Esta
cantiga, da autoria de Fernão Soares de Quinhones, apresenta a curiosidade de
começar pelo refrão, que depois repete, como é habitual, no final de cada uma
das cinco sextilhas.
No que
diz respeito ao seu tema, o professor Rodrigues Lapa propôs o amor, desde logo
pelo facto de a palavra ocorrer vinte e sete veze, incluindo a forma
paragógica, todavia Filgueira Valverde vê no vocábulo «amor» uma “palavra
cuberta” (isto é, um termo cujo verdadeiro sentido está oculto ou disfarçado
por, por exemplo, um duplo sentido) com o significado de “vinho”.
O poema
abre com a referência ao amor de Pero Cantone, uma figura de difícil
identificação, embora se suponha que se possa tratar do irmão de Rui Canton,
que surge numa cantiga incompleta de João Airas de Santiago (“Rui Martiiz, pois
que este assi”), e que ambos fossem cavaleiros de origem leonesa. O segundo verso
reitera o nome «amor», qualificando-o como “tam saboroso” e “sem tapone”. Ora,
embora aplicável noutros contextos, o adjetivo «saboroso» pertence ao campo
semântico alimentar, pelo que suporta a tese do vinho. Por outro lado, o vocábulo
«tapone» significava tampão, rolha, aparecendo numa das Cantigas de Santa
Maria, exatamente com o sentido de rolha de uma pipa de vinho. Desta forma,
optando por tal linha de leitura, o refrão inicial sugere que o amor de Pero
Cantone é o vinho, que é saboroso e derramado sem reservas.
Os
versos 3 e 4 parecem confirmar a tese do vinho, pois, além de o qualificarem
como «viçoso» e «são» (dupla adjetivação), recordam a circunstância de os
vinhos medievais não se conservarem facilmente, havendo alguns que rapidamente
se tornavam impróprios para consumo. Yves Renouard especifica que começavam a
azedar ao fim de seis meses, tornando-se, a partir da primavera, cada vez menos
bebíveis, até que, em maio, deixava de haver vinhos disponíveis. Um documento
de 1391, publicado por Humberto Baquero Moreno, confirma esta informação,
quando refere, a propósito dos vinhos vermelhos provenientes de cepas coimbrãs,
“que se nom teem despois que ssom colheitas que 3 meses”. Nos dois versos
seguintes, o trovador alude a duas personagens de difícil identificação. O
primeiro é Chorrichão será provavelmente um dos membros da linhagem galega dos
Churrichãos, talvez Gonçalo Fernandes Churrichão, que deposou Sancha Anes de
Montenegro, de quem teve um filho, Rica Fernandes, a qual lhe deu dois filhos,
e Sancha Fernandes de Orzelhon, com quem gerou doze filhos. É possível que a
referência da cantiga esteja associada, não só a estes sucessivos casamentos,
mas também a um episódio relatado pelo Nobiliário, o rapto de Sancha Rodrigues
de Segamardi, quando esta teria seis anos de idade, com quem viveu até que, por
pressão do arcebispo de Santiago, João Airas, parente da ofendida, e da
restante linhagem, foi obrigado a casá-la com o seu filho primogénito, Fernão
Gonçalves, o Farroupim. Seja ou não o Churrichão referido, a referência que lhe
é feita na cantiga é obviamente uma alusão satírica. O segundo é Martim
Gonçalves de Orzelho, também este de difícil identificação. Orzelhon é uma
localidade galega pertencente à comarca de Ourense, mas era igualmente uma
praça castelhana fortificada, próxima da fronteira entre os reinos de Leão e
Castela, pelo que Martim Gonçalves seria provavelmente um cavaleiro desta
última localidade. No entanto, a referência, no verso anterior, ao Churrichão
parece indicar que se trataria de um cavaleiro galego. Convém também não
esquecer que a terceira mulher desse mesmo Churrichão pertencia a esta mesma
linhagem de Orzelhon, pelo que é possível que Martim Gonçalves fosse seu
parente. Uma hipotética leitura aponta para que os dois indivíduos referidos
constituam emblemas do amor forte e fecundo, em oposição ao de Pero Cantone.
A
segunda estrofe qualifica o amor de Pero Cantone como “tam delgado e tam frio”
(dupla adjetivação no grau superlativo absoluto analítico), intensificando as
suas qualidades. O termo «delgado» aparece na cantiga de Afonso X “Joan
Rodríguiz foi osmar a Balteira”, aplicado ao órgão sexual masculino: “e, por
que é grossa, non vos seja mal, / ca delgada pera gata ren non val”. Nesta
cantiga, se entendido com o significado de «delicado», poderá constituir uma
referência equívoca ao vinho cortado com água. Por sua vez, o adjetivo «frio»
surge também em cantigas de Afonso X, quer em contexto sexual, quer apresentado
como uma das razões admissíveis legalmente para o fim do matrimónio.
O verso
10 faz-nos retornar ao campo do vinho (“mais nom creo que dure até o Estio”),
confirmando que os vinhos medievais não iam além do meio da primavera, pois
deixavam de ser bebíveis a partir do mês de maio, daí serem deitados fora por
estarem estragados: “ca atal era outr’amor de meu tio, / que se botou a pouca
de sazone”. Rodrigues Lapa atribui à forma verbal “botou” o sentido de “deitar
fora”, no que é apoiado pelo Tentative Dictionary of Medieval Spanish e
pelos capítulos especiais de Torres Novas das Cortes de Elvas de 1361,que
fornece os equivalentes “embotar” e “debilitar”, a partir da Vida de Santo
Domingo de Silos, de Berceo, e o artigo 4.º dos capítulos referidos alude a
uns vinhos que “se azedam e botam per tal guisa que nom ham deles prol.” Na
esteira da professora Elsa Gonçalves, a locução “a pouca de sazone” equivaleria
a “o vinho que se estragou em pouco tempo”.
A
terceira estrofe abre com um verso pontuado por novo adjetivo: “pontoso”.
Segundo o professor Rodrigues Lapa, esta palavra significaria “fino, agudo,
delicado”. De acordo com o Grande Dicionário de Morais, “pontoso”
designa o indivíduo “escrupuloso em pontos de honra; pundonoroso, brioso”. José
Pedro Machado faz derivar este qualificativo de “ponto” e atesta-o pela
primeira vez na écloga Encantamento, de Sá de Miranda, mas esta
observação é contrariada por esta cantiga de Fernão de Quinhones, a única da
lítica galego-portuguesa onde o termo figura. Além disso, o trovador aconselha
a provar esse «amor», pois fará chorar (pela sua elevada qualidade ou por estar
impróprio para consumo?)m e assemelhar-se-á ao “amor de Dom Palaio de Gordone”,
uma nova personagem de difícil identificação. Pelo nome, poderemos supor que
seria talvez leonês, de uma linhagem sediada em Gordón (possivelmente a atual
localidade de Gordoncillo, a sul da cidade de Leão). Segundo Carlos Alvar, um
D. Paio de Gordón aparece como tenente do castelo de Corel (atual Corella, em
Navarra) em 1199. Todavia, esta cronologia parece demasiado recuada em relação
à data provável da composição da cantiga.
O verso
22 alude à conveniência de o vinho de Pero Cantone estagiar, mais do que terá
acontecido na realidade, antes de proceder à sua venda e consumo. É o que se
depreende dos versos 22 a 24, que aludem ao soterramento, que pode significar
“em repouso” ou, mais particularmente, “conservação por baixo da terra”. O
estágio subterrâneo é característico de alguns vinhos, como, por exemplo, o de
Boticas, por isso sugestivamente chamado “vinho dos mortos”. Apenas o
soterramento pelo período de um ano poderia permitir que alguém lucrasse com
este vinho e daí a alusão à “boa rençone” ou “boa vençone” (v. 24). “Vençone”
queria dizer “venda” e provém de “venditione”. Esta prática tradicional de
enterrar o vinho para melhorar a sua qualidade tem a sua origem associada aos
anos das Invasões Francesas, época em que os produtores de vinho transmontano,
para o esconde dos soldados sequiosos, enterravam-no e, com o uso repetido do
método engendrado em desespero de causa, acabaram por constatar que sepultar a
bebida por tempo suficiente tinha como resultado a melhoria da sua qualidade.
Por isso, continuaram a dar-lhe o mesmo tratamento e batizaram-no de vinho dos
mortos.
Na
última estrofe, o vinho é caracterizado como “pungente”, adjetivo que significa
“que nasce”, “que desponta”, pelo que caracteriza o vinho novo, mas também pode
querer dizer “que pica”. Ora, o nome que lhe corresponde – “pongimento” –
consta com esse sentido de uma lista de nove sabores que aparece no apócrifo
aristotélico Segredo dos Segredos. Dela fazem parte “dolcura amargor
salgado E temperado E azedo E sen sabor E pongimento E secura E agudeza”. Nesta
listagem, “pongimento” não se confunde com “azedo”, o que parece diminuir a
hipótese de o amor de Pero Cantone se ter estragado por ter azedado.
A
enóloga Marsilla Arroza escreveu um tratado onde aborda uma doença chamada
“picado” ou “repunte” ou “avinagramento”. A partir desse texto, é possível
encontrar um significado de “pungente” mais adequado à cantiga. São os vinhos
jovens os que estão mais sujeitos ao mal do “picado”, que é frequentemente
causado por oxidação do álcool, resultante de contacto indevido com o ar, e por
má fermentação. Ora, o “amor” de Pero Cantone aproxima-se muito deste perfil: é
qualificado como «viçoso», pelo que deve tratar-se de um vinho novo; é dito “sem
tapone”, ou seja, sem rolha para vedar a boca das pipas, o que permite a
entrada do ar no recipiente e, deste modo, precipita a deterioração do vinho.
Mais especulativo é ligar o desejo de que o amor de Pero Cantone fique em “remordente”,
com a necessidade de ter uma fermentação adequada. Como a fermentação faz
desaparecer a maior parte do açúcar contido no mosto e o substitui pelo álcool,
ajudando assim à conservação do vinho, não admira que o amor de Pero Cantone
dure pouco e seja delgado. Com efeito, no capítulo do Leal Conselheiro
sobre o pecado da gula, D. Duarte recomenda que se beba “vynho o mais do tempo
com duas partes daugua. E que seja delgado, (…)”, adjetivo explicado por Piel
como “fraco, pouco alcoólico”. Aliás, no verso 9, a ditologia composta por
«delgado» e «frio» tem caráter sinonímico, porque o segundo qualificativo se
aplica ao vinho que não é muito alcoólico.
Esta
cantiga fala, portanto, do vinho de Pero Cantone, cuja efemeridade natural,
semelhante à dos outros vinhos medievais, é agravada por deficiências de
preparo que impedem a sua comercialização com lucro. A cantiga ficciona a deterioração
rápida do vinho no próprio tempo que demora a ser cantada e ouvida, pois começa
por afirmar que ele é são, na primeira estrofe, e acaba, na última, por
proclamar o seu pungimento.
De acordo
com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt/, “À primeira vista, parece tratar-se de uma
sátira a um apaixonado que jura um amor eterno e pungente, mas de cuja duração
e sinceridade se duvida. No entanto, pelas diversas alusões da cantiga, talvez
se possa entender que o verdadeiro amor desta figura, Pero Cantone, seria o
vinho (e as declarações de amor feitas sob o seu efeito). Uma outra hipótese de
leitura é a de a composição ser uma espécie de cantiga de amigo parodística,
dita por uma mulher – que confessaria os seus amantes face ao platonismo do tal
Pero Cantone. Vicente Beltran sugere ainda a hipótese de a cantiga se
relacionar, de alguma forma, com os problemas financeiros e familiares para os
quais a biografia do trovador parece apontar. A dupla referência, que encontramos
na cantiga, a um tio e um parente do trovador poderá dar alguma plausibilidade
a esta hipótese. São pistas de leitura que o leitor poderá ou não seguir.
A
cantiga é ainda curiosa pelo emprego que faz do «e» paragógico nas terminações
nasais em «on» (“cantone”, “tapone”, etc.) – o que poderá ser um recurso para
acentuar o ridículo, ou um mero arcaísmo gráfico dos copistas.”
Bibliografia:
cantigas.fcsh.unl.pt
“Medioevo y literatura”, João
Dionísio
Sem comentários :
Enviar um comentário