Durante o século
XVII, o sermão foi o género literário predominante e a base da mais importante
cerimónia social: a pregação.
O púlpito constituía
o último bastião da liberdade de expressão, nomeadamente durante os sessenta
anos de domínio filipino em Portugal. De facto, nesse período apenas alguns
sacerdotes se permitiam falar livremente, por exemplo, contra a opressão
espanhola. Com a dominação filipina e consequente repressão de qualquer tipo de
oposição, o púlpito tornou-se o local a partir do qual alguns padres podiam
falar, criticar e acusar. Com a restauração e D. João IV, o púlpito serviu de
tribuna para o comentário político e crítico ao Poder e à Sociedade; a pregação
chegou a todas as classes sociais e foi ouvida por multidões que não sabiam
ler.
Por outro lado,
enquanto discurso de caráter religioso, o sermão torna-se uma das armas
fundamentais da Contrarreforma. Os seus traços mais significativos na época
eram os seguintes:
▪ a dimensão teatral e espetacular da
oratória religiosa (por exemplo, o púlpito da igreja de S. Roque, em Lisboa, configura
um exemplo da importância deste elemento arquitetónico na igreja seiscentista);
▪ o púlpito constitui um palco e o pregador
um ator (a oratória jesuíta ensinava ao futuro pregador, para além dos
preceitos formais, como deveria dispor as pregas do hábito, os gestos que
deveria fazer, o tom de voz a empregar, a linguagem fácil, etc.);
▪ o sermão tinha uma função lúdica, idêntica
à das demais artes de palco da época, nomeadamente o teatro, a ópera, o ballet,
os enterros, as procissões, as toradas ou os autos de fé);
▪ o seu ritual social torna-o, muitas vezes,
numa prática que visa culpabilizar e admoestar os ouvintes, daí a necessidade
do caráter de deleite intelectual, em que frequentemente se transformou;
▪ a associação de elementos e rituais
inerentes à prática do sermão, como a luz e o incenso.
De facto, embora
já existisse há quase dois mil anos como forma de divulgação do Evangelho,
ganhou preponderância em épocas de confusão doutrinal, como sucede no século XVII,
no contexto da Contrarreforma, quando a Igreja se viu confrontada com a
necessidade de recuperar para a fé aqueles que dela se tinham afastado e de
consolidar a adesão espiritual de quem permanecera fiel a Roma. Deste modo, no Concílio
de Trento elaborou-se um vasto programa de divulgação da doutrina cristã,
baseado sobretudo na formação dos sacerdotes, na pregação e no ensino do
catecismo. Os pregadores deveriam expor os vícios que deveriam evitar e as
verdades que deveriam praticar, para poder escapar ao Inferno e alcançar a
felicidade eterna.
O sermão
constituía, por isso, um grande acontecimento. Instalado no púlpito, diante da
multidão expectante, o pregador desenvolvia as suas ideias num sermão de
estrutura clássica: exórdio, exposição, confirmação e peroração.
Frequentemente, o
orador expunha antecipadamente o assunto do sermão e eventualmente a sua divisão
em partes, de modo a facilitar a participação dos ouvintes. Por outro lado, como
a confirmação poderia conter elementos (conceitos ou comparações de difícil
compreensão, por exemplo) que dificultariam a compreensão e o acompanhamento do
auditório, antecipar o assunto constituiria uma medida indispensável para a sua
perceção e apreensão.
O pregador teria até
a esse momento atingido um duplo objetivo: expor alguns conceitos doutrinais
(desempenhando assim a função didática que cada sermão deve ter), e aqueceu
psicologicamente o ambiente, como convém antes de se dar início às considerações
morais destinadas a comover os presentes e a fazer nascer neles o desejo de se
emendarem. Nesta altura, ganha grande importância a técnica de evidenciar a
enormidade dos bens e dos males mais ou menos deduzíveis do assunto exposto.
Para alcançar o resultado desejado, o pregador, aumentando aos poucos o seu tom
de voz, servir-se-á do arsenal retórico habitual – descrições, comparações,
alegorias – e mesmo de alguns expedientes teatrais.
A confirmação
culminará com alguma consideração ou algum efeito reservado para o final devido
ao seu grande poder emotivo. De seguida, o pregador, sem deixar que sesse
clímax emotivo se extinga, prepara-se para a conclusão do sermão, que consiste
em geral numa enumeração dos seus melhores argumentos, convenientemente
ampliados.
Os seus efeitos,
porém, eram de curta duração, pois, passadas algumas semanas, a situação
retornava ao mesmo.
Nas palavras de
Margarida Vieira Mendes (“Apresentação crítica”, in Sermões do Padre António
Vieira), «O púlpito era um palco e o pregador um ator a tentar exibir do
melhor modo possível a sua palavra, ajustando as modulações da sua voz aos efeitos
visados junto do auditório. […] A pregação era um espetáculo, tanto quanto
possível espetacular. […] Aliás, uma das tradicionais
categorias de funções oratórias era o delectare (deleitar), para além do
docere (ensinar) e do movere (mover ou influenciar o
comportamento do ouvinte) e estava no espírito da Contrarreforma a captação e
catequização das multidões não tanto pela razão, que se estava cada vez mais
revelando perigosa para a religião de então, mas antes pela sensibilidade, pelo
prazer, pelo puro gozo intelectual, e também pelo terror e piedade que moveriam
(movere) os espectadores […].
Para além dos
temas religiosos, tratavam-se as questões sociais, políticas, económicas,
literárias e militares. Daí que as qualidades do pregador fossem essenciais
para o sucesso do sermão: a palavra fácil, a imagem sugestiva, a sonoridade da
voz, o gesto teatral e arrebatado.
Tudo isto se
reflete na arquitetura dos templos barrocos, carregada de ornamentação, de
imagens e palavras fulgurantes, lado a lado com os finos prazeres sensuais de
aromas de incenso, música dos moletes, brilhos de luzes, faulhando de velas,
refletidos de ouros, pratas, pedras preciosas, lhamas e brocados.
Texto adaptado
de:
. MORÁN, Manuel, e ANDRÉS-GALLEGO, José, 1995. “O Pregador”. In
VILLARI, Rosario (Dir.), 1995. O Homem Barroco (tradução de Maria Jorge
Vilar de Figueiredo). Lisboa. Presença (pp. 117-142);
. MENDES, Margarida Vieira, 1992. “Apresentação crítica”. In Sermões
do Padre António Vieira (apresentação crítica, seleção, notas e sugestões
para análise literária de Margarida Vieira Mendes). 4.ª ed. Lisboa: Editorial
Comunicação (pp. 15-17) (1.ª ed.: 1982).
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