"Custa-me imaginar que alguém possa um dia falar melhor de Fernando Pessoa que ele mesmo. Pela simples razão de que foi Pessoa quem descobriu o modo de falar de si tomando-se sempre por um outro. Quando encarnada em figuras que parecem vivas - e ele supunha mais vivas do que ele - essa descoberta de si como outro, convertida em jogo da sua verdade, chamou-se Heteronímia.
O «mito-Pessoa», tanto em si como no seu estatuto poético de amplitude hoje universal, repousa essencialmente na encenação prodigiosa a que Pessoa submeteu o seu radical sentimento de inexistência. O célebre «drama-em-gente», a invenção dos Pessoa-outros destinados a cumprir pelo único que havia os sonhos de felicidade ou grandeza imaginárias que só de os pensar o destruíam, é o último ato do longo processo de dissolução do Eu inaugurado pelo Romantismo.
A poesia de Caeiro, Reis e Campos não precisa de outro «sujeito» que o da voz «anónima», anónima como nenhuma outra da nossa tradição - por isso nos tocou tanto - que nele se fala e nos fala, tornando-nos imaginariamente felizes em Caeiro, indiferentes à felicidade ou infelicidade em Reis e impossivelmente felizes em Campos. A criação dos heterónimos é só ficção de interlúdio, maneira para Fernando Pessoa ter sido, num breve momento, futurista com Álvaro de Campos, romano e invulnerável à angústia com Ricardo Reis e divinamente grego, alegre ou triste como a natureza, com Alberto Caeiro. Tudo isto, para nos dizer, como ninguém o dissera antes, que Deus, o deus da nossa alma e da nossa cultura milenarmente cristãs, estava morto e, com ele, as crenças, os valores, as ilusões, a moral, a política de que era a suprema e materna sigla. Mas o que Pessoa compreendeu, antecipando-se a deduções futuras e óbvias, foi que essa morte de Deus era, ao mesmo tempo, morte do Homem, fim da ilusão humanista que imaginava ainda poder justificar, na perspetiva de uma ausência de Sentido transcendente para o universo e a História, os mesmos valores, as mesmas ilusões consoladoras, a mesma moral tranqulizante.
Caeiro, Campos, Reis, não são mais que sonhos diversos, maneiras diferentes de fingir que é possível descobrir um sentido para a nossa existência, saber quem somos, imaginar que conhecemos o caminho e adivinhamos o destino que vida e História nos fabricam. Ter sonhado esses sonhos não libertou Pessoa da sua solidão e da sua tristeza. Mas ajudou-nos a perceber que somos, como ele, puros mutantes, descolando para formas inéditas de vida, para viagens ainda sem itinerários. Com Caeiro fingimos que somos eternos, com Campos regressamos dos impossíveis sonhos imperiais para a aventura labiríntica do quotidiano moderno, com Reis encolhemos os ombros diante do Destino, compreendemos que o Fado não é uma canção triste mas a Tristeza feita verbo."
A poesia de Caeiro, Reis e Campos não precisa de outro «sujeito» que o da voz «anónima», anónima como nenhuma outra da nossa tradição - por isso nos tocou tanto - que nele se fala e nos fala, tornando-nos imaginariamente felizes em Caeiro, indiferentes à felicidade ou infelicidade em Reis e impossivelmente felizes em Campos. A criação dos heterónimos é só ficção de interlúdio, maneira para Fernando Pessoa ter sido, num breve momento, futurista com Álvaro de Campos, romano e invulnerável à angústia com Ricardo Reis e divinamente grego, alegre ou triste como a natureza, com Alberto Caeiro. Tudo isto, para nos dizer, como ninguém o dissera antes, que Deus, o deus da nossa alma e da nossa cultura milenarmente cristãs, estava morto e, com ele, as crenças, os valores, as ilusões, a moral, a política de que era a suprema e materna sigla. Mas o que Pessoa compreendeu, antecipando-se a deduções futuras e óbvias, foi que essa morte de Deus era, ao mesmo tempo, morte do Homem, fim da ilusão humanista que imaginava ainda poder justificar, na perspetiva de uma ausência de Sentido transcendente para o universo e a História, os mesmos valores, as mesmas ilusões consoladoras, a mesma moral tranqulizante.
Caeiro, Campos, Reis, não são mais que sonhos diversos, maneiras diferentes de fingir que é possível descobrir um sentido para a nossa existência, saber quem somos, imaginar que conhecemos o caminho e adivinhamos o destino que vida e História nos fabricam. Ter sonhado esses sonhos não libertou Pessoa da sua solidão e da sua tristeza. Mas ajudou-nos a perceber que somos, como ele, puros mutantes, descolando para formas inéditas de vida, para viagens ainda sem itinerários. Com Caeiro fingimos que somos eternos, com Campos regressamos dos impossíveis sonhos imperiais para a aventura labiríntica do quotidiano moderno, com Reis encolhemos os ombros diante do Destino, compreendemos que o Fado não é uma canção triste mas a Tristeza feita verbo."
Eduardo Lourenço, Fernando, Rei da nossa Baviera