Português

segunda-feira, 20 de março de 2023

A França vai adiar um ano a aprendizagem da leitura

     «... em França chegaram à conclusão que a escola pública reproduz as desigualdades sociais e condena os filhos dos pobres a serem pobres. Que a leitura em idade precoce é um assunto para famílias abastadas que estão envolvidas em competições escolares. Que o acesso à leitura é mais difícil para crianças com menos vocabulário. Conclusão: a França vai investir nas crianças mais pobres para que a escola pública lhes dê acesso a essa ferramenta tão importante? Não. Vão é adiar a aprendizagem da leitura por um ano (em vez de ser aos seis, aos sete) para que as crianças pequenas das classes trabalhadoras não fiquem numa posição inferior.»

    Criminoso!

    O original pode ser encontrado aqui: IP Azul.

Boxing Day

Maria Scrivan
 

domingo, 19 de março de 2023

Análise da Introdução de Amor de Perdição


Função da Introdução
 
Camilo Castelo Branco prepara o leitor e sobretudo a leitora para a história que vai contar. A voz que encontramos na Introdução não é a do narrador que narra a ação dos capítulos da novela, mas a do autor que nos fornece informações acerca das origens da história e das suas personagens.
 
Assim sendo, a Introdução funciona como uma apresentação da obra, como uma espécie de prólogo (note-se que, na primeira edição, de 1862, este texto introdutório surgia como um prefácio), visto que nela é sintetizada em linhas gerais a história que vai ser narrada (“Amou, perdeu-se, e morreu amando”) e o narrador-autor se esforça por lhe conferir credibilidade, levando o leitor a aderir emocionalmente ao seu relato.
 
 
Motivo subjacente à escrita da obra
 
            A similitude das situações vividas por Camilo Castelo Branco e Simão Botelho, seu tio, permite ao escritor denunciar a injustiça de que foi vítima ao ser preso pela relação adúltera com Ana Plácido e, em simultâneo, reivindicar o seu direito ao amor. Assim sendo, implicitamente, Camilo defende-se a si próprio.


Estrutura da Introdução
 
1.ª parte (do início até “Foi para a Índia em 17 de março de 1897): Relato da descoberta e consulta de um documento oficial e transcrição do seu conteúdo.
 
2.ª parte (de “Não seria fiar demasiadamente…” até ao final): Comentários do narrador e antecipação do conteúdo da novela.
 
 
Transcrição do assentamento da Cadeia da Relação
 
A Introdução inicia-se com a transcrição do registo (o assentamento) da entrada de Simão Botelho na Cadeia da Relação do Porto, que encontrou nos “livros de antigos assentamentos, no cartório das cadeias da Relação do Porto”.
 

Que dados encontramos no registo de entrada?

Nome completo da personagem: Simão António Botelho.

Estado civil: solteiro.

Profissão/Ocupação: estudante na Universidade de Coimbra.

Naturalidade: Lisboa.

Idade: 18 anos.

Filiação:

. Pai: Domingos José Correia Botelho.

. Mãe: Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco.

 
Objetivo da transcrição do documento
 
 A transcrição de um documento autêntico, oficial, que alude a uma pessoa real, permite ancorar a narração que se vai seguir numa base histórica, ou seja, confere-lhe veracidade/credibilidade, torna-a verídica ou, pelo menos, verosímil, aos olhos do leitor. Dito de outra forma, quer fazer-nos crer que os acontecimentos relatados na obra correspondem à vida de Simão Botelho, tio de Camilo Castelo Branco. Quando Camilo denuncia a sua situação de preso na cadeia, onde descobre informação sobre o seu tio, procura criar no leitor a ideia de que o que vai narrar se baseia em factos reais, daí as referências à descoberta do assentamento que documenta a entrada ali de Simão Botelho e a sua partida para o degredo em 17 de março de 1807.
 
– A transcrição de documentos e/ou a inclusão de notas de rodapé informativas enquanto forma de dar credibilidade, de conferir veracidade ao que é narrado, ocorre noutras passagens da novela (bem como noutras obras do escritor). Por exemplo, encontramos notas de rodapé no Capítulo I (com informações sobre os irmãos de Domingos Botelho) e na Conclusão (nomeadamente a data da morte da irmã predileta de Simão).
 
– A transcrição serve ainda para apresentar, desde já, Simão.
 
Por outro lado, as datas inscritas no registo permitem situar, temporalmente, a ação da novela no início do século XIX. A este propósito, há que saber que, na realidade, Simão Botelho não partiu para o degredo com 18 anos nem morreu, em alto mar, a caminho do exílio, como apresentado da obra. De facto, chegou a viver na Índia (há notícias da sua presença em Goa em 1808, por exemplo), o que indicia que alguns dos factos da novela não correspondem à realidade, antes foram adulterados por questões ficcionais (cf. Amor de Perdição, edição didática de Luís Amaro de Oliveira). De igual forma, o motivo que o levou à prisão não foi o homicídio de Baltasar.
 
 
Objetivo do narrador-autor ao folhear os livros
 
            O narrador, ao folhear os livros no cartório da prisão, desejava conhecer melhor a história do seu tio Simão Botelho, de quem tinha ouvido contar muitas histórias, desde criança, e que tinha estado preso na mesma cadeia que ele mesmo.

 
Narrador-autor
 
Ponto de vista
 
            O narrador adotará uma posição subjetiva face aos acontecimentos narrados, visto que, desde o início, não esconde a sua empatia relativamente a Simão, pelo facto de, por amor, aos 18 anos, ter sido obrigado a abandonar a sua família e o seu país, e por ser seu tio paterno, seu parente.

Sentimentos – Discurso emotivo
 
Num discurso emotivo, o narrador reflete sobre a vida de Simão, distinguindo nela duas fases: a primeira corresponde à descoberta do amor (“O arrebol dourado e escarlate na manhã da vida! As louçanias do coração que ainda não sonha em frutos, e todo se embalsama no perfume das flores! Dezoito anos! O amor naquela idade!”); a segunda cinge-se à dor e à desilusão que o amor causou (“E degredado da pátria, do amor e da família! Nunca mais o céu de Portugal, nem liberdade, nem irmãos, nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem um amigo!”).
 
Ao ler o assentamento da Cadeia da Relação, o narrador-autor comove-se profundamente, manifestando, entre outros, os seguintes sentimentos: amargura pela situação vivida por Simão; respeito pela personagem, nomeadamente pelos seus ideais; ódio (= indignação, revolta) relativamente à hipocrisia e conservadorismo de uma sociedade que tudo sacrifica em nome da sua honra.
 
Causas do estado de alma
 
            Camilo escreveu a novela enquanto estava preso na Cadeia da Relação do Porto, por ter cometido adultério com Ana Plácido. Assim sendo, ter-se-á identificado com a situação vivida pelo tio, Simão Botelho, que também foi preso em decorrência de um caso de amor, pelo que a mágoa que sente perante uma situação injusta, o respeito por aqueles que lutam pelo amor e o desprezo por uma sociedade hipócrita e retrógrada são aplicáveis também à sua pessoa.
 
Vozes
 
            Por um lado, na Introdução está presente a voz do narrador-autor, que refere pessoas e acontecimentos reais com mentalidade e objetividade. Por outro, identifica-se o narrador heterodiegético, que será o responsável pela dimensão ficcional da novela e que, além de narrar, faz sentir a sua presença também através de comentários, reflexões e juízos avaliativos, assumindo uma posição subjetiva.
 
Identificação com Simão
 
            O narrador identifica-se com Simão Botelho, quando, por exemplo, afirma que sentiu um “doloroso sobressalto”, “amargura e respeito” e “ódio” ao ler o registo de assentamento. Além disso, prevê que possa vir a ter dissabores, causados pelos “frios julgadores do coração”, no momento em que desmascarar a “falsa virtude” dos inimigos do amor. Refere-se, assim, aos seus próprios inimigos, que o “julgaram” e prenderam pela relação com Ana Plácido.
            Por outro lado, como já sabemos, Camilo estava preso na Cadeia da Relação pelo já referido caso de adultério com Ana Plácido, uma senhora casada, vivendo uma situação semelhante à do seu tio, que aí estivera igualmente encarcerado por homicídio. Assim sendo, de semelhança entre os dois existe a questão do encarceramento e do motivo do mesmo: o amor.
 
Linguagem e estilo
 
            Após a transcrição do documento, o narrador-autor dirige-se ao leitor e faz uma série de comentários, nos quais predomina uma linguagem emocional:

Frases curtas: “Dezoito anos!”; “É triste!”.

Frases exclamativas: sexto e sétimo parágrafos.

Repetições: “Dezoito anos!” (três vezes).

Metáforas: “arrebol dourado e escarlate da manhã da vida”.

Enumerações: “nem liberdade, nem irmãos, nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem um amigo”.

Vocabulário associado à ideia de infelicidade: “dó”, “triste”, “choraria”, “doloroso”, “amargura”.

Interrogação retórica: “[…] por amor da primeira mulher que o despertou do seu dormir de inocentes desejos?!”.

Reticências: traduzem hesitações do narrador.

Pronome indefinido “tudo” (“[…] irmãs, mãe, vida, tudo…”): retoma todos os elementos enumerados (catáfora) e amplifica a ideia da perda, que, por ser absoluta/total, se torna ainda mais dramática.

            Esta linguagem reflete o envolvimento emotivo do narrador na narrativa.

 
Interpelação ao narratário:
 
O narrador-autor dirige-se diretamente ao “leitor” e à “leitora”, que constituem o narratário da obra, procurando despertar o seu interesse para a história que vai narrar.
 
O assentamento transcrito serve, além do já referido, para despertar a curiosidade e, principalmente, a piedade do leitor e apelar à sua simpatia para com Simão, acreditando que não ficaria indiferente à tragédia de Simão e de Teresa: “Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor, se cuido que o degredo de um moço de dezoito anos lhe há de fazer dó”.
 
Deste modo, entre toda a informação apresentada na Introdução, o narrador-autor enfatiza os seguintes dados relativos para sensibilizar o leitor perante o destino de Simão: a sua juventude, a inocência do primeiro amor, a pena a que foi condenado (o degredo), a separação definitiva da família, a falta de liberdade. E fá-lo socorrendo-se de um discurso pautado pela subjetividade e pela emoção (atente-se na pontuação emotiva), o que pode indiciar o seu envolvimento na história, ao mesmo tempo que procura envolver também o leitor.
 
Por isso, dirige-se primeiro ao leitor, no sentido geral (“Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor…”), ao leitor do sexo masculino (“O leitor decerto se compungia…”) e, por último, à leitora (“e a leitora…”).
 
Apesar dessa referência ao leitor, o narratário que visa é a leitora. O narrador tem a noção de que o homem reagiria à história que irá contar de forma diferente da mulher, por isso prevê reações diferentes: “O leitor decerto se compungia”; “e a leitora […] choraria!”.
 
A leitora é caracterizada como uma figura bondosa e piedosa (“a criatura mais bem formada das branduras da piedade”) e solidária com os desafortunados (“amiga de todos os infelizes”) e que choraria, se comoveria, pois a história de amor entre Teresa e Simão contém todos os ingredientes necessários à comoção de quem a ler. Dado que, na sua ótica, as leitoras eram mais sensíveis, dirige-se sobretudo a elas, dando a entender que a história as comoverá muito.
 
Esta estratégia, por um lado, prepara os leitores para a narrativa que irão ler e, por outro, é uma forma de o narrador procurar captar a sua empatia com o protagonista. Afinal, trata-se de uma história triste: a história de um jovem – Simão Botelho – que perdeu tudo por amor: “honra, reabilitação, pátria, liberdade, irmãs, mãe, vida”.
 
E qual é a causa desta desgraça? O amor: “… tudo, por amor da primeira mulher…”. É a absolutização do amor: o sentimento amoroso é tudo e está acima de tudo.
 
 
“Amou, perdeu-se, e morreu amando”
 
            Esta frase resume a estrutura tripartida da história de amor de Simão:
 
Introdução: Simão “amou, isto é, apaixonou-se por Teresa, e foi correspondido.
 
Desenvolvimento: Simão cometeu um homicídio e “perdeu-se por amor”.
 
Conclusão: “e morreu amando” – deixou-se morrer pelo seu amor impossível por Teresa.
 
 
Linhas estruturantes da novela
 
            A Introdução antecipa algumas das linhas estruturantes da obra, como, por exemplo, as seguintes:

o amor-paixão: este é o tema da novela que vai ser narrada e que está sintetizado na frase “Amou, perdeu-se, e morreu amando”;

o herói romântico: Simão é o protagonista que perdeu tudo por amor, um herói romântico;

a sugestão biográfica: há semelhanças entre Simão e o narrador, cuja figura, por sua vez, se confunde com a do próprio autor (preso, tal como Simão, por amor e na cadeia da Relação do Porto);

o caráter memorialístico da obra: o narrador assume-se como alguém que relata as memórias de uma história cujo protagonista é verídico e seu parente;

a crónica da mudança social: Simão representa a mudança da sociedade, que assenta na noção de liberdade e no valor do indivíduo e que se opõe a uma sociedade antiga, assente na falsa virtude, como Camilo assinala no final da Introdução.

 
 
Crítica
 
            No final da Introdução, o narrador-autor afirma que a leitura do registo de entrada de Simão na prisão lhe despertou o ódio (“Ódio, sim…”), a indignação (“o doloroso sobressalto”) e a amargura (“e lidas com amargura”) perante a injustiça de que o protagonista da obra e Teresa tinham sido vítimas.

            Aqueles que se opuseram ao amor (entre ambos) são apelidados de “frios jugadores do coração”), dado que se mostraram insensíveis perante os projetos de felicidade de Simão e Teresa.

            No entanto, esta crítica não se restringe ao contexto da novela; de facto, estende-se e dirige-se sobretudo a todos aqueles que, possuidores de uma falsa virtude, se tornam bárbaros pela defesa da sua honra: “A tempo verão se é perdoável o ódio, ou se antes me não fora melhor abrir mão desde já de uma história que me pode acarear enojos dos frios julgadores do coração, e das sentenças que eu aqui lavrar contra a falsa virtude dos homens, feitos bárbaros, em nome da sua honra.” Deste modo, o narrador assume-se como um narrador judicativo.

            É possível que esta crítica suscitada pelo amor de Simão e Teresa tenha sido espoletada pelo caso pessoal de Camilo Castelo Branco. Que semelhanças existem entre as duas situações? Simão foi julgado por causa do amor por Teresa (em virtude do qual assassinou Baltasar Coutinho) e preso na Cadeia da Relação do Porto; Camilo foi igualmente levado a julgamento por amor, isto é, por causa da relação amorosa que mantinha com Ana Plácido, uma mulher casada, e esteve preso no mesmo local. Por outro lado, o narrador chama a atenção para a injustiça que constitui a condenação do seu tio Simão, sugerindo, assim, a injustiça da sua própria condenação e da de Ana Plácido. Por último, apela à comiseração do leitor para a história que vai narrar e, indiretamente, para a sua própria história (“Escrevi o romance em quinze dias, os mais atormentados de minha vida.”).

Frei Luís de Sousa - Ato III, Cenas I, IV e XI


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Da legalidade da greve do S.TO.P.


Link: S.TO.P.

A desigualdade galopante

    Em 2022, a cada 33 horas, 1 milhão de pessoas caiu na extrema pobreza. Durante a pandemia, os bilionários aumentaram a riqueza mais do que nos 23 anos anteriores. No setor da alimentação e da energia, as suas fortunas aumentaram mil milhões a cada 2 dias. Esses ganhos davam para vacinar o mundo inteiro, financiar a (des)igualdade da educação, a saúde e a proteção social.
    Por su turno, os trabalhadores perderam, em média, desde 1980, 2000$ por ano.


domingo, 5 de fevereiro de 2023

Análise da cena 10 de Frei Luís de Sousa


 
A cena abre com D. Madalena a dar instruções a Mirada no sentido de o criador ir esperar o bergantim, para a avisar da sua chegada e, consequentemente, do marido.
 
 
De seguida, à semelhança do que sucedera na cena II do primeiro ato faz novas referências temporais que funcionam como indício de desgraça: “Não há vento e o dia está lindo. (…) Mas a volta… quem sabe? O tempo muda tão depressa…”. Com estas palavras, D. Madalena alude à instabilidade do tempo, que está calmo, mas rapidamente pode mudar, e da própria vida (até ao momento aparentemente calma), constituindo um indício das mudanças grandes que se aproximam. Ou seja, a desgraça pode chegar de um momento para o outro, sem avisar, tal como o mau tempo num dia de sol. Será isto que acontecerá com as personagens: após um período de acalmia aparente, a sua vida desmoronar-se-á.
 
 
Localização temporal da ação
 
▪ A ação localiza-se no dia 4 de agosto de 1599:

dia e mês da batalha de Alcácer Quibir (1578)

D. João foi procurado durante 7 anos;

D. Madalena e Manuel de Sousa estão casados há 14 anos;

logo, passaram 21 anos.
 
 
O dia fatal
 
            Todas as personagens desnecessárias para o imediato desenrolar dos acontecimentos são afastadas para Lisboa com razões plausíveis e óbvias: Manuel de Sousa, por “negócio de importância no Sacramento” (II, 4); Maria, para “ver a tia Joana de Castro (ibidem); Telmo, para acompanhar Maria e por ordem expressa de D. Madalena: “Telmo que vá com ela; não o quero cá” (II, 6). D. Madalena fica, portanto, só, naquela casa assombrada, com os fantasmas de sempre:

“Sexta-feira! (aterrada). Ai que é sexta-feira!” (II, 5);

“Logo hoje!... Este dia de hoje é o pior… se fosse amanhã, se fosse passado hoje!...” (II, 5);

(abraçada com a filha) Oh, Maria, Maria… também tu me queres deixar! Também tu me desamparas… e hoje!” (II, 5);

“E tua mãe, deixa-la aqui só, a morrer de tristeza (à parte) e de medo?”.

            É, todavia, mais adiante, já depois da partida dos familiares para Lisboa, que se explicita, com mais clareza, a natureza e as razões dos terrores de D. Madalena (II, 10): “Hoje… hoje! Pois hoje é o dia da minha vida que não acabe sem muito grande desgraça… É um dia fatal para mim…”.
            As suas razões baseiam-se nas inquietantes coincidências acumuladas naquela sexta-feira, um dia já de si aziago, na superstição popular. Assim, D. Madalena aponta os motivos que a levam a considerar aquela “sexta-feira” um “dia fatal”:

▪ é sexta-feira;

▪ casou pela primeira vez (com D. João de Portugal);

▪ ocorreu a batalha de Alcácer Quibir (4 de agosto de 1578, por hipótese também uma sexta-feira), da qual se celebra o 21.º aniversário;

▪ desapareceram D. Sebastião e D. João de Portugal (igualmente há 21 anos);

▪ viu pela primeira vez Manuel de Sousa Coutinho, por quem se apaixonou (o amor paixão, amor à primeira vista, ainda em vida de D. João, é considerado crime e pecado por ela própria;

▪ é o 14.º aniversário do seu casamento com Manuel de Sousa.

            Assim se compreende o estado de espírito de D. Madalena e a obsessão com aquele dia em concreto, que a leva a repetir oito vezes o advérbio de tempo “hoje”. De facto, e pelo exposto, ela sente-se culpada por se ter apaixonado por Manuel de Sousa assim que o viu, ainda casada com D. João, tendo, portanto, pecado em pensamento. Além disso, vive atormentada e aterrorizada pela dúvida que a persegue desde o início da peça, ou seja, que o primeiro marido ainda está vivo e que, por tudo isso, Deus a castigue. Deste modo, D. Madalena atribui um caráter fatídico àquele dua e pressente uma desgraça iminente.
 
 
Deste modo, a cena dá-nos a visão completa da hybris de D. Madalena, que é anterior à ação.
            Na cena II do segundo ato, D. Madalena abriu o coração perante Frei Jorge, numa espécie de confissão, na qual evoca o que se passou no íntimo da sua alma, desde que viu pela primeira vez Manuel de Sousa, ainda em vida de D. João de Portugal:
amor à primeira vista, ao modo romântico;
paixão súbita, fatal, considerada um «crime».
            E acrescenta:
esse “pecado” estava-lhe no coração;
dentro da alma já não tinha “outra imagem senão a do amante”;
guarda a D. João, bom, generoso marido, apenas “a grosseira fidelidade” física.
            Porque é que essa paixão, nascida no coração de D. Madalena, é por ela própria considerada “crime”? A paixão surge espontaneamente e é independente da vontade da personagem. A própria D. Madalena reconhece noutro passo (I, 2) que o amor “não está em nossa mão dá-lo, nem quitá-lo”. Não tem ela consciência de que essa paixão, instintiva e avassaladora, não obedece à razão, nem se submete ao poder da vontade? Por que razão diz, logo a seguir, que o “pecado” lhe estava no coração, que dentro da alma já não tinha “outra imagem senão a doa amante?” E que já não guardava a seu marido “senão a grosseira fidelidade “ física?
            Por outras palavras, se nesse momento o adultério ainda não estava consumado, por que motivo é que D. Madalena fala de “crime” e de “pecado”?
            Dentro dos limites da tragédia grega, espelho de uma sociedade pagã, a hybris manifestava-se pela escolha voluntária da alternativa delituosa. O momento decisivo da escolha de atos contra a ordenação das leis dos deuses, das leis naturais, das leis da cidade, constituída a crise. E só depois, pela consumação de tais atos, se verificaria o crime (crise e crime são, aliás, palavras da mesma família etimológica).
            Numa tragédia, como Frei Luís de Sousa, em que há uma mundividência e uma vivência cristãs, em que as personagens estão submetidas a um código moral assente no Evangelho, e em que a ação é predominantemente psicológica, há que ir mais longe e mais atrás, penetrar mais fundo na alma humana.
            Pecado, na ordem da Graça, é a infração da Lei de Deus, expressa no Decálogo, Lei que aponta para o Amor de Deus e para o Amor do próximo, que condena os atos físicos (6.º Mandamento), mas igualmente os atos interiores da vontade (9.º Mandamento). São Marcos explicita-o claramente: “É do interior do coração dos homens, que saem os maus pensamentos, prostituições, roubos, assassínios, adultérios…”.
            Nesta fase, que vai do momento em que pela primeira vez viu Manuel de Sousa, até à data da batalha de Alcácer Quibir (4 de agosto de 1578), D. Madalena vive em pecado de adultério: “O pecado estava-me no coração” (II, 10). É um adultério consentido, vivido escondidamente, no segredo da sua consciência, na profundidade do seu foro íntimo, a que só ela e Deus têm acesso.
            Presa por laços indissociáveis do matrimónio cristão, que só a morte poderia quebrar, enleada na paixão e cega pela imagem do homem que completamente a empolga, consome-se intensamente entre a razão e o dever, por um lado, e o sonho impossível, por outro, talvez sem um remorso, sem um rebate de consciência, sem um anseio de libertação. Guarda, é certo, a “grosseira fidelidade que uma mulher bem nascida quási mais deve a sai do que ao esposo”, quer dizer, conserva as aparências, mas está mais atenta às reservas pessoais do pudor e às conveniências sociais, do que aos ditames da razão, às exigências do código moral da religião cristã, à piedade familiar no cumprimento dos seus deveres de estado.
            É nesta situação moral e passional que a vem surpreender a noticiada batalha de Alcácer Quibir funesta para D. Sebastião, para a flor da gente portuguesa e para D. João de Portugal.
            Até este momento, D. Madalena vivia duas vidas, confrontadas conflituosamente na penumbra misteriosa da consciência: por um lado, as vivências do amor-paixão, dominadas pela imagem de Manuel de Sousa, o «amante», como ela lhe chama na presente cena; por outro, o desejo de exteriormente salvaguardar as aparências de “respeito, devoção e lealdade” para com D. João, na frase de Telmo (I, 2). Por isso, até que ponto a presumível, mas não provada morte de D. João teria mesmo sido uma tentação, para pôr aprova o caráter de D. Madalena?
            Um intervalo inicia-se com essa data crucial do desastre de Alcácer Quibir: com 17 anos apenas (I, 2), D. Madalena fica viúva. Jovem, bela, nobre, alvo das simpatias de todos, aureolada pelo clarão crepuscular do sacrifício de quem lhe era caro, ela chora a perda do marido, respeita a “sua memória”, durante sete anos o “faz procurar” por toda a parte, gasta “grossas quantias”, assegura valimentos de “embaixadores de Portugal e de Castela”, influências e serviços de padres da Redenção, empenhados em reunir cativos, informações de religiosos e de mercadores (I, 2): D. João de Portugal não aparecia, nem vivo, nem morto. Gastos de dinheiro, diligências concertadas ou avulsas, oficiais ou particulares, não levaram a outra conclusão, senão a de que o primeiro marido desaparecera, e para sempre.
            Passados esses sete anos, acontece o inevitável, consumando-se a vontade de D. Madalena, até então ainda não manifestada: “Eu resolvi-me a casar com Manuel de Sousa; foi do aprazimento geral das nossas famílias, da própria família do meu primeiro marido, que bem sabeis quanto me estima, vivemos seguros, em paz e felizes… há catorze anos” (I, 2).
            De facto, aparentemente, tudo está em ordem: D. João desaparecido para sempre, morto para a esposa, para a família, para os amigos (exceto Telmo), apodrece nos areais no Norte de África; a viúva, depois das lágrimas protocolares e do respeito cerimonioso dos primeiros tempos, refeita e remoçada a olhos vistos, aparece agora, como flor desabrochada, no viço dos seus vinte e quatro anos, na esperança, ou até na certeza, de em breve satisfazer a paixão que a domina. De resto, quem poderia legitimamente opor-se a que uma viúva jovem, bela, nobre, rica, voltasse a casar, e desta vez com o homem a quem sempre mais quis sobre todos, nas palavras de Telmo (I, 2)? Resolve-se, por fim, D. Madalena a casar com Manuel de Sousa, um casamento de amor, fruto da paixão tão reclamada pelos românticos. Mas será um casamento “santificado e bendito no céu”, na expressão de D. Madalena? Por outras palavras, será um casamento lícito e válido, sem mancha de pecado? Com este matrimónio, celebrado junto dos altares, perante Deus e perante os homens, afinal tornados cúmplices ou, pelo menos, comparsas, D. Madalena viola a Lei divina e as leis humanas, consuma, portanto, a hybris, pela acumulação de atos culposos:
mentira consciente (perjúrio);
profanação de um sacramento (sacrilégio);
bigamia;
impiedade.
            Por isso, restam imensas dúvidas sobre esta segurança de consciência, sobre esta paz de espírito e sobre esta felicidade de vida, nesses catorze anos de matrimónio. D. Madalena ter-se-ia esquecido do que em voz alta pensara e dissera, quando estava só, a contar consigo própria e com Deus? Recordemos a cena inicial da obra: “Oh! que o não saiba ele ao menos, que não suspeite o estado em que vivo… este medo, estes contínuos terrores, que ainda me não deixaram gozar um só momento de toda a imensa felicidade que me dava o seu amor. Oh! que amor, que felicidade… que desgraça a minha!”. Daqui nascem todos os seus conflitos de D. Madalena: consigo própria com Telmo Pais, com Manuel de Sousa, com a filha, com o romeiro – D. João de Portugal.


O longo desabafo-confissão de D. Madalena a Frei Jorge (confidente privilegiado na dupla perspetiva de irmão de Manuel e sacerdote) que constitui esta cena é desencadeado pelas palavras aparentemente despretensiosas do frade, em resposta aos receios de D. Madalena: “Não, hoje não tem perigo”.
        Ora, estas palavras são ambíguas: na boca de Frei Jorge, referem-se ao presumível bom tempo que fará para o regresso de Manuel de Lisboa; mas D. Madalena interpreta-as em sentido oculto, claro do seu ponto de vista: Hoje era o dia de maior perigo para ela.
        Repare-se, ainda, que a palavra hoje se repete 9 vezes só nesta cena, com uma insistência mórbida e inquietante, durante toda a confissão de D. Madalena. E é no preciso momento em que, por fim, esta evoca a sombra e o nome de D. João que Miranda interrompe a confissão para lhe trazer um “estranho recado” de um estranho romeiro.
 

O discurso de D. Madalena, à semelhança do que sucede desde o monólogo inicial da peça, reflete o seu estado de espírito. Assim, sempre que fala no seu passado, ela revela os seus medos e terrores ao recordar o tempo relacionado com D. João de Portugal e com o momento em que, estando ainda casada com ele, se apaixonou por Manuel de Sousa, com quem viria a casar vários anos depois. Na esteira do Romantismo, o estado de alma de D. Madalena reflete-se no seu discurso em frequentes interrupções e hesitações, daí a presença das reticências e de frases inacabadas. Outros recursos presentes no discurso da personagem são as repetições (“Hoje… hoje!”), as exclamações e as interrogações.
 
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