Português: Análise de "Agora as palavras", de Eugénio de Andrade

sábado, 16 de maio de 2020

Análise de "Agora as palavras", de Eugénio de Andrade

Ao longo do poema, opõe-se dois tempos: o presente (“agora” – v. 1) e o passado.

Com a passagem do tempo, a relação do sujeito poético com as palavras alterou-se e, no presente, é caracterizada pelo seguinte:

» passou a sentir mais dificuldade em dominar as palavras (“não fazem / caso do que lhes digo” – vv. 3-4), que o ignoram;

» as palavras começaram a resmungar (“A propósito / de nada resmungam” – vv. 2-3);

» as palavras não lhe obedecem (vv. 1-2) ou obedecem-lhe muito menos;

» as palavras desrespeitam-no, desrespeitam a sua idade (“não respeitam a minha idade.” – v. 5);

» as palavras são “ariscas” e escapam-se-lhe “por entre / as mãos” (vv. 16-17);

» as palavras mostram-lhe os dentes, como forma de protesto (verso 17).

A referência à idade do «eu» lírico no verso 5, associada aos dois versos finais, significa que, com a passagem do tempo, aquele reconhece que a sua relação com as palavras se alterou e parece não ter a certeza acerca de quem é responsável por essa mudança. De facto, embora ao longo do texto lhas pareça atribuir, a interrogação desses dois últimos versos parece indiciar que não tem a certeza disso.

Ao longo do poema, predomina a personificação das palavras, a quem são associados atributos humanos e que parecem ter vida própria. Sobretudo no presente, mostram-se independentes, sentem, reagem e lutam com o sujeito poético.

Por outro lado, é-lhes associado um caráter metafórico, ao serem associadas a animais: elas são desobedientes, arreganham os dentes (como um cão, por exemplo), eram controladas pela rédea (como um cavalo) do sujeito poético. Todos estes recursos, incluindo a personificação, contribuem para dar vida às palavras e sugerir que o ofício de ser poeta é bastante exigente.

Os versos 6 a 9 permitem-nos compreender perfecionismo e o processo de criação artística sustentado pelo «eu»: é um processo meticuloso e rigoroso – ele trabalha as palavras com rigor (“mão rigorosa” – v. 8), caracterizado também por um controlo absoluto delas (daí o uso do nome «rédeas») e pela recusa dos artifícios (“a indiferença pelo fogo de artifício.”).

Pelo contrário, no passado, as palavras gostavam do sujeito lírico (“e elas durante muitos anos / também gostaram de mim” – vv. 11-12), eram obedientes, causavam-lhe alegria e entre ambos havia uma relação harmoniosa (“dançavam / à minha roda quando as encontrava.” – vv. 12-13). Esta relação passada entre o «eu» e as palavras é explicitada a partir dos dois pontos.

A metáfora do verso 14 (“Com elas fazia o meu lume”) estabelece uma associação entre palavra, poesia e vida. O lume, o fogo, equivale a vida.

A interrogação final, como já foi referido, aponta para uma explicação alternativa para a mudança operada nas palavras: talvez tenho sido, afinal, o sujeito poético quem mudou, visto que passou a procurar as palavras mais difíceis (“Ou será que / já só procuro as mais encabritadas?” – vv. 18-19).

Ao longo do texto, o sujeito poético enuncia as possíveis causas para esta alteração de comportamento das palavras. Em síntese:

1.ª) o envelhecimento do sujeito poético (“não respeitam a minha idade” – v. 5);

2.ª) o sujeito poético não sabe escolher as palavras mais apropriadas (vv. 18-19);

3.ª) as palavras cansaram-se do controlo excessivo por parte do sujeito poético (“Provavelmente fartaram-se da rédea” – v. 6).

 

Intertextualidade

Se relacionarmos este poema com outros de Eugénio de Andrade, como, por exemplo, “As palavras”, verificamos que, neste último, as palavras se deixavam dominar e controlar pelo poeta, ao contrário do presente, em que se mostram rebeldes, esquivas e indomáveis.

 

Processo de criação artística

O sujeito poético relaciona-se de modo quase conflituoso com a sua poesia, em decorrência da tensão que existe entre a sua vontade de trabalhar as palavras e a incapacidade de o fazer, como confessa nos versos 16 e 17.

Por outro lado, declara todo o rigor, perfecionismo e recusa do “fogo de artifício” com que encara o processo de criação poética.

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