Português: Análise de "Retrato", de Cecília Meireles

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Análise de "Retrato", de Cecília Meireles

                 Este poema de Cecília Meireles é constituído por três quadras de versos maioritariamente brancos ou soltos e nele é traçado o autorretrato do sujeito poético, daí o uso da primeira pessoa do singular.

                De facto, o título do texto remete exatamente para o traçar do próprio retrato, tanto físico (as feições do rosto e do corpo) como psicológico (do qual ressalta a angústia existencial interior, motivada pela consciência da passagem do tempo).

                O sujeito poético começa por constatar a mudança operada no seu rosto, graças à passagem do tempo: “Eu não tinha este rosto de hoje” – v. 1. No segundo verso, são enumeradas três características desse rosto: “calmo”, “triste” e “magro”. Destes traços ressalta a tristeza do «eu», originada talvez pela própria mudança e pela consciência tardia da transitoriedade da vida. O tom negativo do retrato é acentuado nos dois versos seguintes (anafóricos), que acrescentam mais duas características: os olhos vazios e o lábio amargo. Os olhos azuis parecem sugerir o vazio existencial que marca o presente do «eu», enquanto o lábio (note-se o uso do singular) evidencia a sua amargura e, por extensão, sugere a ausência do sorriso, motivados pela perda da beleza (do próprio «eu» e da vida).

                Deste modo, a primeira quadra destaca a preocupação, a tristeza, a amargura e a melancolia do sujeito poético por causa da passagem do tempo e do envelhecimento, bem evidentes nas mudanças que constata terem-se operado. Note-se, ainda, o facto de os elementos corporais servirem não tanto para a descrição de traços físicos, mas sim psicológicos. A única característica física que é associada ao rosto é a magreza e, ainda assim, serve como «justificação» para a sua tristeza.

                No verso inicial da terceira estrofe, o sujeito poético prossegue o seu autorretrato descrevendo as mãos, que representam, frequentemente, a força e o trabalho. No caso do poema, é destacada a sua fraqueza / fragilidade (“sem força” – v. 5) e, logo de seguida, são descritas como “Tão paradas e frias e mortas” (polissíndeto e tripla adjetivação), enfatizando a sua degradação e frieza. O terceiro verso foca-se no coração, que perdeu o seu vigor e os sentimentos, pois o «eu» observa-o e constata que está escondido: “Eu não tinha este coração / Que nem se mostra.”

                Na terceira quadra, o sujeito lírico revela que não se apercebeu da ocorrência da mudança ao longo dos anos: “Eu não dei por essa mudança”. Que mudança foi essa? “Tão simples, tão certa, tão fácil.”. A tripla adjetivação, a anáfora e a reiteração do advérbio «tão» reforçam o caráter da transitoriedade, que ocorreu tanto física quanto interiormente. A mudança ocorreu de forma rápida e cruel.

                Nos derradeiros dois versos, está presente uma metáfora e uma interrogação em forma de discurso direto, anunciado pelos dois pontos e pelo travessão: o espelho representa um tempo passado, onde as feições eram outras e marcavam uma outra idade, e a face é o reflexo da passagem do tempo e da velhice, em suma, do decurso da vida. O último verso sintetiza uma reflexão existencial profunda: onde foi que a essência do «eu» lírico se perdeu?

                Em suma, Cecília Meireles questiona, neste texto, a mudança na vida do ser humano decorrente da passagem do tempo no sentido do envelhecimento. Os anos passam, o aspeto físico das pessoas altera-se, as doenças surgem, as limitações físicas acentuam-se e tudo isso se reflete na parte psicológica.

                A velhice torna-se visível na degeneração do corpo, no sentido da vida para a morte: a mão que perde a força, se torna fria e morta.

 

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