Português: Os alvos da sátira de Gil Vicente

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Os alvos da sátira de Gil Vicente


            São vários os alvos atingidos pelas peças de Gil Vicente. Em conjunto, representam a sociedade contemporânea do dramaturgo e, em parte, de todas as épocas. Criador de personagens-tipo, o teatro vicentino revela aos nossos olhos uma galeria de tipos que podemos esquematizar no seguinte quadro:

Conjuntos
Representantes
Vícios satirizados
Autos
Os poderosos
O fidalgo
presunção, exploração, imoralidade
Auto da Barca do Inferno
O corregedor
suborno, injustiça, confissão pecaminosa
Auto da Barca do Inferno
O procurador
suborno, ausência de confissão, cumplicidade com o corregedor
Auto da Barca do Inferno
O onzeneiro
exploração a alto juro, ambição, materialismo
Auto da Barca do Inferno
"Roma"

A "Corte"
poder terreno, venda de indulgências, ausência de virtudes
luxo, exploração, ociosidade
Auto da Feira

Vários autos
Os materialistas
O sapateiro
roubo, prática religiosa negativa
Auto da Barca do Inferno
O judeu
prática do judaísmo, suborno, desprezo das normas cristãs, profanação dos lugares sagrados
Auto da Barca do Inferno
O enforcado
roubo, prática do assassínio
Auto da Barca do Inferno
O taful
prática do jogo ilícito, blasfémia
Auto da Barca do Purgatório
Os corruptos
O frade
devassidão, desvio dos votos professados, ociosidade, vida à moda da corte (luxo)
Auto da Barca do Inferno
A alcoviteira
prostituição, hipocrisia, feitiçaria
Auto da Barca do Inferno
O corregedor e o procurador
defeitos já indicados
Auto da Barca do Inferno
Os clérigos
sensualidade, luxúria
Auto da Barca do Inferno e Farsa de Inês Pereira
O marido emigrante
roubo, enriquecimento fácil, abandono da família
Auto da Índia
As raparigas casadoiras: Isabel e Inês Pereira
ociosidade, pretensão de se afidalgar pelo casamento
"Quem tem Farelos?"; Farsa de Inês Pereira
O escudeiro (Brás da Mata e Aires Rosado)
pelintrice, ociosidade, hipocrisia, fanfarronice, fome, oportunismo
Farsa de Inês Pereira; "Quem Tem Farelos?"
Os imorais
A alcoviteira
prostituição
Auto da Barca do Inferno
A Ama
adultério, hipocrisia, cinismo
Auto da Índia
Inês Pereira
adultério
Farsa de Inês Pereira
As personagens rústicas
Os lavradores
pequenos defeitos, absolvidos devido à exploração de que eram vítimas
Auto da Barca do Purgatório
Os pastores
pequenos defeitos, também eles absolvidos
Auto da Feira
Os inocentes
O Parvo
incapacidade de pecar, elogio da sua simplicidade
Auto da Barca do Inferno
O menino
sem defeitos, inocentes
Auto da Barca do Purgatório
Os "cruzados"
Os quatro cavaleiros
defeitos perdoados, purificados pela morte em defesa da fé
Auto da Barca do Inferno

            Diferentemente do que sucede com o teatro clássico, o teatro vicentino não tem como propósito apresentar conflitos psicológicos. Não é um teatro de caracteres e de contradições entre (ou dentro de) eles, mas um teatro de sátira social ou um teatro de ideias. No teatro vicentino não perpassam caracteres individualizados, mas tipos sociais agindo segundo a lógica da sua condição, fixada de uma vez para sempre; e outros entes personificados. Especificando, poderíamos distinguir:

a) tipos humanos, como o Pastor, herdade do Encina e adaptado à realidade portuguesa, o Camponês, o Escudeiro, a Moça de vila, a Alcoviteira, figura já celebrizada em Espanha pela Celestina, o Frade folião, à volta do qual havia toda uma literatura medieval;

b) personificações alegóricas, como Roma, representando a Santa Sé, a Fama Portuguesa, as quatro Estações;

c) personagens bíblicas e míticas, como os Profetas e Sibilas, os deuses greco-romanos;

d) figuras teológicas, como o Diabo, ou Diabos, a hierarquia dos Anjos, e a Alma;

e) o Parvo, um caso à parte, que é um tipo tradicional europeu, às vezes vazado nos moldes de certos pastores bobos, do vilão Janafonso e do Juiz da Beira, etc., e que serve para exprimir alguns dos mais reservados pensamentos vicentinos, divertir os olhos e os ouvidos, expor uma doutrina cristão tal como a concebia Gil Vicente, participar no debate de ideias em que ele se empenha, ou, ainda, realizar no palco aquilo a que poderíamos chamar uma poesia cenografada.


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