Português: 3. A origem da tragédia

domingo, 29 de dezembro de 2024

3. A origem da tragédia

    A tragédia grega terá nascido do culto de Dioniso – o deus do vinho, da alegria, da exuberância, das potências geradoras e “da excitação de toda a espécie e da união mística” (Heinz-Mohr 1994: 137). De facto, a tragédia grega era uma das principais festividades religiosas anuais que se realizavam em Atenas, as Grandes Dionísias Urbanas.
    Atenas, como as restantes cidades gregas, tinha o seu calendário anual pautado por diversas festividades. Com efeito, cada cidade grega tinha a sua própria bandeja de festas e o seu próprio calendário. Mais do que isso, dentro da mesma cidade, sucedia por vezes haver festas exclusivas de determinada tribo. Em Atenas, supõe-se que 60 dias anuais eram dedicados exclusivamente a festividades religiosas. A importância destas manifestações é atestada também pelo facto de os nomes dos meses estarem ligados às festividades mais importantes realizadas naquele período de tempo.
    A festividade na qual eram apresentadas as tragédias era a que se destinava a homenagear Dioniso. Na Ática, os principais festivais em honra do deus eram as seguintes:

1) Leneias: as festas dos tonéis de vinho, aproximadamente em janeiro, quando os barris eram abertos e se provava o vinho novo.

2) Antestérias: o mais antigo festival dionisíaco, por isso também chamado “Velhas Dionisíacas”, aproximadamente em fevereiro, quando os barris eram abertos e se provava o vinho.

3) Oscofórias: o festival da colheita das uvas, realizado sensivelmente em outubro, quando havia uma corrida de rapazes levando ramos de parreira-

    Para o caso – a origem da tragédia grega –, o mais importante festival em honra de Dioniso eram as Dionísias (que se dividiam em urbanos e rurais), especialmente a primeira, que ocorria em dois momentos distintos: uma tinha lugar logo na primavera, após as Antestérias, em finais de março, quando o vinho do último ano estava maduro, pronta para beber, fazendo-se, portanto, a abertura dos barris (o sentimento geral era de que a terra estava a acordar para uma nova vida); a outra ocorria no inverno e marcava o fim do trabalho anual e que ocorria no início de janeiro em Atenas.
    Quanto às Dionísias Rurais, tinham uma dimensão inferior e lugar em dezembro. Nelas, um kômos, isto é, um grupo de foliões, carregando um falo de grandes proporções, cantava canções dirigidas a Dioniso, as chamadas «canções fálicas». Nos intervalos, o líder entretinha os espectadores com vulgaridades, na forma de monólogo ou de diálogo. Diversos autores creem que esse kômos foi uma das origens do coro, um dos traços mais importantes do teatro grego, tanto na tragédia como na comédia.
    As Dionísias Urbanas ou Grandes Dionísias tinham a seguinte forma. Iniciavam-se por uma procissão que escoltava uma antiga imagem de Dioniso ao longo da estrada que levava à cidade de Eleutéria e retomava depois ao altar do deus, em Atenas, onde um bode era sacrificado no meio de danças e canções. Uma virgem liderava a procissão, enfeitada com ornamentos dourados, transportando uma cesta cheia de bolos e flores. Os demais participantes levavam oferendas rurais (uvas, figos, vinho, etc.) e o animal que seria sacrificado. Além disso, um falo era transportado no alto.
    Neste cortejo ritual, os participantes ativos que se dirigem para um objetivo, durante o percurso, interagem com o outro grupo que se forma simultaneamente ao longo do caminho, ou seja, os espectadores. A finalidade da pompé (equivalente ao latim pompa) é um santuário no qual terá lugar o sacrifício, mas o próprio caminho também tem significado, é «sagrado». Noutras procissões religiosas, são apresentadas já dramatizações de caráter mimético da partida, o abandono do santuário, prefigurando no ritual a futura forma dramática.
    Os participantes ativos desempenham papéis bem definidos, como a portadora do cesto, ou os portadores do falo, no caso das Grandes Dionísias, a portadora da água, o portador do fogo, das taças, etc. O estatuto particular dos participantes é indicado não só pelo vestuário festivo, mas também pelas coroas, faixas de lã e pelos ramos que levam nas mãos. O uso destes sinais exteriores dos papéis durante o ritual será mais tarde apropriado pelo teatro.
    Deste modo, as procissões, os hinos e as danças de caráter festivo-religioso prefiguram, de certo modo, as formas que o teatro grego assumirá mais tarde. O divertido kômos e a solene pompé constituem a contrapartida puramente ritual dos coros cómicos e trágicos do teatro grego.
    Outra semelhança entre o ritual de Dioniso e a tragédia tem a ver com a forma como o festival dionisíaco acontecia na Ática, que era bem diferente das suas manifestações orientais, nas quais existia violência selvagem e extática, além de serem realizadas no inverno e à noite. Assim, observa-se neste ritual a passagem de uma simplicidade rude e às vezes brutal à graça, à dignidade e refinamento que serão também características da tragédia ática.

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