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sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Ai amor, amore de Pero Cantone", de Fernão Soares de Quinhones

    Esta cantiga, da autoria de Fernão Soares de Quinhones, apresenta a curiosidade de começar pelo refrão, que depois repete, como é habitual, no final de cada uma das cinco sextilhas.
    No que diz respeito ao seu tema, o professor Rodrigues Lapa propôs o amor, desde logo pelo facto de a palavra ocorrer vinte e sete veze, incluindo a forma paragógica, todavia Filgueira Valverde vê no vocábulo «amor» uma “palavra cuberta” (isto é, um termo cujo verdadeiro sentido está oculto ou disfarçado por, por exemplo, um duplo sentido) com o significado de “vinho”.
    O poema abre com a referência ao amor de Pero Cantone, uma figura de difícil identificação, embora se suponha que se possa tratar do irmão de Rui Canton, que surge numa cantiga incompleta de João Airas de Santiago (“Rui Martiiz, pois que este assi”), e que ambos fossem cavaleiros de origem leonesa. O segundo verso reitera o nome «amor», qualificando-o como “tam saboroso” e “sem tapone”. Ora, embora aplicável noutros contextos, o adjetivo «saboroso» pertence ao campo semântico alimentar, pelo que suporta a tese do vinho. Por outro lado, o vocábulo «tapone» significava tampão, rolha, aparecendo numa das Cantigas de Santa Maria, exatamente com o sentido de rolha de uma pipa de vinho. Desta forma, optando por tal linha de leitura, o refrão inicial sugere que o amor de Pero Cantone é o vinho, que é saboroso e derramado sem reservas.
    Os versos 3 e 4 parecem confirmar a tese do vinho, pois, além de o qualificarem como «viçoso» e «são» (dupla adjetivação), recordam a circunstância de os vinhos medievais não se conservarem facilmente, havendo alguns que rapidamente se tornavam impróprios para consumo. Yves Renouard especifica que começavam a azedar ao fim de seis meses, tornando-se, a partir da primavera, cada vez menos bebíveis, até que, em maio, deixava de haver vinhos disponíveis. Um documento de 1391, publicado por Humberto Baquero Moreno, confirma esta informação, quando refere, a propósito dos vinhos vermelhos provenientes de cepas coimbrãs, “que se nom teem despois que ssom colheitas que 3 meses”. Nos dois versos seguintes, o trovador alude a duas personagens de difícil identificação. O primeiro é Chorrichão será provavelmente um dos membros da linhagem galega dos Churrichãos, talvez Gonçalo Fernandes Churrichão, que deposou Sancha Anes de Montenegro, de quem teve um filho, Rica Fernandes, a qual lhe deu dois filhos, e Sancha Fernandes de Orzelhon, com quem gerou doze filhos. É possível que a referência da cantiga esteja associada, não só a estes sucessivos casamentos, mas também a um episódio relatado pelo Nobiliário, o rapto de Sancha Rodrigues de Segamardi, quando esta teria seis anos de idade, com quem viveu até que, por pressão do arcebispo de Santiago, João Airas, parente da ofendida, e da restante linhagem, foi obrigado a casá-la com o seu filho primogénito, Fernão Gonçalves, o Farroupim. Seja ou não o Churrichão referido, a referência que lhe é feita na cantiga é obviamente uma alusão satírica. O segundo é Martim Gonçalves de Orzelho, também este de difícil identificação. Orzelhon é uma localidade galega pertencente à comarca de Ourense, mas era igualmente uma praça castelhana fortificada, próxima da fronteira entre os reinos de Leão e Castela, pelo que Martim Gonçalves seria provavelmente um cavaleiro desta última localidade. No entanto, a referência, no verso anterior, ao Churrichão parece indicar que se trataria de um cavaleiro galego. Convém também não esquecer que a terceira mulher desse mesmo Churrichão pertencia a esta mesma linhagem de Orzelhon, pelo que é possível que Martim Gonçalves fosse seu parente. Uma hipotética leitura aponta para que os dois indivíduos referidos constituam emblemas do amor forte e fecundo, em oposição ao de Pero Cantone.
    A segunda estrofe qualifica o amor de Pero Cantone como “tam delgado e tam frio” (dupla adjetivação no grau superlativo absoluto analítico), intensificando as suas qualidades. O termo «delgado» aparece na cantiga de Afonso X “Joan Rodríguiz foi osmar a Balteira”, aplicado ao órgão sexual masculino: “e, por que é grossa, non vos seja mal, / ca delgada pera gata ren non val”. Nesta cantiga, se entendido com o significado de «delicado», poderá constituir uma referência equívoca ao vinho cortado com água. Por sua vez, o adjetivo «frio» surge também em cantigas de Afonso X, quer em contexto sexual, quer apresentado como uma das razões admissíveis legalmente para o fim do matrimónio.
    O verso 10 faz-nos retornar ao campo do vinho (“mais nom creo que dure até o Estio”), confirmando que os vinhos medievais não iam além do meio da primavera, pois deixavam de ser bebíveis a partir do mês de maio, daí serem deitados fora por estarem estragados: “ca atal era outr’amor de meu tio, / que se botou a pouca de sazone”. Rodrigues Lapa atribui à forma verbal “botou” o sentido de “deitar fora”, no que é apoiado pelo Tentative Dictionary of Medieval Spanish e pelos capítulos especiais de Torres Novas das Cortes de Elvas de 1361,que fornece os equivalentes “embotar” e “debilitar”, a partir da Vida de Santo Domingo de Silos, de Berceo, e o artigo 4.º dos capítulos referidos alude a uns vinhos que “se azedam e botam per tal guisa que nom ham deles prol.” Na esteira da professora Elsa Gonçalves, a locução “a pouca de sazone” equivaleria a “o vinho que se estragou em pouco tempo”.
    A terceira estrofe abre com um verso pontuado por novo adjetivo: “pontoso”. Segundo o professor Rodrigues Lapa, esta palavra significaria “fino, agudo, delicado”. De acordo com o Grande Dicionário de Morais, “pontoso” designa o indivíduo “escrupuloso em pontos de honra; pundonoroso, brioso”. José Pedro Machado faz derivar este qualificativo de “ponto” e atesta-o pela primeira vez na écloga Encantamento, de Sá de Miranda, mas esta observação é contrariada por esta cantiga de Fernão de Quinhones, a única da lítica galego-portuguesa onde o termo figura. Além disso, o trovador aconselha a provar esse «amor», pois fará chorar (pela sua elevada qualidade ou por estar impróprio para consumo?)m e assemelhar-se-á ao “amor de Dom Palaio de Gordone”, uma nova personagem de difícil identificação. Pelo nome, poderemos supor que seria talvez leonês, de uma linhagem sediada em Gordón (possivelmente a atual localidade de Gordoncillo, a sul da cidade de Leão). Segundo Carlos Alvar, um D. Paio de Gordón aparece como tenente do castelo de Corel (atual Corella, em Navarra) em 1199. Todavia, esta cronologia parece demasiado recuada em relação à data provável da composição da cantiga.
    O verso 22 alude à conveniência de o vinho de Pero Cantone estagiar, mais do que terá acontecido na realidade, antes de proceder à sua venda e consumo. É o que se depreende dos versos 22 a 24, que aludem ao soterramento, que pode significar “em repouso” ou, mais particularmente, “conservação por baixo da terra”. O estágio subterrâneo é característico de alguns vinhos, como, por exemplo, o de Boticas, por isso sugestivamente chamado “vinho dos mortos”. Apenas o soterramento pelo período de um ano poderia permitir que alguém lucrasse com este vinho e daí a alusão à “boa rençone” ou “boa vençone” (v. 24). “Vençone” queria dizer “venda” e provém de “venditione”. Esta prática tradicional de enterrar o vinho para melhorar a sua qualidade tem a sua origem associada aos anos das Invasões Francesas, época em que os produtores de vinho transmontano, para o esconde dos soldados sequiosos, enterravam-no e, com o uso repetido do método engendrado em desespero de causa, acabaram por constatar que sepultar a bebida por tempo suficiente tinha como resultado a melhoria da sua qualidade. Por isso, continuaram a dar-lhe o mesmo tratamento e batizaram-no de vinho dos mortos.
    Na última estrofe, o vinho é caracterizado como “pungente”, adjetivo que significa “que nasce”, “que desponta”, pelo que caracteriza o vinho novo, mas também pode querer dizer “que pica”. Ora, o nome que lhe corresponde – “pongimento” – consta com esse sentido de uma lista de nove sabores que aparece no apócrifo aristotélico Segredo dos Segredos. Dela fazem parte “dolcura amargor salgado E temperado E azedo E sen sabor E pongimento E secura E agudeza”. Nesta listagem, “pongimento” não se confunde com “azedo”, o que parece diminuir a hipótese de o amor de Pero Cantone se ter estragado por ter azedado.
    A enóloga Marsilla Arroza escreveu um tratado onde aborda uma doença chamada “picado” ou “repunte” ou “avinagramento”. A partir desse texto, é possível encontrar um significado de “pungente” mais adequado à cantiga. São os vinhos jovens os que estão mais sujeitos ao mal do “picado”, que é frequentemente causado por oxidação do álcool, resultante de contacto indevido com o ar, e por má fermentação. Ora, o “amor” de Pero Cantone aproxima-se muito deste perfil: é qualificado como «viçoso», pelo que deve tratar-se de um vinho novo; é dito “sem tapone”, ou seja, sem rolha para vedar a boca das pipas, o que permite a entrada do ar no recipiente e, deste modo, precipita a deterioração do vinho. Mais especulativo é ligar o desejo de que o amor de Pero Cantone fique em “remordente”, com a necessidade de ter uma fermentação adequada. Como a fermentação faz desaparecer a maior parte do açúcar contido no mosto e o substitui pelo álcool, ajudando assim à conservação do vinho, não admira que o amor de Pero Cantone dure pouco e seja delgado. Com efeito, no capítulo do Leal Conselheiro sobre o pecado da gula, D. Duarte recomenda que se beba “vynho o mais do tempo com duas partes daugua. E que seja delgado, (…)”, adjetivo explicado por Piel como “fraco, pouco alcoólico”. Aliás, no verso 9, a ditologia composta por «delgado» e «frio» tem caráter sinonímico, porque o segundo qualificativo se aplica ao vinho que não é muito alcoólico.
    Esta cantiga fala, portanto, do vinho de Pero Cantone, cuja efemeridade natural, semelhante à dos outros vinhos medievais, é agravada por deficiências de preparo que impedem a sua comercialização com lucro. A cantiga ficciona a deterioração rápida do vinho no próprio tempo que demora a ser cantada e ouvida, pois começa por afirmar que ele é são, na primeira estrofe, e acaba, na última, por proclamar o seu pungimento.
    De acordo com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt/, “À primeira vista, parece tratar-se de uma sátira a um apaixonado que jura um amor eterno e pungente, mas de cuja duração e sinceridade se duvida. No entanto, pelas diversas alusões da cantiga, talvez se possa entender que o verdadeiro amor desta figura, Pero Cantone, seria o vinho (e as declarações de amor feitas sob o seu efeito). Uma outra hipótese de leitura é a de a composição ser uma espécie de cantiga de amigo parodística, dita por uma mulher – que confessaria os seus amantes face ao platonismo do tal Pero Cantone. Vicente Beltran sugere ainda a hipótese de a cantiga se relacionar, de alguma forma, com os problemas financeiros e familiares para os quais a biografia do trovador parece apontar. A dupla referência, que encontramos na cantiga, a um tio e um parente do trovador poderá dar alguma plausibilidade a esta hipótese. São pistas de leitura que o leitor poderá ou não seguir.
    A cantiga é ainda curiosa pelo emprego que faz do «e» paragógico nas terminações nasais em «on» (“cantone”, “tapone”, etc.) – o que poderá ser um recurso para acentuar o ridículo, ou um mero arcaísmo gráfico dos copistas.”

Bibliografia:
cantigas.fcsh.unl.pt
“Medioevo y literatura”, João Dionísio

Análise da cantiga "Agora oí d’ua dona falar", de Fernão Rodrigues de Calheiros

    Esta cantiga de escárnio e maldizer é constituída por duas sextilhas, antecedidas por uma rubrica que clarifica que o poema se centra numa dona que tinha uma ligação com um criado chamado Vela, como se verá na primeira estrofe.
    O verso inicial remete para a cantiga de amor e a sua temática, a partir da referência a uma dona, cuja fama chega ao conhecimento do sujeito poético, antes mesmo de a conhecer pessoalmente, o atrai e desperta nele o amor “de longe”. Ele ouviu falar dessa dona (“Agora oí d’ua dona falar”), a quem quer bem (“que quero bem”), porém não a conhece, nunca a viu (“pero a nunca vi”), pois ela soube guardar-se muito bem, isto é, soube preservar a sua boa reputação (“por tam muito que fez por se guardar”). Como? A mulher guardou-se, pondo “vela sobre si”. Ora, o uso do nome «Vela» é ambíguo, dado que se presta a um duplo entendimento: por um lado, a expressar “pôr Vela sobre si” significava, em sentido corrente, “pôr-se sob vigilância”, resguardar-se, conservar a sua reputação; por outro, «Vela» é um nome de um seu criado, como nos informa a rubrica, um homem de condição social inferior, portanto um par inadequado para uma dona, uma mulher nobre (“por se guardar de uma nomeada, / filhou-s’e e pôso Vela sobre si”). “Pôso” é uma forma arcaica de «pôr», contudo presta-se ao equívoco “pôs o”. Neste sentido, “pôso Vela sobre si” constitui uma alusão de caráter sexual bem explícita: a dona “pôso Vela sobre si.”, isto é, pôs o criado sobre si.
    Em suma, na primeira estrofe, o trovador dirige a cantiga a uma dona não identificada, que mantinha uma relação com um seu criado, mas procurava resguardar-se da má fama.
    José Carlos Ribeiro Miranda, professor da Universidade do Porto, considera que esta mulher era solteira e fez-se monja, mesmo contra a vontade do pai, a cuja guarda se encontrava (“nunca end’ouve seu padre sabor”; “e, a pesar dele, sem’o seu grado”), para se “guardar”. A referência ao pai permite questionar os papéis tradicionais de pais e filhas neste contexto: tradicionalmente, são aqueles que velam as filhas, que as “guardam”, porém, na cantiga, é a filha que resolve “pôr vela” sobre si própria. Tendo em conta a epígrafe da composição poética, na realidade a «vela» que a dona decidiu pôr sobre si é o “peom Vela”, numa “aequivocatio” que é esclarecido pelo pequeno texto em prosa que antecede o poema. Deste modo, podemos concluir que a composição poética configura uma crítica implícita às “liberalidades” paternas. Deste modo, a dona conseguiu iludir a vigilância paterna por não estar devidamente “guardada”.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "As mias jornadas vedes quaes som", de Afonso Anes do Cotom

    Afonso Anes do Cotom é um trovador provavelmente de origem galega, integrante do círculo do Infante Afonso, futuro Afonso X, autor de 19 poesias trovadorescas, além de três de autoria duvidosa, dentre as quais “As mias jornadas vedes quaes som”, uma composição incompleta que se situa a meio caminho entre a cantiga de amor mais ou menos jocosa e a sátira às regras do amor cortês, nomeadamente a do segredo sobre a identidade da mulher amada. O poema, o que chegou até nós pelo menos, contém rima emparelhada e interpolada, segundo o esquema rimático abbacca, e versos decassílabos (As | mi | as | jor | na | das | ve | des | quaes | som |) e eneassílabos (meus | a | mi | gos | me | te | d’i | fe | meu |).
    Através de uma apóstrofe dirigida aos amigos (“meus amigos”), o sujeito poético convida-os a tomar conhecimento das etapas da sua viagem, que apresenta uma estrutura circular, visto que começa e termina em Castro, provavelmente Castronuño, uma povoação a sul de Valladolid, embora também se possa referir a uma pequena localidade chamada Castro de Fuentidueña, a sul de Burgos, na província de Segóvia, ou Castro Urdiales. A viagem do sujeito poético incluiu passagens por Burgos (capital da província do mesmo nome, em Castela-Leão, e uma das mais importantes paragens do Caminho de Santiago), Palença (cidade e província de Castela-Leão, a norte de Valladolid) e Carrion (Carrión de los Condes, município da província de Palencia, no Caminho de Santiago). A enumeração de lugares sugere que se tratou de um percurso árduo e contínuo que implicou esforço físico e, quiçá, emocional. Metaforicamente, esta viagem pode representar a jornada que é a vida e os desafios que esta implica. Como consequência dessa viagem, o sujeito poético tem uma aparência de felicidade, tal não passa exatamente disso – aparência –, pois, na realidade, sente-se muito triste. Ou seja, há aqui uma dualidade entre a aparência externa e o sentir autêntico interior, o que denuncia talvez a necessidade de manter uma imagem pública distinta do sentimento real.A segunda estrofe esclarece a razão do sofrimento do trovador: uma «dona”, uma mulher. O uso do nome «dona» remete-nos para a linguagem da cantiga de amor, bem como para um dos traços centrais do código de amor: a não identificação da mulher amada, desde logo porque era casada. A forma verbal «andar» sugere não tanto movimento físico, mas o estado emocional do «eu». De seguida, enumera as possíveis condições sociais da mulher: casada, viúva ou solteira ou monja (os três nomes enumerados referem-se à mesma figura, a da freira; o nome «touquinegra» designa uma freira que veste uma touca negra, uma designação bastante comum na Idade Média). Ironicamente, o trovador satiriza, com essas enumerações, as regras do amor cortês, nomeadamente a referente ao segundo sobre a identidade da mulher amada. Qualquer mulher poderia ser aquela que o trovador elogiava nas suas cantigas, independentemente do seu estado civil, um esquema que se repetia nas várias composições poéticas, com diferentes figuras femininas. Ou seja, o poeta compunha sucessivas cantigas em que exaltava a(s) mulher(es) e manifestava a «sua» coita por não ser correspondido amorosamente por ela(s), num esquema repetitivo. Note-se que até as mulheres que deveriam ser intocáveis ou inacessíveis, como as religiosas, pode ser objeto de desejo ou de sofrimento.
    O verso 11 parece constituir um alerta irónico do «eu» dirigido aos amigos, no sentido de se guardarem, de se precaverem. A influência e o sofrimento causado pela dona são tão intensos que mesmo aqueles que creem estar seguros devem estar atentos e precavidos. E usa como exemplo a sua própria situação: “e ar se guarde quem s’há por guardar, / ca mia fazenda vos dig’eu sem falha” (vv. 11-12). A concluir a estrofe, o sujeito poético suplica a Deus que o ajude e lhe valha, mas que não o faça relativamente a “quem mi mal buscar”, perífrase que refere a mulher que o faz / faça sofrer. Ora, o verso 14 desobedece às regras do amor cortês, ao código da “fin’amors”, segundo o qual o trovador deveria respeitar e servir sempre a «senhor», sem a desrespeitar ou causar mal.
    O primeiro verso da terceira estrofe, o último completo que chegou até nós, anuncia que o trovador nada mais irá revelar sobre a mulher que lhe causa dor e sofrimento, sendo que, na realidade, nada destapou sobre ela.

Análise da obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo

 I. Biografia de Aluísio de Azevedo


II. Obras de Aluísio de Azevedo


III. Período literário


IV. Ação

        . Resumo

        . Capítulos

            . Capítulo I

            . Capítulo II

            . Capítulo III

            . Capítulo IV

            . Capítulo V

            . Capítulo VI

            . Capítulo VII

            . Capítulo VIII

            . Capítulo IX

            . Capítulo X

            . Capítulo XI

            . Capítulo XII

            . Capítulo XIII

            . Capítulo XIV

            . Capítulo XV

            . Capítulo XVI

            . Capítulo XVII

            . Capítulo XVIII

            . Capítulo XIX

            . Capítulo XX

            . Capítulo XXI

            . Capítulo XXII

            . Capítulo XXIII


V. Personagens

        1. João Romão

        2. Bertoleza

        3. Miranda

        4. Rita Baiana


VI. Conclusões

        a) Forma

        b) Conteúdo


Análise da cantiga "Ao lançar o pau", de Lopo Lias

    A cantiga de Lopo Lias, de refrão e paralelística, constituída por duas sextilhas, insere-se no ciclo que o trovador dedica aos infanções de Lemos. Especificamente, refere-se aos azares de um deles no jogo do tavolado, um desporto que consistia em arremessar um dardo ou uma lança contra um determinado alvo para o tentar derrubar e que se encontrava situado num local elevado, o que significa que se trata de um jogo de perícia e força. Frei Francisco Brandão diz-nos o seguinte: “… se usava antigamente, porque fazião nelle os cavaleiros experienciais de suas forças, e era deste modo. Fabricavase hum castello de madeira, em que se união as taboas por tal ordem, que nem por si podiam cair, nem deixariao de vir ao chao, se fossem movidas com grande força. Faziao os cavaleiros prova de suas forças cõ tiros de arremessos, e o que derribava aquella fabrica levava o preço da festa.”
    O primeiro verso dá conta desse mesmo jogo: “Ao lançar do pau”. Só que esse esforço de o lançar, em cima da sela, o que sugere que o infanção está montado a cavalo, fez com que desse um mau jeito com o cu, talvez por falta de jeito, e quebrou a sela. O efeito cómico da imagem é óbvio. Atente-se na repetição do verso dois nas duas estrofes. Por sua vez, a referência à «bela» poderá constituir a referência a uma figura feminina que observa a cena e comenta a situação de forma sarcástica ou zombeteira: “– Rengeu-lh’a sela!”
    Confirmando o paralelismo que caracteriza a cantiga, a segunda cobla abre com nova referência ao lançamento do «touco», ou seja, ao jogo do tavolado, magoando bastante o cu. Segundo Manuel Rodrigues Lapa, o verso 10 (“deu do cu a bouço”) compreende uma expressão popular que tem o sentido de “magoou-se de cabo a rabo”, ou seja, muitíssimo, enquanto “bouço” terá a mesma origem de “borco” (como na expressão “cair de borco”). O refrão encerra a cantiga com o mesmo comentário sarcástico da «bela».

Análise da cantiga "Amigas, eu oí dizer", de Gonçalo Anes do Vinhal

    Esta cantiga, da autoria de Gonçalo Anes do Vinhal, é constituída por duas sextilhas, formadas por uma quadra seguida de refrão em forma de dístico, antecedidas por uma rubrica. Esta composição poética, bem como outra do mesmo trovador, têm a aparência de duas cantigas de amigo vulgares (a figura feminina comenta os seus amores com as amigas), porém vêm acompanhadas de rubricas que as contextualizam: foram feitas “a Dom Anrique em nome da rainha Dona Joana, sa madrasta, porque diziam que era seu entendedor”. Quer isto dizer que estamos perante cantigas que aludem aos (alegados) amores da madrasta de D. Afonso X, Jeanne de Poitiers, viúva e terceira esposa de Fernando III, com o seu enteado, D. Henrique, irmão do rei. Apesar de a acusação poder ser mais fictícia do que real, ambos os poemas se referem a factos históricos concretos ocorridos no âmbito do conflito que estalou entre os dois irmãos. De facto, ambos entraram em litígio pouco tempo depois da conquista de Sevilha, ainda no tempo de Fernando III, o qual se prolongou durante vários anos. A cantiga remete para um dos episódios finais da disputa, o recontro que opôs as tropas reais e as de D. Henrique (senhor de Morón), perto de Lebrija, no qual este último foi derrotado, derrota que essa que o levou ao exílio, mencionado na outra cantiga referida. Estes factos tiveram lugar em 1259. Deste modo, não restam dúvidas de que estamos na presença de duas autênticas cantigas de escárnio, debaixo da aparência de cantigas der amigo.
    O Infante D. Henrique, irmão de Afonso X, nasceu por volta de 1230 e cedo se distinguiu no campo militar, por meio do papel que desempenhou no cerco de Sevilha e na conquista de Andaluzia. Após a morte de Fernando III, o conflito já latente entre os dois irmãos, motivado pelas grandes doações feitas pelo pai a D. Henrique, bem como à rainha Joana, estala abertamente. Em 1255, apoiado por Jaime I de Aragão, D. Henrique enfrenta militarmente Afonso X, mas foi derrotado pelo exército comandado por D. Nuno Gonçalves de Lara. Na sequência da derrota, buscou refúgio em Aragão, contudo não obteve o apoiado esperado por parte de Jaime I. Mais tarde, esteve ao serviço do sultão Al-Mustansir, em Tunes, entre 1259 e 1266, e, posteriormente, período em que se instalou em Roma, onde foi nomeado senador (governador da cidade). Feito prisioneiro de Carlos de Anjou na batalha de Tagliacozzo, em 1268, permaneceu em cativeiro até 1294, apesar de várias tentativas de Afonso X para obter a sua libertação. Nesse ano, regressou à Península Ibérica, tendo sido acolhido pelo herdeiro do trono, seu sobrinho, Sancho IV. A morte prematura deste soberano em 1295 tornou-o um dos homens mais influentes da época. Deste modo, assumiu o governo do reino a par de Maria de Molina, mãe do herdeiro presuntivo da coroa, o jovem infante Fernando. Nomeado seu tutor nas Cortes de Valladolid, defendeu os seus direitos face às pretensões dos Infantes de la Cerda, igualmente netos de Afonso X. A sua atuação até 1301 permitiu ao jovem infante subir ao trono como Fernando IV nesse mesmo ano, ficando pelo meio a assinatura do Tratado de Alcanizes com D. Dinis, tratado esse que contribuiu para aliviar a pressão na fronteira ocidental e a fixação das fronteiras entre ambos os reinos. Até à sua morte, ocorrida em 1303, D. Henrique continuou envolvido na complexa trama política castelhana que ocorreu ainda em consequência da crise sucessória anterior.
    Joana de Poitiers foi a segunda mulher de Fernando III de Castela. Nascida Joana de Danmartin, cerca de 1220, era filha de Simon de Danmartin e de Maria de Ponthieu e de Montreuil e bisneto, por via materna, de Luís VII de França. O seu matrimónio com Fernando III gerou cinco filhos. Após a morte do marido, em 1252, permaneceu mais alguns anos em Castela, mas a deterioração das suas relações com Afonso X, seu enteado, potenciadas pelo apoio que deu ao partido do Infante D. Henrique, na época em rutura com o irmão, levaram-na a regressar definitivamente a França, cerca de 1259. Aí, casou-se, em segundas núpcias, pol volta de 1260 ou 1261, com Jean de Nesle, senhor de Falvy et de La Hérelle. Faleceu em 1279, na cidade de Abbeville.
    Rodrigo Afonso era o filho bastardo de Afonso IX de Leão e meio irmão de Fernando III, ou seja, tio de Afonso X. Mouron refere-se a Moron de la Frontera, um município localizado a sudoeste de Sevilha, na província de Andaluzia. A praça pertencia a D. Henrique, como a cantiga deixa bem explícito, parecendo existir na rubrica uma imprecisão, já que o recontro terá tido lugar, não em Morón, mas nas proximidades de Lebrija.
    A rubrica é, portanto, clara: a cantiga é feita por Gonçalo Anes do Vinhal a Dom Henrique em nome da rainha D. Joana, sua madrasta, porque diziam que era seu “entendedor”, isto é, seu amante, quando combateu em Moron com D. Rodrigo Afonso, que comandava o exército real.
    O primeiro verso abre com uma apóstrofe do sujeito poético às amigas, algo característico da cantiga de amor. Essa apóstrofe serve para lhes confidenciar que ouviu dizer que os de “Mouron” combateram com o exército do rei. Ouvir dizer, porque não tem a certeza se é verdade: “e nom poss’end’a verdade saber”.
    Os dois pontos com que encerra o verso 4 anunciam o refrão, no qual o «eu» poético se mostra preocupado com a sorte do seu amigo, cuja sorte desconhece (“se é viv’o meu amigo”), o mesmo a quem fez a oferta de uma touca, uma prenda que era dada muitas vezes pelos apaixonados. No entanto, Carolina Micäelis defende que, neste verso, se trata de uma touca de viúva, o seu atavio tradicional.
    Na segunda e última estrofe, o sujeito poético põe a hipótese de dar a sua cinta a quem lhe desse notícias do seu amigo e declara apenas não o fazer por tal lhe causar mal e ser tido por gabarola ou fingido. Recorde-se que, na primeira estrofe, se referira outra prenda, a touca, que tinha um grande valor para a mulher, pois fora um presente dado ao amigo, ou, na leitura de Carolina Michäelis, o símbolo da sua viuvez. Na primeira hipótese, a touca constitui, portanto, uma prenda de amor que ele levou consigo, dada por ela, como emblema do seu amor. Assim sendo, a peça de vestuário tanto pode simbolizar a relação amorosa de ambos, como, de acordo com outra interpretação, representar uma referência à condição de viúva de Joana de Poitiers.
    Em suma, a touca é uma peça de indumentária feminina, característica da Península Ibérica e presente sobretudo na cantiga de amigo. Possui uma função simbólica associada a outras “dõas” que os enamorados trocavam entre si como indício do seu compromisso amoroso. Há, porém, críticos que lhe atribuem um valor relacionado com o estado civil da mulher, casada ou viúva. Além disso, a touca surge associada a outros elementos femininos.
    Etimologicamente, a palavra não parece derivar do latim e é próprio da Península Ibérica (galego-português, castelhano e basco). Devendo ter-se estendido ao resto da Europa na época medieval. Corominas y Pascual defendem que a sua possível origem radica na forma persa «tak», isto é, «véu», «lenço», «xaile», enquanto Ramón Lorenzo remete a origem etimológica o termo «tauca», que remontaria a uma língua pré-romana, embora não determine qual. Contrariando a afirmação inicial, autores recentes remetem para o latim vulgar «toca», derivado de «toccus», que significava uma cobertura ou peça de vestuário para a cabeça, e associam a sua origem ao gótico «tukko», que remetia para um tipo de pano ou cobertura. Com o tempo, a palavra foi assimilada por outras línguas europeias, conservando o sentido de um acessório para cobrir a cabeça, geralmente feito de tecido.
    Aparecem documentadas as formas «tauca» e «touca», indistintamente, em testamentos e doações medievais escritos em latim, mas apenas «touca» em textos medievais em galego-português em prosa, como, por exemplo, a Crónica Troiana. Nas Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, regista-se a presença de «touca» enquanto referência a uma prenda oferecida à Virgem Maria por parte de uma devota e como vestimenta de uma mulher com amores adúlteros, representando, portanto, em ambos os casos, a condição de mulher casada.
    Relacionada com «touca», encontra-se também na época medieval a forma composta «touquinegra” (< touca + negra), uma designação feminina pouco usada, que foi colher a sua designação à forma de vestir das mulheres que envergam hábitos nos conventos. Por exemplo, o trovador Afonso Eanes do Coton insere-as numa das suas cantigas de escárnio enquanto sinónimo de «monja» e «freira». Aludindo à sua amada, escreve o trovador o seguinte:

E a dona que m’assi faz andar
casad’é, ou viuv’ou solteira,
ou touquinegra, ou monja ou freira…

A mesma imagem metonímica é empregada por Berceo em vários dos seus textos, quando alude a uma monja que vivia num santuário com uma “touca negrada”.
    No caso dos cancioneiros galego-portugueses, a presença do termo «touca» é escassa, sendo usada somente por cinco trovadores, a saber, Pero de Sevilha, Pero Garcia Burgalês, Gonçalo Anes do Vinhal, Pero Gonçalves de Portocarreiro e João Garcia de Guilhade.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Caracterização de Rita Baiana

I. Retrato físico:

    Rita Baiana é uma personagem marcante do romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Ela é descrita com uma beleza exuberante e sensualidade natural que capturam a atenção de todos ao seu redor.
  • Cabelos: Longos, ondulados e negros como a noite, com um brilho intenso que reflete sua vivacidade, caem como uma cascata sobre os ombros, emoldurando o seu rosto com um toque selvagem e natural. Costuma usá-los soltos ou presos de maneira despretensiosa, como quem não tem tempo a perder com formalidades, o que aumenta seu charme natural.
  • Pele: Morena e luminosa, com um tom dourado característico que reflete suas origens mestiças, exalando saúde e vitalidade. Ela tem um aspeto saudável, com um brilho que lembra o calor tropical, isto é, o brilho do sol num dia de verão.
  • Olhos: Grandes e negros, profundos e expressivos, com um brilho vivaz que transmite paixão ou malícia e ternura ou alegria, duas janelas para a sua alma calorosa e apaixonada. O olhar é magnético, capaz de cativar qualquer pessoa.
  • Corpo: Bem proporcionado, com curvas sensuais, é uma celebração da feminilidade. De facto, a sua figura reflete feminilidade e força, com quadris largos, equilibrados por ombros delicados, e uma postura confiante, formando uma silhueta que atrai olhares por onde passa. Além disso, movimenta-se com a graça de quem está em sintonia com a música do mundo, e cada passo parece uma dança, refletindo a sua ligação com o ritmo e a cultura brasileira.
  • Rosto: Oval e harmonioso, cheio de vida, com maçãs do rosto ligeiramente salientes e lábios carnudos e bem desenhados, de um vermelho natural, muitas vezes curvados formando um sorriso provocante que é, ao mesmo tempo, desafiador e convidativo.
  • Vestuário: Geralmente vestida de forma vibrante e atraente, com roupas coloridas, que refletem sua personalidade alegre e sua ligação com a cultura brasileira. Gosta de usar vestidos leves e coloridos/floridos, que destacam as suas formas e a sua naturalidade. Pequenos adornos, como brincos de argola ou pulseiras de contas, completam o visual, adicionando toques de brilho à sua aparência.
    Em suma, Rita Baiana é a personificação da vivacidade tropical, uma mulher cuja presença ilumina qualquer ambiente. Por outro lado, ela não se preocupa em seguir padrões de beleza impostos, daí que a sua beleza venha da sua autenticidade e da paixão que coloca em tudo o que faz. A presença da personagem  é magnética e envolvente e o seu jeito desinibido e alegre faz dela o centro das atenções, seja ao dançar numa roda de samba ou ao encantar com sua conversa espirituosa. É uma mulher cuja beleza transcende o físico, enraizada na sua energia, liberdade e paixão pela vida.

II. Caracterização social

  1. Origem e cultura: Rita Baiana é uma mulher de origem mestiça, representando o sincretismo cultural brasileiro, especialmente as influências afro-brasileiras. Ela incorpora uma sensualidade e uma alegria de viver que estão profundamente conectadas à cultura popular e ao ambiente tropical do Rio de Janeiro da época. A sua ligação com a música, especialmente o samba e a dança, destaca a importância da cultura afro-brasileira como elemento de resistência e identidade no contexto social do século XIX.
  2. Papel na comunidade do cortiço: Rita é uma figura central no cortiço. A sua casa é frequentemente palco de festas, onde ela canta, dança e atrai as atenções com o seu carisma. Esses momentos de celebração ajudam a solidificar o sentimento de comunidade entre os moradores, ao mesmo tempo que revelam as tensões sociais e económicas presentes no cortiço. Rita simboliza a liberdade e a expressão, mas também é alvo de fofocas e críticas, refletindo o moralismo da sociedade da época.
  3. Relações interpessoais: Rita é uma mulher independente e assertiva, características que fazem com que se destaque num ambiente marcado por relações patriarcais. A relação que mantém com Firmo é caracterizada pela paixão e por conflitos, representando um tipo de ligação intensa e volátil comum entre as camadas populares. Ela também exerce uma influência magnética sobre outros homens no cortiço, como Jerónimo, despertando desejos que acabam por alterar a dinâmica entre as personagens.
  4. Representação social: Enquanto personagem, Baiana é um símbolo da miscigenação brasileira e da tensão entre as diferentes classes e culturas. Ela desafia padrões de comportamento feminino impostos pela sociedade da época ao viver com espontaneidade e autonomia. No entanto, a sua sexualidade e comportamento livre tornam-na alvo de comentários e julgamentos, revelando os preconceitos e a hipocrisia presentes no ambiente do cortiço.
  5. Conexão com o espaço do cortiço: Rita é uma extensão do cortiço e vice-versa. O empreendimento é um espaço de convivência intensa, repleto de conflitos e solidariedade, e Rita reflete essas características com a sua personalidade vibrante e contraditória. Ela tanto é uma mediadora social, conectando pessoas através da festa e da música, quanto um elemento de discórdia, expondo as tensões latentes entre as personagens.
  6. Crítica Social: A figura de Rita Baiana também serve como instrumento de crítica social de Aluísio Azevedo. Através dela, o autor expõe as desigualdades e os preconceitos estruturais da sociedade brasileira do século XIX, ao mesmo tempo que celebra a força e a resistência cultural das classes populares.

                Em suma, Rita Baiana, no plano social, é muito mais do que uma personagem; ela é um microcosmo do Brasil da época. Através da sua alegria, sensualidade e autenticidade, representa a riqueza e a complexidade cultural do país, mas também evidencia as desigualdades e os conflitos sociais que definem o ambiente em que vive.

 

III: Retrato social

 

  1. Espontaneidade e alegria de viver: Rita Baiana é uma mulher espontânea, que vive o momento presente com intensidade. A sua personalidade é marcada por uma alegria vibrante, que contagia todos ao seu redor. Essa atitude despreocupada reflete uma determinada visão de mundo: ela não se prende às convenções sociais ou morais que a maioria dos personagens tenta seguir.
  2. Paixão e intensidade: Uma característica marcante de Rita é a sua natureza apaixonada. Ela vive as emoções de maneira intensa, seja na alegria das festas que organiza, seja nos conflitos que marcam a relação com Firmo. Essa intensidade torna-a magnética, mas também a coloca em situações de tensão e confronto.
  3. Independência e autonomia: Rita é independente no que respeita à sua maneira de pensar e agir. Embora viva num ambiente fortemente patriarcal, não se sujeita às expectativas de submissão ou decoro que a sociedade da época espera das mulheres. Ela age de acordo com os seus desejos e necessidades, mesmo que isso vá contra as normas.
  4. Manipulação e sedução: Com uma personalidade magnética, Rita tem consciência do impacto que exerce sobre os outros, especialmente os homens. Embora isso não a defina como essencialmente manipuladora, sabe usar o seu charme e sensualidade para conseguir o que deseja ou para afirmar a sua posição num espaço onde as mulheres são frequentemente subjugadas.
  5. Impulsividade e falta de reflexão: Se é verdade que a paixão a define, Rita pode ser impulsiva e pouco reflexiva nas suas ações. Essa impulsividade, muitas vezes, coloca-a em situações de conflito e perigo, como a sua relação tumultuada com Firmo e a capacidade de gerar rivalidades entre outras personagens.

Características Morais

  1. Liberdade moral: Rita Baiana não se apega aos padrões morais rígidos da sociedade da época. Para ela, a vida deve ser vivida com liberdade, alegria e prazer, daí que desafie as normas conservadoras, representando uma visão do mundo mais flexível e moderna.
  2. Fidelidade às próprias emoções: Ela age de forma autêntica e não tenta esconder ou reprimir os sentimentos. Se ama, ama intensamente; se odeia, expressa o seu descontentamento sem hesitação. Essa autenticidade pode ser vista como uma virtude moral, mas também a expõe a críticas e conflitos.
  3. Ambiguidade moral: Rita não é um modelo de virtude segundo os padrões tradicionais. Ela provoca rivalidades, não hesita em usar a sua influência e poder de sedução para atingir objetivos, e, em muitos momentos, parece indiferente às consequências dos seus atos. Essa ambiguidade moral torna-a uma personagem realista e humana, cheia de contradições.
  4. Empatia e solidariedade: Apesar da sua postura independente, Rita demonstra empatia e solidariedade com os outros moradores do cortiço, especialmente nas festas e momentos de celebração. É uma figura que une as pessoas, criando laços de convivência num espaço marcado por tensões sociais e económicas.
  5. Desafiante de convenções: Rita é, moralmente, uma rebelde. Enquanto tal, desafia as normas de género e comportamento feminino da época, recusando submeter-se à passividade ou ao silêncio esperado das mulheres, o que lhe vale a admiração de uns e a crítica de outros, acabando por se tornar uma espécie de espelho dos dilemas sociais da época.

                Em suma, Rita Baiana é, ao mesmo tempo, um símbolo de liberdade e um retrato dos conflitos do seu tempo. A sua alegria contrasta com os momentos de tensão e agressividade que pautam as suas relações, especialmente com Firmo. A sua independência é admirável, mas a impulsividade coloca-a em situações problemáticas. A liberdade moral desafia padrões, mas também a torna alvo de julgamento por parte dos outros.

                Rita Baiana é uma personagem psicologicamente rica e moralmente ambígua. Ela representa a força da liberdade e da autenticidade num mundo opressor, especialmente para as mulheres, mas também os desafios e conflitos que acompanham quem vive à margem das expectativas sociais. Aluísio Azevedo constrói-a como uma mulher de paixões intensas e de espírito indomável, cujo retrato psicológico e moral a torna uma das personagens mais marcantes de O Cortiço.

 

IV. Relação com as outras personagens

 

1. Rita Baiana e Firmo

                A relação entre Rita Baiana e Firmo é marcada por uma paixão intensa e conflituosa. Firmo, um capoeirista de espírito violento e possessivo, sente-se ameaçado pela independência e sensualidade de Rita. Apesar disso, ambos compartilham momentos de cumplicidade e desejo ardente, vivendo uma relação carregada de química, mas também de explosões emocionais.

  • Dinâmica de poder: Firmo tenta exercer controle sobre Rita, mas ela constantemente desafia a sua autoridade, o que gera conflitos frequentes, refletindo uma luta entre o machismo e a independência feminina.
  • Paixão destrutiva: Apesar do magnetismo que existe entre os dois, a relação é tumultuosa, pautada por momentos de ciúme, violência e reconciliação, simbolizando a instabilidade das relações amorosas no cortiço.

2. Rita Baiana e Jerónimo

                Jerónimo, um português trabalhador e inicialmente moralista, é profundamente afetado pela presença de Rita Baiana. Ele, que representava os valores europeus de disciplina e recato, é atraído pela sua energia vibrante e pela sensualidade tropical, o que o leva a uma transformação radical.

  • Símbolo de transformação: Rita desperta em Jerónimo uma paixão arrebatadora que desafia os seus valores iniciais, levando-o a abandonar a esposa, Piedade, e a aproximar-se do estilo de vida do cortiço.
  • Conflito gerado: O interesse de Jerónimo por Rita exacerba a rivalidade com Firmo, culminando em tragédias que expõem o lado violento e instintivo das personagens.
  • Impacto psicológico: A relação evidencia o poder de Rita como uma força que transcende padrões culturais e morais, enquanto também reflete o impacto da cultura brasileira sobre os imigrantes.

3. Rita Baiana e Piedade

                A relação entre Rita Baiana e Piedade é marcada pela tensão e contraste. Piedade, a esposa de Jerónimo, representa os valores tradicionais da moralidade europeia e o papel submisso da mulher na sociedade patriarcal.

  • Contraste cultural: Enquanto Rita é livre e desinibida, Piedade é recatada e emocionalmente dependente de Jerónimo. Esse contraste acentua o impacto da relação entre ambos e a crise de identidade de Piedade.
  • Rivalidade implícita: Apesar de não haver confrontos diretos entre as duas, a presença de Rita destrói a estabilidade emocional e a vida conjugal de Piedade, tornando-a uma rival indireta.

4. Rita Baiana e os moradores do cortiço

                Rita Baiana exerce uma influência coletiva sobre os moradores do cortiço: é um ponto de união, mas também de conflito, dependendo das circunstâncias.

  • Figura central nas festas: Rita organiza festas animadas e danças que promovem a integração entre os moradores, criando momentos de alegria e descontração no ambiente tenso do cortiço.
  • Objeto de admiração e mexericos: A sua sensualidade e independência fazem dela uma figura admirada por uns e criticada por outros, especialmente pelas mulheres mais conservadoras, que veem no seu comportamento uma ameaça aos valores tradicionais.
  • Catalisadora de tensões: A sua presença amplifica os conflitos entre personagens masculinas, como Jerónimo e Firmo, e entre as mulheres, que a invejam ou reprovam sua conduta.

5. Rita Baiana e o cortiço (como espaço coletivo)

                Rita Baiana não se relaciona apenas com os indivíduos, mas também com o próprio ambiente do cortiço, sendo uma representação viva da sua essência.

  • Espelho do cortiço: Assim como o cortiço é um espaço de miscigenação cultural, contrastes e conflitos, Rita também encarna essas características. A sua vivacidade, contradições e liberdade refletem a dinâmica caótica e vibrante do lugar.
  • Contribuição para a identidade do espaço: Rita transforma o cortiço num ambiente de celebração cultural, com festas e música, mas também num espaço de tensões, reforçando a narrativa de Aluísio Azevedo sobre as forças sociais em jogo naquele microcosmo.

 

                As relações de Rita Baiana com as outras personagens de O Cortiço não são apenas interações individuais, mas também representações simbólicas de questões sociais, culturais e psicológicas. A sua sensualidade e liberdade de espírito provocam admiração, desejo, inveja e conflito, desestabilizando estruturas tradicionais e expondo as fragilidades das relações humanas. Rita é, ao mesmo tempo, um catalisador de mudança e uma figura de resistência contra as normas impostas, fazendo dela um dos principais motores da trama e uma personagem inesquecível.

 

V. Representatividade social

 

1. Representatividade Cultural

                Rita Baiana é a personificação da cultura afro-brasileira e tropical, contrastando diretamente com os valores europeus representados por personagens como Jerónimo e Piedade.

  • Símbolo da miscigenação: A origem mestiça reflete a realidade do Brasil do século XIX, um país marcado pela convivência (e conflitos) entre diferentes «raças» e culturas.
  • Ligação à cultura popular: Rita está profundamente ligada à música, dança e festas, elementos que representam a riqueza e vitalidade da cultura brasileira, especialmente as influências africanas.
  • Contraste com o estrangeiro: A energia vibrante e a sensualidade contrapõem-se à rigidez e à contenção dos valores europeus, sendo um agente de transformação, como, por exemplo, na mudança de Jerónimo.

2. Representatividade Feminina

                Rita Baiana é uma mulher que desafia os padrões de comportamento feminino impostos pela sociedade patriarcal do século XIX.

  • Mulher independente: Numa época em que se esperava que as mulheres fossem submissas e moralmente irrepreensíveis, Rita age de acordo com os próprios desejos e emoções. Ela não é definida por um homem ou pelo papel numa família.
  • Figura de resistência: Rita desafia o moralismo conservador dos moradores do cortiço, recusando submeter-se às críticas ou aos julgamentos que recebe por causa do seu comportamento livre.
  • Contradição de papéis femininos: Enquanto mulheres como Piedade representam a submissão e a fragilidade emocional, Rita é o oposto: forte, autêntica e disposta a viver conforme as próprias regras.

3. Representatividade Social

                Rita Baiana é uma representação vívida da classe trabalhadora e das camadas populares, inserida no contexto do cortiço como um microcosmo da sociedade brasileira.

  • Figura comunitária: Rita é central na vida social do cortiço, organizando festas e unindo os moradores em momentos de celebração.
  • Crítica social: A sua figura ilustra as tensões e hipocrisias da sociedade da época. Apesar de ser admirada pela beleza e alegria, também é alvo de preconceitos e julgamentos morais, evidenciando as contradições da convivência no cortiço.
  • Símbolo da luta de classes: Enquanto outras personagens, como João Romão, aspiram a subir na escala social, Rita aceita a sua condição, vivendo plenamente dentro da realidade do cortiço, mas sem ser submissa a ela.

4. Representatividade no contexto do Naturalismo

                Dentro da estética naturalista que permeia O Cortiço, Rita Baiana é uma representação do instinto, do desejo e da força vital.

  • Exposição dos instintos humanos: Age impulsivamente, seguindo as suas emoções e desejos, alinhando-se com a visão naturalista de que o ser humano é regido por forças instintivas e biológicas.
  • Personificação do meio: O cortiço é um espaço de exuberância e caos, e Rita reflete essas características, sendo tanto um produto quanto um símbolo do ambiente em que vive.
  • Relação com o Determinismo: Através de Rita, Aluísio Azevedo ilustra o modo como o meio social e cultural influencia o comportamento humano, mostrando que as suas ações são moldadas pelas condições de vida no cortiço.

5. Representatividade como agente de transformação

                Rita Baiana desempenha um papel transformador no romance, especialmente em relação às personagens masculinas, como, por exemplo, Jerónimo.

  • Disrupção cultural: A sua presença provoca uma rutura nos valores tradicionais europeus representados por Jerónimo, levando-o a abandonar a sua postura rígida e a entregar-se à paixão e ao estilo de vida do cortiço.
  • Catalisadora de conflitos: Rita é o centro de tensões emocionais e sociais, como a rivalidade entre Jerónimo e Firmo, o que move a trama e expõe os dilemas morais e sociais das personagens.

6. Representatividade no contexto do Brasil oitocentista

                Rita Baiana, enquanto figura mestiça e representante da cultura popular, é um reflexo das contradições do Brasil do século XIX.

  • Símbolo da brasilidade: Ela encapsula os elementos que definem a identidade nacional – a miscigenação, a alegria, a sensualidade, mas também a precariedade e a marginalização.
  • Crítica às desigualdades: A sua posição no cortiço e a forma como é tratada refletem as desigualdades raciais, de género e de classe que estruturavam (e ainda estruturam) a sociedade brasileira.

 

                Em suma, Rita Baiana transcende a sua condição de personagem para se tornar um símbolo dentro da obra. Ela representa o Brasil mestiço, vibrante e contraditório, mas também as tensões sociais e culturais da época. Como mulher, desafia os padrões impostos, enquanto membro da classe popular, expõe as desigualdades, e, como figura cultural, celebra a riqueza da identidade brasileira. Aluísio Azevedo usa Rita para ilustrar as complexidades da vida no cortiço, tornando-a uma peça central na crítica social e no retrato coletivo do romance.

Caracterização de Miranda

    Miranda, uma das personagens de O Cortiço, é o típico comerciante português cuja descrição física reflete o seu estatuto social, caráter e contexto histórico. Embora Aluísio Azevedo não aprofunde o seu retrato físico, os traços destacados ao longo do romance ajudam a compor a imagem de um homem representativo da burguesia em ascensão na época.

I. Traços Físicos:
 
  1. Estatura Mediana: Miranda é descrito como um homem de porte médio, sem traços que o distingam no que diz respeito à altura ou imponência. A sua presença física está mais ligada à seriedade do que à força ou à beleza.
  2. Fisionomia séria e controlada: Ele apresenta um semblante grave, com feições alinhadas com a sua personalidade rígida e metódica. Aa expressão facial tende a ser severa, indicando preocupação constante com as aparências e o status social.
  3. Traços europeus: Como imigrante português, Miranda possui características típicas da etnia lusitana, como, por exemplo, pele clara e traços que não são descritos como belos, mas sim comuns e adequados ao seu estatuto de comerciante.
  4. Cabelo bem tratado: Embora o romance não se detenha na descrição específica do cabelo, pode deduzir-se que tem uma aparência limpa e cuidada, em consonância com a preocupação com a imagem pública.
  5. Postura rígida e formal: O seu comportamento e a sua postura refletem um homem que valoriza o autocontrole e a disciplina e que tende a exibir uma postura ereta, denotando seriedade e respeito.
  6. Vestuário elegante: Miranda veste-se de forma sóbria e alinhada, utilizando roupas que simbolizam a sua posição social como comerciante burguês, mas sem ostentação. Essa escolha reflete a tentativa de ser reconhecido como um homem respeitável e bem-sucedido.
  7. Físico não atlético: O romance não contém grandes referências a atributos físicos que sugiram vigor ou força, o que indicia que Miranda não é um homem de trabalho físico, mas, sim, um indivíduo dedicado à vida comercial e ao mundo das relações sociais.

                Em suma, a aparência da personagem está intimamente ligada à sua busca por respeitabilidade e ascensão social. Ele é o retrato do português típico da época, que migra para o Brasil em busca de oportunidades e constrói a sua identidade em torno do trabalho e da moral burguesa. Esses traços físicos, embora simples, servem para reforçar a sua personalidade e o contraste com outras personagens do romance, como João Romão, mais brutal e ambicioso. Assim, a sua figura física não é chamativa, mas funcional, coerente com a mensagem naturalista da narrativa, que utiliza o físico das personagens como extensão das suas condições sociais e psicológicas.

 
II. Retrato social

1. Classe social e ocupação profissional:
  • Miranda é um comerciante português bem-sucedido, representante da pequena burguesia. Ele é proprietário de um armazém, o que lhe garante uma posição económica estável e distingue-o socialmente no bairro onde vive.
  • A atividade profissional reflete a figura do imigrante português que enriquece por meio do comércio, um estereótipo frequente na literatura da época.
2. Aspiração à ascensão social:
  • Um dos traços mais marcantes de Miranda é a constante preocupação que manifesta em manter e elevar o seu status social. Assim, procura afastar-se da rusticidade e vulgaridade que percebe nos vizinhos, como João Romão, e almeja ser reconhecido como um homem respeitável e distinto.
  • Para reforçar essa imagem, Miranda valoriza uma vida organizada e pautada pelas normas da sociedade burguesa.
  • No entanto, embora se situe, socialmente, num patamar superior ao dos operários e moradores do cortiço, Miranda não ocupa um lugar elevado na hierarquia social. Ele sente-se desconfortável ao perceber que, mesmo sendo proprietário e comerciante, a sua posição é precária em comparação com os verdadeiros ricos ou com os aristocratas que tenta imitar.
3. Casamento como ferramenta de ascensão social:
  • A relação com Estela, sua esposa, é uma extensão da sua estratégia social. De facto, casou-se com ela por interesse, visando consolidar a sua respeitabilidade, mesmo que o casamento seja infeliz. Estela despreza-o e é infiel, o que reforça o contraste entre a aparência de ordem que Miranda tenta projetar e a realidade do fracasso pessoal.
4. Relação com outras personagens:
  • Miranda tenta diferenciar-se de João Romão, o ambicioso e grosseiro proprietário do cortiço, que representa o oposto da moral e da ordem que procura. Contudo, o contraste entre os dois também evidencia a hipocrisia e as limitações de Miranda, que, apesar da sua pretensão, é prisioneiro da própria mediocridade.
  • A interação com moradores do cortiço e com figuras de status inferior demonstra uma atitude condescendente e a sua tentativa de distanciar-se da vulgaridade.

III. Caracterização psicológico-moral

  1. Rigidez e Formalidade:
    • Miranda é uma pessoa metódica e rígida nas suas ações e decisões, o que se espelha na preocupação excessiva com as normas e os padrões sociais. Ele não suporta a desordem, seja no trabalho ou na vida pessoal, e a rigidez reflete o desejo de controlar a sua realidade.
  2. Insegurança Social:
    • Apesar de seu status enquanto comerciante bem-sucedido, Miranda sente-se constantemente ameaçado pela posição intermediária que ocupa na hierarquia social. Ele teme cair no mesmo nível dos trabalhadores e vizinhos mais humildes e nutre uma ansiedade constante em reafirmar sua superioridade.
  3. Aparência versus realidade:
    • A sua personalidade é marcada por um grande esforço em aparentar decoro e respeitabilidade. No entanto, por trás dessa fachada, mostra-se um homem infeliz, consciente da superficialidade das suas conquistas e da hipocrisia que caracteriza a sua existência, especialmente no que respeita ao casamento.
  4. Passividade e conformismo:
    • Miranda tem uma personalidade passiva, especialmente no âmbito pessoal. Apesar de ser humilhado por Estela, sua esposa, aceita a situação e evita confrontá-la para não comprometer a imagem pública. Essa passividade reflete a incapacidade de enfrentar conflitos emocionais de forma direta.
  5. Orgulho ferido:
    • Internamente, Miranda sofre com o desprezo da esposa e com a consciência de impotência diante de João Romão, cuja ambição e agressividade desafiam a sua postura formal. Ele sente-se diminuído por não ter a mesma determinação brutal para conquistar mais poder e riqueza.
  6. Respeito pelas regras:
    • Psicologicamente, Miranda é moldado por um profundo respeito pelas normas sociais e morais. Ele acredita que o cumprimento das regras é essencial para preservar a sua posição, mesmo que isso implique a repressão de desejos ou emoções.
  1. Moralidade aparente:
    • Miranda tenta projetar uma imagem de homem moralmente correto e íntegro. Defende a ordem, a disciplina e as boas maneiras. Contudo, a sua moralidade é superficial, mais voltada para agradar à sociedade do que para refletir uma verdadeira virtude interna.
  2. Hipocrisia:
    • Moralmente, Miranda é um hipócrita. Embora exija decoro e comportamento exemplar dos outros, ignora os problemas éticos que se manifestam na própria casa, como a infidelidade da esposa. A sua complacência revela a importância maior que dá às aparências do que à ética verdadeira.
  3. Egoísmo social:
    • Apesar de aparentar ser generoso ou justo, as ações são frequentemente motivadas por interesses pessoais. Evita envolver-se em questões que não tragam benefícios diretos para a sua imagem ou status, demonstrando uma visão moral utilitarista.
  4. Falta de coragem moral:
    • Miranda não demonstra força para confrontar situações que coloquem a sua integridade à prova. A aceitação passiva da infelicidade conjugal e a incapacidade para se impor perante João Romão revelam uma fraqueza moral significativa.
  5. Conservadorismo moral:
    • Ele é profundamente conservador, apegado a valores tradicionais que sustentam a estrutura social e hierárquica. Essa moralidade rígida e antiquada impede-o de se adaptar a mudanças ou de lidar com situações fora da sua zona de conforto.
  6.  Mentalidade conservadora e preocupação com as aparências:
o    Miranda é conservador e rígido no que concerne à sua visão do mundo, refletindo os valores tradicionais da burguesia portuguesa. Por isso, valoriza a moralidade pública, mas a sua vida privada, marcada pela infelicidade conjugal, revela um contraste entre a fachada que procura manter e a realidade.
o    Está constantemente preocupado com as aparências, evitando escândalos e procurando manter uma imagem de decência e ordem.
 
IV. Relação com outras personagens
 
Relação com João Romão:
  1. Rivalidade Velada:
    • João Romão é o proprietário do cortiço, um homem ambicioso e brutal que almeja ascender socialmente a qualquer custo. Miranda, embora financeiramente estável, sente-se desconfortável com a ascensão de Romão, vendo-o como uma ameaça à ordem e aos valores que acredita defender.
    • A relação entre os dois é marcada pelo contraste entre a astúcia brutal de João e a formalidade conservadora de Miranda. Apesar de desprezar a sua grosseria, Miranda reconhece e teme a sua capacidade de prosperar e acumular riqueza.
  2. Superioridade Social:
    • Miranda tenta colocar-se como superior a João Romão, enfatizando a sua educação e modos refinados. No entanto, o pragmatismo e a determinação de João muitas vezes fazem Miranda sentir-se inferior e frustrado.

Relação com Estela (a esposa):
  1. Casamento de conveniência:
    • Miranda casou-se com Estela não por amor, mas por interesse social, pois esperava que o matrimónio consolidasse a sua posição como um homem respeitável. Neste cenário, não é de estranhar que a relação seja marcada pela frieza e infelicidade.
  2. Desprezo e Infidelidade:
    • Estela despreza Miranda, considerando-o passivo e medíocre. Trai-o abertamente, demonstrando a sua insatisfação com o casamento. Apesar disso, ele opta por ignorar as infidelidades para preservar a imagem pública.
  3. Passividade de Miranda:
    • Como se depreende do que já foi dito, evita confrontar Estela ou resolver os problemas conjugais, preferindo manter as aparências. Assim, a relação entre ambos reflete a hipocrisia e a falta de coragem moral de Miranda, que prioriza a reputação acima da felicidade pessoal.

Relação com os moradores do cortiço:
  1. Distanciamento social:
    • Miranda tenta manter distância dos moradores do cortiço, que representam a classe trabalhadora e a "vulgaridade" que ele despreza. Ele vê essas pessoas como inferiores, um retrato de tudo a que não deseja estar associado.
  2. Apatia e desprezo:
    • Por outro lado, não demonstra interesse genuíno pelos problemas dos habitantes do cortiço e interage com eles apenas quando necessário, reforçando a barreira social que os separa socialmente.

Relação com Firmo e Léonie:
  1. Indiferença e Condescendência:
    • Miranda, embora não se envolva diretamente com essas personagens, considera figuras como Firmo (um capoeirista) e Léonie (uma prostituta) como representações da decadência e vulgaridade que procura evitar.

Relação com outros burgueses:
  1. Tentativa de aceitação:
    • Miranda procura ser aceite pelos membros da alta burguesia e aristocracia, tentando imitar os seus modos e valores. No entanto, frequentemente é olhado como um aspirante sem o refinamento ou a origem necessária para ser totalmente integrado.
  2. Falta de identificação:
    • Apesar das suas aspirações, Miranda não consegue sentir-se confortável entre as classes superiores, demonstrando a sua posição incómoda entre o cortiço e a elite.

V. Representatividade social

1. Representação da burguesia em ascensão:
  • Miranda é o arquétipo do pequeno burguês, típico do Brasil do século XIX, que procura firmar-se como respeitável e distinto, mas que, ao mesmo tempo, enfrenta as limitações impostas pela sua origem humilde e pela sua posição intermediária na hierarquia social.
  • Ele reflete os valores da burguesia emergente: o apego às aparências, o conservadorismo moral e o desejo de se distanciar das classes populares enquanto almeja ser aceite pela elite.

2. Contraponto à ascensão bruta de João Romão:
  • Miranda é o oposto de João Romão, cuja ascensão está baseada na ambição desmedida, no trabalho incansável e na falta de escrúpulos.
    • Enquanto Miranda tenta preservar uma imagem de decoro e civilidade, João Romão é movido por pragmatismo e brutalidade.
    • Essa oposição ilustra duas faces da ascensão social no Brasil do período: a tentativa de manter uma moralidade (ainda que hipócrita) e a conquista sem limites éticos.

3. Crítica à hipocrisia social:
  • Miranda simboliza a hipocrisia da sociedade burguesa, que valoriza mais as aparências do que a verdadeira moralidade:
    • Ele mantém um casamento de conveniência com Estela, ignorando a sua infidelidade para não comprometer a imagem pública.
    • Finge desprezar João Romão, mas teme a sua capacidade de o superar economicamente.
    • Vive uma vida de aparente ordem, mas internamente é inseguro, infeliz e cobarde.

4. Mediação entre classes:
  • Miranda situa-se entre o cortiço (classe trabalhadora) e a aristocracia (classe alta), simbolizando uma classe intermediária que aspira à nobreza, mas teme ser confundida com os pobres.
    • Ele tenta distanciar-se dos moradores do cortiço, mas, ao mesmo tempo, a sua origem e posição tornam-no vulnerável às críticas da elite.

5. Função crítica no romance:
  • Através da figura de Miranda, Aluísio Azevedo critica:
    • A superficialidade das aspirações burguesas: o desejo de Miranda por respeitabilidade não o torna mais feliz ou virtuoso, apenas reforça a sua hipocrisia.
    • A ineficácia da rigidez moral: a tentativa de se alinhar com os valores da alta sociedade fracassa, evidenciando a fragilidade da sua posição.
    • A ilusão da ascensão social pacífica: Enquanto João Romão usa métodos brutais para subir na vida, Miranda, que adota uma abordagem passiva, é engolido pelas circunstâncias e limitado pelas suas inseguranças.

6. Representatividade no contexto do Naturalismo:
  • No contexto do Naturalismo, Miranda é uma figura que ilustra como o meio social e as condições históricas moldam o indivíduo. Ele é tanto produto quanto prisioneiro da sua classe social, incapaz de transcender os limites impostos pela hierarquia e pelos valores do seu tempo.
  • A sua posição social e as suas ações revelam como as forças externas (como a economia e a moralidade burguesa) influenciam comportamentos e relações.

Conclusão:

                Miranda representa a mediocridade e a fragilidade da burguesia média em O Cortiço. A sua existência é marcada pela busca incessante por respeitabilidade e por uma rigidez que não consegue sustentar internamente. Ele é uma peça-chave para a crítica social de Aluísio Azevedo, expondo as contradições e os conflitos de uma classe que tenta ascender sem ter a força de caráter ou os recursos da elite, e que teme profundamente ser confundida com os trabalhadores.

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