português e algo mais.

            É um poema ingénuo que não toma aspetos filosóficos, mas aspetos simples da vida que nos rodeia e dos quais o poeta sente saudade. É uma idealização do «lá» (o que não se encontra fora do Brasil) em relação ao «cá» (o que há no país natal), daí a presença do saudosismo característico de quem está há algum tempo distante do seu país de origem. De facto, Gonçalves Dias compôs estes versos quando se encontrava em Portugal, estudando Direito na Universidade de Coimbra, numa época em que era frequente que intelectuais abastados brasileiros cruzassem o Atlântico para se formarem em faculdades portuguesas.

            Por outro lado, há que ter em conta que o Brasil tinha declarado a independência recentemente, vinte e um anos antes, o que levou os autores românticos a sentirem a necessidade de trabalharem para a construção de uma identidade nacional, por isso começaram a produzir uma literatura com tons mais nacionalistas.

            O próprio título “canção” marca desde logo um certo ritmo muito suave e adaptado ao sentimento de saudade expresso; é um poema substantivado e com uso frequente da técnica da repetição, que é própria da canção e serve para marcar a intensidade, toda a valorização do «lá» e a consequente oposição com o «cá».

            O encadeamento das estrofes, a repetição do tema reforçam o sentimento de saudade marcado pela simplicidade que é quase a nota principal do poema. Como não há adjetivos, os nomes são muito expressivos e Gonçalves Dias usa-os de forma acumulada. Daqui resulta um poema com uma carga de lirismo enorme, marcado pela simplicidade e sentimento de exílio. O poema pode ser visto como exemplo da poesia específica do Brasil, embora seja feita fora do Brasil. Os elementos basilares são elementos da natureza. “palmeiras”, “sabiá”.

            Este poema é tão conhecido que o hino do Brasil adota algumas das suas estrofes. Foi retomado por outros poetas do Modernismo, como Oswald de Andrade, no poema “Canto do regresso à pátria”. É um poema romântico por vários aspetos:
tema: exílio e saudade;
forma poética: a canção;
o ufanismo com a idealização do Brasil na descrição da sua natureza;
a idealização feita do «lá» no sentido da evasão;
o sentimento de exílio: o poeta sente-se só e talvez seja esta solidão que o faz cantar a saudade e o exílio;
a recorrência de elementos da natureza brasileira;
o nacionalismo.

            Há autores que, nas suas críticas, o consideram um dos poemas mais belos da literatura brasileira pelo tom de saudade, simplicidade e solidão e pelo seu alto grau de equilíbrio, vindo da simplicidade e da melodia.

            Voltando ao título, «exílio» é um nome que remete para uma situação em que determinada pessoa está fora do seu país de origem, onde ela gostaria de estar. O exílio pode ser voluntário, quando o indivíduo decide ir para outro lugar por vontade própria, como foi o caso de Gonçalves Dias, que se deslocou a Portugal para estudar, ou forçado, como, por exemplo, Camões quando foi para a Índia.

            O tema do texto é a exaltação e a nostalgia da terra natal, uma temática muito cara aos românticos, para os quais o sentimento que diferencia o homem dos outros animais é precisamente o amor da pátria. Para evitar que os habitantes das localidades mais inóspitas do globo se precipitassem para as regiões temperadas, provocando uma catástrofe, a providência divina ter-lhes-ia infundido o “instinto da pátria”, que “colou os pés de cada homem ao seu torrão natal, com um imã invencível: os gelos da Islândia, e os areais abrasados da África estão povoados” (Chateaubriand, in O génio do cristianismo). Quanto mais adversas as condições de um país, maior a força desse instinto, que decai naquelas latitudes onde a facilidade da vida e as riquezas destroem os vínculos naturais que prendem o homem à terra natal. Esses elos podem residir em pequenas coisas, como no sorriso dos pais ou no latido de um cão, mas é sobretudo a paisagem que infunde com mais intensidade a afeição pela pátria. No caso da literatura brasileira, o texto que fixa o sentimento de que, comparada à paisagem natal, a natureza de outros países parece inferior é “Canção do Exílio”.

            O sujeito poético, em versos heptassilábicos, começa por destacar dois símbolos brasileiros: o sabiá, que representa a rica fauna brasileira, e as palmeiras, que representam a flora. De seguida, compara o lugar onde se encontra no momento da enunciação, «aqui», com a “minha terra”, introduzida logo no primeiro verso, e repetidamente referida como «lá», atestando, assim, a distância que os separa. Em todas as comparações que estabelece, ressalta a superioridade da terra natal em relação à do exílio. Assim, compara as aves da terra natal com as de «lá», que não gorjeiam como «aqui», o que significa que a riqueza natural existente no Brasil não se encontra em nenhum outro local. Note-se, também, que o «eu» não especifica nenhuma ave, antes se lhes refere de forma geral. A antítese «lá» e «aqui» indicia que o sujeito poético não está em solo brasileiro e o poema constitui uma vaga lembrança das saudades da pátria.

            As comparações prosseguem na quadra seguinte, sempre exaltando a pátria amada e a natureza e colocando-a acima daquela onde se encontra fisicamente. A primeira comparação (“Nosso céu tem mais estrelas”) remete para o ufanismo, isto é, para a ideia do ideal: as estrelas que se veem e brilham no céu brasileiro são exatamente as mesmas que brilham no céu onde o «eu» se encontra – Portugal. A pátria descrita pelo «eu» parece muito melhor do que é na realidade. Por exemplo, não fala nas questões da discriminação, das profundas desigualdades sociais ou da escravatura. A idealização da natureza prossegue nos versos seguintes, ao mencionar as “nossas várzeas”, que têm mais flores, e os “Nossos bosques”, que têm mais vida. Os dois versos finais remetem de novo para a idealização: “Nossa vida / mais amores”. O Brasil é um local paradisíaco. Ou seja, partindo dos elementos mais prosaicos da natureza (as palmeiras, o sabiá, as estrelas, as flores), as comparações estabelecidas pelo sujeito poético acabam por atingir, num crescendo, a própria vida, que, diminuída e amesquinhada no exílio, alcança a plenitude na terra natal. Note-se, por outro lado, que o «eu» não se refere àquilo que o Brasil possui e que falta à terra do exílio, optando por comparar coisas que existem em ambos os espaços (estrelas, flores), para afirmar sempre a superioridade que esses elementos adquirem na terra natal.

            A comparação mostra como o sujeito poético prefere, em vez de enumerar as coisas boas da sua terra, o confronto das mesmas com as comuns da terra onde se encontra exilado, constituindo a localização o critério para determinar a sua preferência. Estrelas, várzeas, flores, bosques, vida, amores – tudo isto existe em Portugal e no Brasil. O que, de facto, provoca a saudade não é, portanto, a sua simples existência, mas a qualidade que a existência desses elementos adquire quando enquadrados na moldura da pátria. O sujeito poético não compara o que a sua terra natal tem com o que a terra do exílio não possui; sugere, isso sim, o maior valor de que as mesmas coisas se revestem quando localizadas no Brasil. Por outro lado, não é a evocação dos elementos (palmeiras, aves, etc.) que desperta a saudade, mas é esta que, como se pré-existisse a qualquer elemento objetivo, oferece ao «eu» poético a afetividade com que «julga» o «aqui» e o «lá». Não há qualquer juízo objetivo ou realidade objetiva, pelo contrário: toda a certeza do sujeito de enunciação é subjetiva, ou seja, é a sua convicção dogmática de que, qualquer que seja o objeto, tudo o que pertença ao país de origem é superior ao estrangeiro.

            A partir da terceira estrofe, contactamos com o estado de alma do sujeito poético relativamente à sua pátria, destacando-se um sentimento: a saudade. Além dela, ele dá-nos conta da sua solidão e do pensamento aturado voltado para a terra natal: “Em cismar, sozinho, à noite…”. Observe-se que o adjetivo se encontra isolado por vírgulas, indiciando a extrema solidão que o magoava, a solidão meditativa e noturna, exatamente o ambiente adequado à reflexão e à manifestação de estados nostálgicos e melancólicos. Os dois versos que retomam os dois versos iniciais do poema e que formam uma espécie de refrão indicia a obsessão do «eu» com a sua terra natal. De facto, depois de descrever o seu estado de alma, em que dá destaque à sua condição meditativa propícia à saudade, o sujeito poético repete esses versos, o estímulo que esteve na base da sua obstinada nostalgia.

            Os quatro versos iniciais da estrofe seguinte enfatizam de novo a saudade e a solidão que sentia. A sua terra tem “primores / Que tais não encontro eu cá”. O nome «primores» acentua a ideia de que a saudade não nasce dos atributos peculiares da terra brasileira, mas da insistência em conferir maior valia a coisas que se encontram em toda a parte, quando estão em solo nativo. Seguem-se os versos que repetem, enfaticamente, a melancolia e a nostalgia, prosseguindo o estado obsessivo: o «eu» não se limita a repetir o tópico da terra natal; vai mais longe, reiterando a solidão que favorece a sua lembrança. Podemos concluir que esta estrofe obedece a uma estrutura tripartida: a “racionalização” sintética da preferência do «eu» pela pátria (dois versos); a reiteração da situação afetiva de onde nasce o sentimento da saudade (dois versos seguintes; o retorno da obsessão fundamental (dois versos iniciais).

            Já na última estrofe dá conta do seu desejo de regressar ao solo pátrio e de poder ver de novo as suas belezas: “Não permita Deus que eu morra, / Sem que eu volte para lá…”, mas, ao mesmo tempo, indicia o pressentimento doloroso de que o exílio se poderá tornar definitivo. O advérbio de lugar «lá» designa, de novo, a terra natal, é o eco sintético das palmeiras, do sabiá e de tudo aquilo, em suma, que tem um valor incomparável no seu país. Esse advérbio, por outro lado, opõe-se antiteticamente a outros, como «aqui», «cá» e «por cá».

            Formalmente, o poema é constituído por cinco estrofes: três quadras e duas sextilhas. Desses vinte e quatro versos, dois foram usados na composição do hino brasileiro: “Nossos bosques têm mais vida, / Nossa vida, (no teu seio)mais amores”. Os versos ímpares são brancos (isto é, não possuem rima: “estrelas” / “vida”), ou apresentam rima toante (“palmeiras” / “gorjeiam”), enquanto os pares apresentam rima consoante (“flores” / “amores”). Assim sendo, o esquema rimático é o seguinte: ABCB nas quadras e ABCBDB nas sextilhas.

            Além da rima, outro processo que contribui para a homofonia do poema é a repetição. Assim, podemos observar que os versos 1 e 2 da primeira estrofe (“Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá”) são retomados integralmente na terceira e na quarte e, com alteração, na quinta, convertendo-se numa espécie de estribilho ou refrão. Além disso, a estrofe número três é integralmente repetida na quarta (vv. 9-12 / vv. 15-18). Verifica-se também a repetição de palavras isoladas, como “gorjeiam”, nos vv 3 e 4; “nosso” e as suas variantes nos vv. 5 a 8; “mais”, nos mesmos versos; “primores”, nos vv. 13 e 21; “sem”, nos vv. 20, 21 e 23; “lá”, nos vv. 4, 10, 16 e 20; “canta”, nos vv. 2, 12, 18 e 24; “eu”, nos vv. 10, 14, 16 e 19; “que”, nos vv. 3, 14, 19,20, 21, 22 e 23). Todas estas repetições proporcionam a grande musicalidade que perpassa a composição poética.

            No que diz respeito ao ritmo, esta caracteriza-se pela repetição de sons agrupados em pequenas unidades regulares. Nas línguas novilatinas, o ritmo poético é determinado pela tonicidade das vogais, isto é, pela sucessão de sílabas fortes e fracas, podendo haver também sílabas de tonicidade intermediária. “Canção do Exílio” foi escrito em versos heptassilábicos ou de redondilha maior. O esquema rítmico dominante é dado pelos acentos na terceira e na sétima sílabas de cada verso, como se pode constatar pela análise da primeira estrofe, na qual esse esquema é quebrado apenas no terceiro verso, acentuado na segunda, quinta e sétima sílabas:

1. Mi | nha | te | rra | tem | pal | mei | ras,                --/---/ [3-7]

2. On | de | can | ta | o | sa | bi | á;                            --/---/ [3-7]

3. As | a| ves | que a | qui | gor | jei | am                   -/--/-- [2, 5, 7]

4.Não | gor | jei | am | co | mo | lá.                            --/---/ [3-7]

            De acordo com o esquema, a quebra do ritmo dá-se quando o sujeito poético introduz o tema da terra estrangeira: é como se as aves do exílio, único elemento estrangeiro referido na estrofe, desafinassem o coro dos elementos nativos. Para confirmar essa impressão, a mesma quebra de ritmo ocorrerá no verso 14, que também faz referência ao «cá» onde o «eu» se encontra no momento da enunciação: “Que | tais | en | con |tro eu | ” [2-5-7-].

            Na última estrofe, quando o sujeito poético exprime o receio de que o exílio se torne permanente e afirma o desejo de retornar à terra natal, estrofe, portanto, em que a tensão atinge o nível mais elevado, o ritmo também sofre alterações:

19. Não| per | mi | ta | Deus | | que eu | mo | rra,    --/---/ [3-7]

20. Sem | que eu | vol | te | pa | ra | ;                      --/---/ [3-7]

21. Sem | que | des | fru | te os | pri | mo | res          ---/--/ [4-7]

22. Que | não | en | com | tro | por | ;                    ---/--/ [4-7]

23. Sem | qu’in | da a | vis | te as | pal | mei | ras,     ---/--/ [4-7]

24. On | de | can | ta o | sa | bi | á                              --/---/ [3-7]

            Deste modo, a quebra do ritmo é uma escolha doo poeta, que, consciente do seu ofício, o utiliza e às suas variações para reforçar o sentido do poema. O esquema rítmico dominante é 3-7. As quebras ocorrem nos versos 3 e 14 (acentuados em 2-5-7) e nos versos 21, 22 e 23 (acentuados em 4-7).

            Em suma, o poema qualifica, em tons superlativos, a terra natal, porém a qualidade atribuída é em si mesma abstrata. O sujeito poético não descreve qualquer aspeto particular da sua terra, optando por partir do sabiá, a ave-símbolo do Maranhão, terra natal de Gonçalves Dias, para a sobrevalorizar. O Brasil, nesta composição, não é isto ou aquilo; é sempre mais do que o outro espaço.

            “Canção do Exílio” é um poema romântico que veicula uma saudade melancólica e a aspiração a um país edénico, a uma terra ideal, a uma pátria sonhada e idealizada, constituindo o retorno à terra natal uma variante da nostalgia romântica. Por outro lado, a composição apresenta um estilo onde predominam os nomes e os adjetivos sobre os verbos, apontando para uma conceção não dinâmica da realidade, como se pode constatar pelo facto de, entre os dez verbos nela presentes (“ter”, “cantar”, “gorjear”, “cismar”, “encontrar”, “permitir”, “morrer”, “voltar”, “desfrutar”, “avistar”),apenas um – “voltar” – indicar movimento.

            A saudade do torrão pátrio é um sentimento profundamente brasileiro, na forma de um desprezo cego pela realidade objetiva do país. Boa ou má, essa realidade jamais conseguirá apagar a saudade e o amor obstinado pelo seu país.

sábado, 17 de dezembro de 2022

Análise do poema "Leito de folhas verdes"


             O título do poema remete, desde logo, para um espaço – o leito –, lugar de regeneração pelo sono e pelo amor, transformado pelo sujeito poético em espaço de espera, de sonho, e de refúgio do ser, com o qual o sujeito poético -feminino – se identifica enquanto local do despertar da vida e da esperança, indiciados pela presença da cor verde. De facto, o leito é feito de folhas verdes, cor que evoca as imagens do novo, da esperança, da natureza e do feminino.

            O tema do poema é a espera, ou melhor o poema é um lamento do que passa durante p período de espera, com todos os sentimentos subjacentes: amor, saudade, fidelidade.

            Por outro lado, o texto denota muitas semelhanças com as cantigas de amigo: o sujeito é feminino (“Eu sou aquela…”); o conteúdo aproxima-o das albas ou alvoradas, pela referência ao amanhecer; o amado / amigo está ausente; a mulher apaixonada exprime o seu lamento.

            Quanto à construção do poema, podemos encontrar dois pólos. Por um lado, somos confrontados com o sentimento da índia e com a construção da sua psicologia. Desde logo, há uma alteração do ambiente que a rodeia: começa-se com a noite, que vai progressivamente dando origem ao dia, o que implica uma descrição diferente da natureza. Por outro lado, com o surgimento da manhã, as flores abrem e a mulher começa a desanimar com a espera. A ligação entre a natureza e a mulher tem um grande efeito lírico e harmonioso.

            A primeira estrofe abre com uma interrogação retórica que mostra a tensão e a ansiedade amorosa do «eu» feminino pela ausência e, sobretudo, pela demora da chegada do amado (Jatir), que ela questiona, sentimentos traduzidos pelas expressões “a tanto custo” e “voz do meu amor”. A viração e o vento simbolizam a mudança, enquanto as folhas representam o movimento de iniciação ou ritual. Além disso, a cena da espera tem lugar à noite: a “viração da noite”, que é doce porque rumoreja (personificação) e indicia a bisca de intimidade, está ligada ao bosque, que se opõe ao espaço elevado (a colina ou a montanha), característico do dia. Nesta perspetiva, dá-se a eufemização da não chegada do objeto amado, através da personificação da voz do amor e do vento, na noite e no bosque. Os elementos da natureza, em suma, corroboram o estado de espírito da mulher, a sua angústia, a sua ansiedade, etc. Essa harmoniosa com a natureza, com aquele cenário harmonioso, parece transformar Jatir, o amado, na figura do homem/ideal que ela ama ou que a desperta para o amor. Deste modo, é possível questionar se ela ama mais o sentimento do amor e a sua sensorialidade ou o homem.

            Na segunda e na terceira estrofes, é descrito o leito de amor, feito sob a copa de uma “mangueira altiva”, árvore que simboliza o elemento fecundador, desde logo porque o sujeito poético se encontra debaixo dela e em contacto com a terra, iluminada pela lua, símbolo da reprodução e da fecundação. E tudo isto sucede à noite, o tempo em que a semente lançada no solo germina, para nascer de dia. O facto de a mulher estar debaixo da mangueira e sobre um leito coberto por um tapete de folhas e iluminada por flores associa-se à ideia da maternidade. Estas imagens remetem para o imaginário do amor e para a fecundação, associadas à expectativa do amor. Nota-se ainda que a mulher está ansiosa e tensa, porém esperançosa, visto que, quando se refere ao leitor, o apelidar de “nosso”, apontando para a ideia de partilha já assegurada.

            Deste modo, o nome «leito», determinado pelo determinante possessivo «nosso», sugere claramente que se trata do leito nupcial, que, ao ser coberto por ela, de forma zelosa, com um “mimoso tapiz de folhas brandas”, no momento em que o “frouxo luar brinca entre flores”, evidencia a comunhão do sujeito poético com a natureza. Tudo isto decorre num cenário harmonioso, mesmo que noturno, como se comprova através do uso dos adjetivos “mimoso” e “brandas”, bem como do verbo “brincar”. Estas imagens, por outro lado, sugerem um ambiente onde reina a paz e o bem-estar. O papel da natureza é o de amiga e bem-feitora, tal como sucede em várias cantigas de amigo.

            A imagem do leito e a sua ligação à terra transformam as folhas (símbolo do progresso e da transformação) em algo também ligado à noite, visto que a sua seiva, potencialmente transformadora, está ao serviço do descanso ou da resignação. Por seu turno, a mangueira, enquanto árvore, é o símbolo da vida em perpétua evolução e em ascensão para o céu, evocando a simbologia da verticalidade. Além disso, está associada à construção de um cenário íntimo, pelo que pode pensar-se também como símbolo fálico. Por último, há que considerar que esse cenário natural traduz toda a doçura resultante do ansiado encontro amoroso: o mimoso tapiz de folhas brandas; o frouxo luar brinca entre as flores; o bogari solta o mais doce aroma (estrofe seguinte).

            Na terceira estrofe, a imagem da flor que se abriu e do doce aroma que se solta do bogari remetem para o desabrochar da mulher, que reconhece estar pronta para o amor, tendo consciência de que deve ficar à espera, no silêncio da noite: a flor abriu-se, o aroma expande-se, o bosque exala. Esse desabrochar e essa consciência são recentes (“há pouco”) e são a consciência do conhecimento do amor.

            Na quarta estrofe, o amor é apresentado como “mágico”, mas natural(“respira-se”), luminoso, mas longínquo (“lua e estrelas no céu”), místico (“preces”), contudo vivido como dom supremo (“melhor que a vida”). O último verso da quadra confirma que se trata de um amor perfeito: “um quebranto de amor, melhor que a vida”.

            Na quinta estrofe, a mulher é associada à flor – símbolo da beleza e do princípio passivo do amor –, que depende do elemento ativo, o sol (o amado), fonte de luz, calor e vida. A figura do sol simboliza a potência masculina, porém ela ainda não é conhecida, apenas vislumbrada, como “doce raio de sol” que dá vida. A figura feminina é uma espécie de mulher virtual, dado que lhe falta o raio de sol – o princípio masculino – para a efetivar como mulher. Assim sendo, o sujeito poético tem consciência de que o ser feminino apenas se revela e se completa com o amor e que este lhe proporciona vida. A imagem dos versos 3 e 4não deixa lugar a dúvidas: a jovem é a flor que depende dos raios de sol (a presença do amado) para se realizar e viver: “Eu sou aquela flor que espero ainda / Doce raio do sol que me dê vida.”

            As duas estrofes seguintes constroem a ideia do amor único e da dedicação exclusiva ao amado a partir de uma série de contrastes: espacial (vales – feminino vs. montes – masculino, lago – circundado do corpo vs. terra – circundante), pontuando o imaginário do corpo; temporal (dia -masculino vs. noite – feminino), acentuando o género; abstração (pensamento) vs. concretude (posse: “és meu, sou tua”), indicando que a interação entre a figura masculina e a figura feminina é caracterizada pela exclusividade; pragmática (visão / conhecimento – olhos), contacto (lábios), atividade (mãos na cinta). Por outro lado, o amor vence todos os obstáculos (“Sejam vales ou montes, lago ou terra, / Onde quer que tu vás, ou dia ou noite”); a figura feminina é idealizada – ela dedica total fidelidade ao seu amado: “Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!”, etc.

            O último verso da antepenúltima estrofe (“A arazoia na cinta me apertaram”) configura a materialização de um compromisso, a realização de um voto. Os índios usavam ao redor da cintura uma saia de plumas de ema, em certas cerimónias, e as viúvas, na Idade Média, costumavam depositar um cinto sobre a tumba dos maridos quando renunciavam à sua sucessão, o que aponta para a estreita relação entre cinto, castidade e fecundidade. No mundo greco-romano, quando uma jovem desapertava o seu cinto, entendia-se que setinha entregado a um homem. Assim, a arazoia na cinta associa-se à castidade, passivamente imposta e aceite, neste caso, pela cultura indígena. Nesta estrofe, há a tomada de consciência por parte da mulher de que está pronta para a vida amorosa e para a exclusividade do amor, visto que a arazoia ainda lá está, ou seja, estamos perante a imagem da mulher que ainda é virgem e a espera por que tal aconteça.

            A última estrofe dá conta da desilusão do sujeito poético: com a chegada da manhã (“lá rompe o sol”), a esperança e a expectativa dão lugar à deceção e à tristeza, pois Jatir não responde ao seu chamamento. Deste modo, pede à brisa da manhã que leve consigo as folhas do leito inútil: “nem tardo acordes / À voz do meu amor, que em vão te chama!”; “do leito inútil / A brisa da manhã sacuda as folhas!”. Isto não significa, porém, o fim da esperança, pois Tupã vai sacudir as folhas, desfazer o leito, mas elas continuarão a existir.

            Assim, a mulher amada somente a imagem, a memória, visto que Jatir não acode ao seu chamamento, está longe. A interpelação de Tupã, um deus masculino da mitologia tupi-guarani que representa o trovão, vai no sentido de ele observar o sol que surge no horizonte. O leito de folhas de árvore representa a evolução da condição de menina para a de mulher, condição inútil, mas esperançosa porque o leito é visitado apenas pela brisa, imagem do anseio e da esperança femininas.

            O pedido da jovem a Tupã para que faça com que a brisa (o desejo) sacuda as folhas do leito traduz o seu sonho e desejo de amar. Tupã sabe onde nasce o sol, que este é um elemento masculino e que a sua natureza é procurar a mulher para se completar. Esse desejo de amar e a comunhão com o amado são traduzidos, no poema, através da progressão temática e de contrastes: chamada vs. não resposta; esperança vs. impaciência/ansiedade; espera vs. ausência do esperado; vida vs. não-vida. Estas polaridades revelam o universo de valores do sujeito poético: a mulher e o homem necessitam um do outro para se tornarem seres completos.

            Em suma, este poema configura também uma declaração de amor marcada pela ausência e pela angústia da espera por parte da mulher, cujo estado de espírito vai evoluindo ao longo da composição. Inicialmente, encontramo-la de noite, questionando a ausência e a demora do amado, mas esperançosa no regresso de Jatir, cujos passos são movidos pela voz do puro sentimento da amada que ficou em sua casa (a floresta, debaixo de uma mangueira). O decorrer da noite traz o vento e as folhas fazem barulho nos altos bosques, enquanto a jovem permanece sob a mangueira, local onde foi construído o leito, que ela cobriu com suaves folhas e que brilha através do luar que rompe entre as flores. A noite avança pela floresta e a flora, na sua diversidade, solta os seus aromas, entre as quais estão os das flores do tamarindo e do bogari.

            A lua e as estrelas brilham, os perfumes das flores noturnas espalham-se levados pela brisa, construindo-se, assim, uma imagem romântica, um ambiente mágico em que o sujeito poético é transportado para um mundo onírico, no qual ela pode viver o seu grande amor, pois aí não existe a triste realidade da vida, uma realidade de abandono e de solidão.

            O alvorecer rompe e com o nascimento do sol as flores começam a desabrochar, enquanto a mulher, qual flor vegetando sem o astro-rei, espera que a energia deste lhe dê ânimo para prosseguir a espera. O sujeito poético imagina o seu amado caminhando, de dia ou de noite, atravessando vales, montes, lagos, terras, a quem ela devota todo o seu carinho e desejo, pois ele é o seu único amor: os seus olhos nunca viram outros olhos, nem os seus lábios beijaram outros lábios, nem outras mãos apertaram a sua saia na cintura.

            No verso 29, a narração retoma a terceira estrofe e compara o aroma dessa flor, no momento presente, com o aroma da noite anterior. Aqui começa a mostrar-se desiludida, pois, tal como o perfume das flores, a sua esperança começa a esvair-se com a chegada do dia.

            A nona estrofe retoma a primeira para mostrar a consciencialização do sujeito poético em relação ao não regresso do amado. Assim sendo, o leito, tão bem cuidado e construído com amor, torna-se inútil sem a presença do homem, por isso pede à brisa que o desfaça.

            Formalmente, o poema é constituído por nove quadras, em versos decassilábicos brancos, com ritmo regular, com exceção da quarta estrofe e da rima toante entre “brisa” e “vida”, que remetem para a ideia de mudança, veiculada pela brisa. Estilisticamente, destacam-se as aliterações em torno do som /s/, que sugerem o som da brisa e o balanço das árvores, e em /n/,que sugere lentidão, que se coaduna com a ideia da espera lenta da jovem relativamente ao seu amado, que não chega. Tem igualmente importância a reiteração de determinados vocábulos, como “amor” (cinco vezes), “folha” (três vezes), “flor” (cinco), “leito” (duas), “lua” (duas) e “sol” (três). Estas repetições apontam para a temática que domina o poema (o amor), para o ambiente natural em que se localiza (sol, lua) e para um espaço específico (folhas, flor, árvores), formando a imagem de uma floresta. Temos também a repetição de certas palavras no mesmo verso: “prece” (v. 11), “olhos” (v. 25), “lábios” (v. 26), que reforçam a imagem da pureza (prece) que surge a par da sensualidade (olhos e lábios), uma imagem estereotipada da figura feminina, embora neste caso se refira a um ser feminino indígena, interpretada e idealizada pelo olhar e pela cultura europeus. Além disso, encontramos a repetição parcial do verso 9 (“Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco”), no 29 (“Do tamarindo a flor jaz entreaberta”), a qual marca a progressão do tempo desde o anoitecer até ao amanhecer, tendo em conta que a flor referida abre à noite e fecha com a chegada do sol. Este desabrochar e fechar da flor coaduna-se com os sentimentos e as esperanças do sujeito poético, que está esperançado à noite, mas, com a chegada do astro-rei, no dia seguinte, vê essa esperança apagar-se, ir-se desfazendo lentamente. Por seu turno, o verso 2 (“À voz de meu amor moves teus passos?”) repete-se parcialmente no 34 (“À voz do meu amor, que em vão te chama!”), marcando-se assim dois tempos: no primeiro, correspondente à primeira estrofe, o sujeito poético ainda acredita que a sua voz pode guiar os passos do seu amado durante a caminhada de regresso, atravessando vales e montanhas; no caso do segundo, a presença da locução adverbial “em vão” aponta para a inutilidade da espera e a tomada de consciência de que Jatir poderá não voltar de todo. O verso 10 (“Já solta o bogari mais doce aroma!”) indicia que tanto a flor do bogari como a do tamarindo exalam um melhor aroma durante a noite do que de dia, ao ser repetido no verso 30 (“Lá solta o bogari mais doce aroma”). O sujeito poético compara a vitalidade do seu amor, reforçado pela força abstrata da prece, à intensidade do aroma, que é mais forte à noite. Contudo, ao amanhecer, está sem ânimo, sem vitalidade, com pouca esperança de que o seu amado regresse. Ainda no que diz respeito a recursos estilísticos, o poema contém diversas metáforas. Nos versos 9 e 10 (“Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco, / Já solta o bogari mais doce aroma!”), marca-se a passagem da noite para o amanhecer através do desabrochar das flores noturnas que exalam um doce perfume. A metáfora/imagem presente entre os versos 29 a 32 permite associar os sentimentos da mulher à natureza. Assim, se a intensidade do aroma das flores era superior durante a noite, as esperanças da jovem, que durante a noite fortaleciam o seu coração, estão-se desfazendo à medida que o dia se aproxima.

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