● Assunto: o Romeiro entra em cena, Maria morre e os pais
tomam o hábito.
● Acontecimentos
da cena
▪ O Romeiro, numa
derradeira tentativa de reparar a situação que criou e por que se sente
responsável, manda Telmo intervir e dizer aos presentes que é um impostor.
▪ Maria ouve a sua
voz e reconhece-o imediatamente. Sendo tuberculosa, tem uma acuidade auditiva
mais desenvolvida. Cumpre-se, assim, a última etapa da anagnórise: o reconhecimento da identidade do Romeiro por
Maria e pelos circunstantes.
▪ Para Maria, o
Romeiro/D. João é o “homem do outro mundo”, morto e ressuscitado para trazer a
desgraça e confirmar a sua ilegitimidade. Ela não aguenta a “vergonha” de ser
filha ilegítima e morre. De facto, é possível considerar que o trauma
psicológico que sofreu tenha agravado o seu estado de saúde debilitado (pela
tuberculose), contribuindo para a sua morte.
▪ A tomada de
hábito configura um duplo suicídio: Manuel de Sousa e D. Madalena abandonam
voluntariamente o mundo profano (morte para o mundo), para se entregarem à
religião.
▪ D. Madalena e
Manuel de Sousa tudo deixam para trás: bens materiais, lugar de relevo na
sociedade, amigos, parentes e até o nome. Como diz o Prior, despiram “o homem
velho”, para se sepultarem vivos, embrulhados naquelas “mortalhas”, um na
solidão do convento de S. Domingos de Benfica e a outra no convento do
Sacramento.
▪ Na cena 2 do ato
II, Telmo deixa escapar o seguinte presságio: “… tenho cá uma coisa que me diz que,
antes de muito, se há de ver quem é que quer mais à nossa menina nesta casa.”.
O terceiro ato vem confirmar esse presságio, visto que acaba por ser a única
personagem que se mostra disposta a abdicar de um princípio que o norteava – o de
nunca mentir – em nome do seu amor por Maria. É por este motivo que tenta levar
a cabo a missão de que foi encarregado pelo Romeiro, passando a mensagem de que
é um impostor.
▪A derradeira fala
da peça, saída da boca do Prior (“Meus irmãos, Deus aflige neste mundo aqueles
que ama. A coroa de glória não se dá senão no céu.”), aponta para a possibilidade
de uma felicidade futura (a “coroa de glória… no céu”), embora à custa de
sofrimento redentor, neste mundo, pela contrição, pela penitência, pela ascese.
Estas palavras de conforto apontam para a esperança, só possível na
mundividência cristã.
Por outro lado,
desta fala pode concluir-se que o desenlace da tragédia se projeta em dois
planos. No plano humano, as personagens não têm saída, não podem voltar
atrás, tal como na tragédia grega, que reflete o mundo clássico-pagão, mundo
sem esperança, nem redenção, em que o Destino, entidade cega e cruel, parece
ter ciúmes da grandeza das personagens e só se satisfaz com a sua destruição e
o aniquilamento das vítimas, sejam elas culpadas ou não. No plano da mundividência cristã, as personagens, embora destruídas como tal,
infelizes no plano humano, desgraçadas no relacionamento familiar ou social,
podem mesmo assim suportar todas as dores, todos os sofrimentos, porque lhes
será sempre possível, mesmo neste mundo, atingir a paz de consciência, e, com
os esforços próprios de uma vida de penitência, aspirar, com a ajuda da graça
de Deus, a uma suprema felicidade futura.
Por outro lado, no
mundo antigo clássico, a morte era vista como o aniquilamento total, o fim de
tudo: nada mais se poderia esperar para além dela. A lei da morte era o
esquecimento, do qual só se salvavam, como escreveu Camões, “… aqueles que por
obras valerosas / se vão da lei da morte libertando”. As obras valorosas eram
os feitos guerreiros dos heróis, os feitos intelectuais dos poetas, os feitos
atléticos dos jogos. Só esses eleitos tinham direito à imortalidade, sublinhada
pela ereção de uma estátua (ou retrato), duplo da personagem. A imortalidade,
ou glória, era, portanto, a memória do herói, do poeta, do atleta nas gerações
vindouras.
Na mundividência
cristã, a alma humana é imortal; o homem morre, mas a alma não é destruída,
antes tem um destino feliz ou infeliz, para além da morte. Os santos são os
heróis da Fé, só eles atingem a bem-aventurança, simbolizada na estátua, ou
imagem, com honras e culto nos altares. É neste sentido que apontam as palavras
do Prior.
▪ É, pelo exposto
no ponto anterior, que para Sóror Madalena das Chagas, no Convento do
Sacramento, se abre uma possibilidade de reabilitação e redenção, pela
contrição, pela oração, pela penitência, que a poderá levar, com a ajuda da
graça de Deus, à felicidade e à bem-aventurança no Céu.
É, por isso, que,
para Frei Luís de Sousa, no Convento de Benfica, as perspetivas são mais largas
ainda, se juntar à penitência e à oração, a ascese que o levará à glória do
escritor (o mito
romântico do escritor/poeta) e a uma quase
santificação, promissora da suprema glória no Céu.
Por fim, Maria, a
vítima inocente das paixões dos pais (sobretudo da mãe), a morte que a destrói leva-a
imediatamente à glória do Céu (“este anjo que Deus levou para si” – III, 12),
nimbada pelas virtudes que a exornam, pelos sofrimentos e provações a que foi
sujeita, pela inocência e pela beleza. Do ponto de vista transcendente, é a
personagem mais feliz de todas.
● Funções
das didascálias
As indicações cénicas salientam o estado de espírito
de Maria, nomeadamente a sua dor, o seu desespero e a sua revolta. Elas indicam
os movimentos e os gestos feitos por Maria para se juntar aos pais, procurando
neles um refúgio: ela agarra-os, abraça-nos, procura proteção no hábito do pai
e no rosto da mãe, dirige-se aos presentes, aponta para o Romeiro, em sinal de
reconhecimento, acabando por cair no chão, morta.
● Características
românticas:
▪ a exacerbação dos sentimentos;
▪ o domínio da emoção e da sensibilidade;
▪ a morte como solução para os problemas;
▪ a intenção pedagógica: a problemática dos filhos
ilegítimos.
● Características
trágicas
▪ Catástrofe:
- O Romeiro sofre
uma morte psicológica: o anonimato. Ele é atingido pela dor que causou nos
outros, pela morte de Maria, uma inocente, e por não ter remediado o mal que
involuntariamente causou. Consigo transporta as memórias da breve felicidade
passada e dos infortúnios com que o Destino o sobrecarregou. Nunca quis desonrar
a sua viúva, mas também não deseja a honra para si. Bastar-lhe-á um nome
honrado e uma memória sem mancha.
- Telmo morre psicologicamente
também. Conseguirá ele sobreviver a tantos desgostos e a tão grande sofrimento?
- Manuel de Sousa e
D. Madalena morrem para o mundo com a tomada de hábito, para suportar a sua
dor. No lugar de Manuel de Sousa, surge um novo ser: Frei Luís de Sousa. No de
D. Madalena, igualmente outro ser: Sóror Madalena das Chagas.
- Maria é a vítima
inocente de um destino trágico e morre fisicamente, revoltada, de vergonha.
Como era usual na tragédia grega, a catástrofe faz-se sentir na vítima (mais)
inocente.
▪ Peripécias:
- a tomada de hábito;
- a morte de Maria.
▪ Pathos (sofrimento) das personagens.
▪ Éleos (piedade) e phobos (medo): Garrett pretendia levar os espectadores a
sofrer os terrores (phóbos) perante os castigos do Destino (neste caso, da
Justiça de Deus) e sentir a piedade (éleos) pelas vítimas.
▪ Catarse: a purgação das paixões humanas. Os espectadores
viveram (e vivem) as paixões, as angústias, os desesperos das personagens, com
quem idealmente se identificaram. Sofreram os terrores de D. Madalena, choraram
as lágrimas de Manuel de Sousa, morreram com Maria, antipatizaram com a dureza
do Romeiro, sensibilizaram-se com a «traição» do Romeiro, de modo que, no final
de contas, no momento do julgamento final, o prato da balança se inclina a
favor das vítimas.
Garrett quis combater os
preconceitos e a condenação da chamada “moral social” contra os filhos
ilegítimos (como era o caso de Maria Adelaide, sua filha), mas, mais ainda,
atrair a simpatia, a desculpa, a absolvição para os amores românticos (os “direitos
da paixão”), à margem das leis de Deus e das leis humanas (como era o seu
próprio caso).
Bibliografia: MENDES, João. Introdução à Leitura do Frei Luís
de Sousa. Livraria Almedina.