Poema
IX
“Sou
um guardador de rebanhos”
O poema, constituído por três
estrofes (duas sextilhas e um dístico) de versos brancos e métrica irregular, apresenta-nos
um sujeito poético que se assume, metaforicamente, como um pastor, remetendo
assim para o início do poema I, no qual se lhe comparava.
A primeira estrofe inicia-se com uma
metáfora (“Sou um guardador de rebanhos”)
que institui o sujeito poético como um ser natural e que anula a oposição entre
o pensar e o sentir, através da identificação entre pensamentos e sensações,
característica do sensacionismo de Alberto Caeiro: o conhecimento da realidade
adquire-se pela sua apropriação direta mediante os cinco sentidos humanos, isto
é, ele relaciona-se com a realidade, seja ela flor, fruto, ou um dia de calor,
através dos sentidos. E isso basta-lhe, pois é essa relação que lhe traz a
verdade desse real. Por outro lado, ao afirmar a sensação como fonte única do
conhecimento do real, o sujeito poético nega o pensamento, submetendo-o à
sensação. Deste modo, ele consegue unir o pensar ao sentir: “Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la / E
comer um fruto é saber-lhe o sentido.” (vv. 7-8).
A enumeração dos órgãos associados
aos sentidos nos versos 4 a 6 (olhos, ouvidos, mãos, pés, nariz e boca) reforça
a importância do sentir afirmada no verso 3 e hierarquiza as sensações de
acordo com o grau de conhecimento que permitem apreender: as sensações visuais
são a primeira fonte de saber, seguindo-se as auditivas, as táteis, as olfativas
e, por fim, as gustativas. Estilisticamente, o polissíndeto (repetição da
conjunção coordenativa copulativa «e»),
o paralelismo sintático e a anáfora (vv. 5-6) traduzem a simplicidade do
sujeito poético.
Os versos 7 e 8 exemplificam a
identificação entre pensar e sentir, primeiro através de uma definição, depois
metaforicamente (“E comer um fruto é
saber-lhe o sentido.” – v. 8), procedendo à objetivação do pensamento, isto
é, conferindo-lhe um estatuto concreto, de objeto.
A estrofe final, de caráter conclusivo
(é iniciada pela locução «por isso»),
começa por afirmar a sua tristeza, que advém do excesso (“Me sinto triste de gozá-lo tanto” – v. 10), daí que seja natural e
não perturbe o conhecimento da realidade nem a felicidade (ideias já
desenvolvidas no poema I, nos versos 9 a 13 e 14 a 18). O sujeito poético
aceita, então, essa tristeza porque ela provém de um excesso natural de felicidade.
Porém, a tristeza evolui para felicidade (v. 14) no momento em que o sujeito
poético substitui a perceção mental do prazer (“gozá-lo”, v. 10) pela ligação direta com a realidade (“Sinto todo o meu corpo deitado na realidade”,
v. 13).
A realidade é aquilo que é concreto,
o que existe sem ser preciso pensar, aquilo que é captado através dos sentidos,
em estreita conexão, em comunhão total com a Natureza, ideia afirmada nos
versos 11 e 13, onde o contacto de todo o corpo com a erva salienta um desejo
de quase fusão com os elementos naturais.
Nos dois versos finais, o sujeito
poético confirma várias ideias características da sua poesia:
1.ª) a verdade consiste no conhecimento direto
da realidade;
2.ª) esse conhecimento e
essa apropriação da realidade concretizam-se através dos sentidos, sem qualquer
interferência do pensamento;
3.ª) o primado das sensações
e a ausência do pensamento são a única forma de conhecimento autêntico e fonte
de felicidade;
4.ª) a felicidade é
diretamente proporcional ao contacto direto com a Natureza, um exemplo mais da
supremacia do sentir sobre o pensar.
Quanto aos recursos expressivos,
além dos já identificados e da sinestesia do verso 12 (“olhos quentes”), há os seguintes traços típicos da poética
caeiriana:
. a
linguagem simples e de caráter oralizante (repetições de vocábulos,
polissíndeto, predomínio da coordenação…);
. o
predomínio de nomes concretos e a quase ausência de adjetivos;
. o
uso de palavras do campo lexical das sensações, que revela o primado do sentir
sobre o pensar, sempre objetivado (“Penso
com os olhos e com os ouvidos”, “Pensar
uma flor é vê-la e cheirá-la”);
. a
sintaxe simples, com repetição de estruturas frásicas e predomínio da
coordenação;
. a variedade
estrófica, métrica e rítmica;
. o
verso branco.
Por último, quanto à estrutura
interna deste poema, uma possibilidade consiste na sua divisão em duas partes:
. a
1.ª corresponde às duas primeiras estrofes e nelas o sujeito poético afirma o
seu sensacionismo e o primado do sentir sobre o pensar;
. a
2.ª constitui uma conclusão – a terceira estrofe –, através de um exemplo, das
ideias expressas nos versos anteriores.