domingo, 9 de outubro de 2022
Análise do capítulo XI de Iracema
Análise do capítulo X de Iracema
quarta-feira, 5 de outubro de 2022
O tempo da história de O Delfim
O narrador-escritor visitou a Gafeira pela primeira vez em outubro de 1966, data da abertura da caça, e regressou um ano volvido, na mesma altura, com o mesmo propósito: “Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha visita à aldeia e onde, com divertimento e curiosidade, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro.”
Os acontecimentos da obra não seguem
uma ordem linear, antes são apresentados de forma pretensamente desorganizada e
deliberadamente equívoca ou multifacetada, para que o leitor não concentre a
sua atenção na história do adultério e se dedique, tal como o Escritor, à
análise e reflexão sobre outras mudanças que ocorreram na Gafeira.
Neste contexto, o Tempo assume
enorme relevância, desde logo porque é o responsável pela nova realidade que
vai surgindo. Para o narrador, o Tempo assume várias facetas: tanto pode ser
uma lagartixa, “um estilhaço sensível e vivaz debaixo daquele sono aparente”, “o
tempo, o nosso tempo amesquinhado”, como uma nora a girar, a escorrer pela
tarde. O Tempo é um relógio cego, um relógio de maquinismos perros. A roda vai
rodando minuto a minuto, sente-se, mas não se vê. Este tempo circular,
repetitivo, é tão subtil como as mudanças que traz à Gafeira.
De facto, o tempo da narrativa é
circular, contém em si o início e o fim de tudo; passado e presente tornam-se
iguais ao futuro e contribuem para a construção do vivido e, sobretudo, para
diluir e esbater as fronteiras entre a realidade e o imaginário. Por outro
lado, o tempo condensa os acontecimentos, mas não os esclarece, antes procura
passar uma mensagem subversiva, através de jogos de elipses, metáforas,
repetições. Além disso, ao fundir o presente com o passado, apontando já para o
futuro que se entrevê, as divagações do narrador permitem ao leitor compreender
os movimentos da Gafeira e dos seus habitantes, camponeses que o mesmo tempo
transformou também em operários.
O narrador, que é solidário com os
camponeses-operários e com a lagartixa, aparentemente imóvel, narra na primeira
pessoa do presente do indicativo, o que indica que pertence àquele tempo e
apoia a mudança: “Que é o tempo para estas mulheres? (…) E para o Regedor? (…)
E para mim que sou o Sr. Escritor? Pergunto e tenho comigo a resposta num
pedaço de papel que trouxe há pouco na loja do Regedor, uma licença passada por
ordem dos habitantes da aldeia e não por Tomás, o Engenheiro. O tempo, o bom
sentido do tempo, está nesta prova. A lagartixa sacudiu-se no seu sono de pedra.”
Esta referência positiva ao tempo (“o bom sentido”) está ligado à mudança,
representada pela licença de caça e em quem a passa, porque implica uma mudança
profunda ao nível da própria estrutura social e económica da Gafeira. É por
isso que a lagartixa se agita.
O presente veiculado pelo narrador, a
mistura entre passado e presente impede a identificação exata dos diversos
momentos da história dos Palma Bravo e da Gafeira. Será particularmente difícil
determinar com exatidão os acontecimentos relativos ao adultério e mesmo o
relacionamento entre o narrador e os habitantes da casa da lagoa.
Já no que concerne aos
acontecimentos ligados à lagoa propriamente dita, são claros e relatados pelo
Regedor, sem quaisquer omissões. Aqui o tempo foi inexorável. Trata-se de um
tempo diferente, um tempo que tem de conter em si elementos condizentes com os
habitantes da Gafeira, o Homo Lusitaniensis Sp., como lhe chama o
narrador, um tempo que tem de ser um retrato fiel da mudança entre a modorra
apática e a sociedade de consumo fielmente retratada nos blusões dos filhos dos
emigrantes. O tempo na Gafeira retrata uma realidade alienada da qual a ação
não é representativa, visto que peca por total falta de clareza e de movimento
criativo.
Para criar toda esta ambiência, o
autor vai recorrer à narrativa ulterior, anterior, intercalada e simultânea. No
que diz respeito à narrativa ulterior, ela é representada pelas recordações do
Escritor, pelas citações que faz de falas de outras personagens, pelas
reproduções dos seus apontamentos do ano anterior, algo que viu ou ouviu. A
intercalada, por oposição, apresenta a narração que se antecipa ao
acontecimento e nela se incluem tanto a mudança como o adultério. A narração
intercalada respeita àquela que ocorre entre vários momentos da ação; e
simultânea àquela que é feita ao mesmo tempo que acontece a ação.
Esta anacronia reflete-se na
aparente anarquia do tempo da história, que tão depressa nos transporta até ao
passado, através de analepses (“volto-me antes para o Largo e, sem querer,
torno à manhã do ano passado em que assisti à aparição do casal Palma Bravo
depois da missa.”) , como nos antecipa o futuro, por meio de prolepses (“«A
Barca do Inferno» – resumo da minha janela, pensando no triste fim que os
espera.”), da Gafeira.
Existe ainda o tempo da escrita,
transposto para o presente, mas que já existia no passado. Exemplo disso são os
apontamentos iniciados em 1966, aquando da primeira visita, e continuados na
segunda e que, eventualmente, se misturam com a própria escrita do romance.
O espaço de O Delfim
terça-feira, 4 de outubro de 2022
Análise de "Cornélia, Mãe dos Gracos, Apresentando os seus Filhos"
Na
pintura, encontramos, ao centro, portanto em posição de destaque, uma figura
feminina, Cornélia, que, vestida de branco (cor que simboliza a pureza), se
dirige a uma outra mulher vestida de vermelho (símbolo da paixão, neste caso,
das coisas mundanas) e branco. Esta personagem, sentada, exibe as suas joias
valiosíssimas; como resposta, Cornélia mostra os seus três filhos, o seu maior
tesouro. Deste modo, através desta situação contrastante, a pintora enfatiza o materialismo
e a frivolidade da mulher de vermelho, provocando o seu visível embaraço.
Cornélia,
na realidade, era uma figura histórica romana, uma das poucas mães em Roma às
quais se credita uma poderosa influência sobre a vida pública dos filhos. Era
também conhecida por se vestir de forma menos vistosa do que muitas das suas
contemporâneas. Cornélia era mãe dos Gracos, dos quais dizia
que eram as suas joias, e, depois de ficar viúva, recusou voltar a casar,
preferindo dedicar-se exclusivamente à educação dos filhos, que ficaram
conhecidos pelas iniciativas reformistas e que acabaram por provocar o seu fim
trágico.
Em suma, esta obra critica o apego excessivo aos bens materiais e a vaidade feminina, demonstrando-se que há valores muito mais importantes na vida do ser humano, como, por exemplo, o amor maternal.
quinta-feira, 29 de setembro de 2022
Análise de "Dizeres íntimos", de Florbela Espanca
Dizeres íntimos
O título da composição aponta
para a ideia de que se trata de uma confissão do «eu» poético (onde ele revela
as suas inquietações e pensamentos dolorosos ao refletir sobre a morte), o que
parece ser confirmado pelo uso da primeira pessoa, quer nas formas verbais
(“vou”), quer nos determinantes (“minha”).
O primeiro verso traduz a tristeza
do sujeito lírico pela sua morte, sobretudo, deduz-se, numa idade jovem: “É tão
triste morrer na minha idade” (v. 1). Assim sendo, o poema coloca-nos, desde
já, perante a ideia da morte como algo triste.
Os versos seguintes parecem esboçar
uma imagem do estado físico de uma pessoa morta, como, por exemplo, o redor dos
olhos roxos. A aliteração do /s/ produz uma sonoridade apropriada para a
expressão de estados de alma caracterizados por sentimentos como a tristeza, a
dor e a angústia, motivados pela morte. Por seu turno, a assonância da vogal
/i/, associada ao diminutivo “inho”, reproduz um tom agudo que sugere a imagem
sonora de um grito fino e dolorido que vai crescendo à medida que o sujeito
poético pensa na morte e no abandonar o usufruto da vida.
Pela leitura da primeira estrofe,
fica claro que a morte, para o sujeito poético, é um evento triste, já que
significa o fim da vida. Desta forma, o «eu» ironiza a morte, desde logo porque
não é possível evitá-la, o que o leva a procurar camuflar o medo de morrer,
dado que, ao mesmo tempo que demonstra angústia ao referir-se-lhe, parece
ironizar e brincar com a morte, como se depreende do uso da expressão “E vou
ver” (v. 2), a qual sugere um momento de reflexão.
Os versos 3 e 4, embora contenham
vocabulário do domínio do religioso (“crentes”, “convento”), não querem dizer
que o sujeito poético seja religioso, antes pretendem traduzir uma atitude
solene e compungida, representada pela imagem do “convento da Saudade” (v. 4).
A referência à cor roxa e o adjetivo “soturno”, juntamente com as vogais
fechadas /u/ e /o/ traduzem o tom melancólico e fúnebre que domina a primeira
estrofe. Deste modo, o «eu» expressa o medo que a ideia de morte lhe traz, pois
a qualquer momento a vida pode extinguir-se e a matéria transformar-se em nada,
em pó. Imaginar a própria morte é um gesto assustador e angustiante por várias
razões, incluindo o facto de ela não ser apenas uma possibilidade, mas uma
certeza.
A segunda quadra abre com a conjunção
coordenativa copulativa «e», o que traduz uma ideia de sequência, ou seja, a
tristeza expressa na primeira estrofe expande-se nesta e manifesta-se sob a
forma de outro sentimento: a ansiedade [“E logo vou olhar (com que
ansiedade!...)”]. O ato de olhar contém em si o sentimento de ansiedade
anunciado dentro dos parênteses.
Após o discurso parentético, o «eu»
prossegue a descrição do estado cadavérico, focando-se nas suas mãos, “esguias”
e “languescentes”, isto é, moles, fracas, sem vitalidade e pálidas. A repetição
da conjunção coordenativa copulativa «e» ao longo de versos vários sugere a
gradação com que a morte se vai apossando do corpo: inicialmente, pintam os
olhos de roxo; depois, empalidece e enfraquece as mãos; a seguir, no verso 7, os dedos brancos.
Nos versos 7 e 8, o «eu» estabelece
uma analogia entre os bebés doentes e ele mesmo, sugerindo a sua, dele, morte
prematura, enquanto o primeiro terceto se inicia com uma tonalidade mais
positiva, tendo em conta o vocábulo “Paraíso” no verso 9, dado que, em termos
religiosos, ele simboliza o espaço para onde o espírito vai após a morte, sendo
considerado um ambiente calmo, iluminado, pacífico. Ora, é exatamente essa
sugestão de paz que este terceto introduz no soneto, como se o sujeito poético
fosse gradualmente acalmando e a sua angústia, trazida pelos pensamentos na
morte, vai desaparecendo aos poucos.
Por outro lado, não obstante o
Paraíso ser associado à morte, neste caso parece estar mais relacionado com a
vida. Aqui, entra em cena a imagem da “estrada larga, ao sol, florida”: a
estrada larga é o futuro pela frente; “florida” é a flor da idade, a juventude;
o sol representa a plenitude da vida. Em suma, a imagem enfatiza a felicidade
trazida pela esperança representada pela estrada larga e florida que é a
juventude.
O último terceto precisa a idade do
«eu»: vinte e três anos. Os parênteses e a exclamação traduzem, mais uma vez, a
tristeza que sente de morrer na sua idade, tendo toda a vida pela frente. Ou
seja, apesar de exalar vida com vinte e três anos, sabe que a morte é
inevitável. Neste contexto, as reticências enfatizam a valorização da vida e a
vontade de viver.
O soneto termina de forma irónica: “Dizem
baixinho a rir: / Que linda a vida!...”. As repetições da vogal /i/ causam a impressão
de uma risadinha fina, sarcástica dos seus “vinte e três anos”. A ironia maior
reside no verso 14, traduzindo a dor causada pela morte: “Responde a minha
dor:/ Que linda a cova!”. É interessante registar que as antíteses “rir”/”dor”
e “vida”/”cova” parecem sugerir que, embora o senso comum se entristeça com a
ideia da morte em idade jovem, ela também determina o fim da dor. O nome “cova”
representa precisamente a morte, mas uma morte que se torna um alívio, pois o
sofrimento, a dor, a angústia terminam.
quarta-feira, 28 de setembro de 2022
Análise de "Poema dum funcionário cansado", de António Ramos Rosa
Este poema foi incluído na obra O Grito Claro, publicado em 1958. Nele, Ramos denuncia a desumanização de que são vítimas os trabalhadores do Estado, traduzida na alienação que o trabalho rotineiro e monótono impõe a quem dele necessita para (sobre)viver e que se traduz na perda da individualidade que advém do esmagamento do espírito do funcionário público, tratado como uma máquina ou uma parte dela. A sociedade não liberta; pelo contrário, escraviza; não valoriza e dignifica, antes desumaniza.
Na primeira estrofe, o sujeito
poético autocaracteriza-se como uma pessoa solitária, confusa, sem amigos e
despojada de sonhos, com uma visão profundamente negativa e pessimista do mundo
em que vive, que o oprime.
Diariamente reduzida a uma coisa, um
objeto, o “funcionário cansado” perceciona a cidade como um espaço físico (e
social) asfixiante e opressivo, no qual a escuridão da noite, as ruas e as
casas se tornam ameaçadoras ao agigantarem-se contra ele (“as casas engolem-nos”)
– a casa é representada como um monstro que o engole (devora); as ruas
limitam-lhe os movimentos (“ e a rua é estreita / em cada passo”), como secada
uma fosse uma calha à qual está preso (como o comboio aos carris) e lhe
dirigisse os passos até ao quarto onde vive, solitário, e para onde retorna
todas as noites com o coração pesado e a alma triste. O espaço, com efeito,
aprisiona-o, a ele e aos seus sonhos, perdendo tudo o que possa ter de mais
íntimo, pessoal e criativo. O que sobra? Um “funcionário cansado”,
“irremediavelmente perdido no [seu] cansaço”. Atente-se na repetição,
nomeadamente da expressão “num quarto só” (quatro vezes em todo o poema), que
acentua a solidão do sujeito poético. Por outro lado, a personificação da
noite, responsável pela dispersão dos sonhos e dos amigos, bem como das casas
que o engolem, sublinha a confinação e o aprisionamento do «eu», vítima de uma
realidade que não o deixa respirar.
A cidade, percecionada, pois, como
extensão do poder instituído, impede a libertação da servidão em que o
funcionário se encontra, situação que é partilhada pela generalidade dos que
executam tarefas burocráticas (atente-se no uso do plural “engolem-nos” e
“sumimo-nos”) através das quais o Estado afirma o seu poder, ao mesmo tempo que
os responsabiliza, na medida em que as normas são superiormente decididas. Ao
funcionário cabe apenas cumprir as ordens que lhe dão e é essa obediência que
lhe garante uma vida “útil” à sociedade, o seu sustento e o da família.
No final do dia, espera-o um quarto,
uma outra “gaiola” idêntica à do pássaro que observa através da janela do
escritório (verso 16). Ao espaço reduzido em que trabalha, sucede o espaço
exíguo em que dorme sozinho. A pequenez do espaço em que faz a contabilidade
continua cá fora e, quanto mais pequenos forem os espaços, mais fácil será
exercer um controlo sobre os indivíduos, tanto na vida pessoal como na vida
profissional e social. Culpado do crime de desejar uma vida na qual lhe seja
permitido sonhar, criar, manifestar a sua singularidade de ser humano, o
funcionário é condenado à solidão do quarto para não ser contaminado com
pensamentos alheios ao desejo de ser útil à nação por parte do “chefe”, cujas
promoções se fazem à custa do cumprimento escrupuloso do «dever» e da denúncia
de quem pensa de modo diferente.
Habituado a ser dirigido pelo
“chefe”, este funcionário sente-se perdido fora do local de trabalho; o mundo
parece-lhe confuso, as relações sociais são inexistentes ou ocasionais, a
escuridão causa-lhe medo, porque é nela que se encontra consigo próprio e o que
vê dentro de si deixou há muito de fazer sentido, é uma noite mais negra que a
noite citadina: “A noite trocou-me sonhos e as mãos / dispersou-me os amigos /
tenho o coração confundido e a rua é estreita / […] com toda a vida às avessas
a arder num quarto só.” O sujeito poético, solitário, sem amigos e despojado
dos seus sonhos, manifesta uma visão pessimista da sua vida e do mundo que o
rodeia, sentindo-se emparedado pelo espaço.
No início da segunda estrofe,
autocaracteriza-se como um funcionário “apagado” e “triste”. O seu cansaço
nasce do conflito que existe entre o seu reconhecimento de uma vida dedicada à
colaboração com uma organização social que o desorganiza a ele, dado que lhe
suga a vitalidade, e a necessidade de o fazer, apesar de saber que é apenas uma
peça de uma vasta engrenagem e das manifestações de desprezo que sente. O seu
lado visível aceita as ordens provenientes do superior hierárquico e o seu lado
invisível assiste, impotente, ao esmagamento quotidiano da sua individualidade.
Isto significa que existe um
desajuste entre a sua sensibilidade de poeta e a sua condição de funcionário.
De faco, esta obriga-o a uma vida compassada pelo ritmo dos números e dos
documentos com que trabalha, o “Débito e Crédito” referenciado no poema. No
entanto, em desajuste relativamente a esta condição de funcionário, a sua alma
insatisfeita “não dança com os números” e arrasta o seu “olhar lírico” de poeta
para lá da realidade, para a beleza de um pássaro, para as “velhas palavras
generosas” do seu sonho aprisionado. Neste passo do poema, o sujeito poético
recorre, nalguns versos, a uma ironia triste: “A minha alma não dança com os
números”, “o chefe apanhou-me com o olhar lírico”, “debitou-me na minha conta
de empregado”.
Apesar de tudo, é no local de
trabalho, onde vigora o “policiamento do chefe”, que o funcionário ousa deitar
o “olho lírico” (ironia e metáfora: traduzem a possível transformação que a
vida poderia trazer à sua vida), para a “gaiola do quintal em frente” (metáfora),
atitude que o faz sentir “envergonhado” por se evadir, momentaneamente, do
“Débito e Crédito Débito e Crédito”. Este passo do poema pode ter duas
interpretações: por um lado, o funcionário sentirá inveja do pássaro por este
lhe parecer ter tido mais sorte, dado que nasceu pássaro inconsciente da sua
prisão (os animais irracionais, enquanto tal, não pensam, não refletem, pelo
que não têm consciência do que são ou experienciam); por outro lado, o olhar
que o «eu» lhe dirige é um olhar de cumplicidade terna com o animal
encarcerado, tal como ele.
A realidade é que, da janela do
escritório, o funcionário observa um espaço exterior domesticado e murado do
qual está ausente o céu; o desejo por parte dos agentes do poder de dominar os
que se encontram na base da pirâmide é extensiva à natureza. Quer o ser humano
quer a natureza não humana existem apenas para serem úteis: o funcionário faz a
contabilidade, o quintal produz o que lá decidiram plantar e o pássaro decora o
quintal e distrai o dono com o seu canto.
Domesticado como um animal numa
jaula, o funcionário, “cansado” de pactuar com uma sociedade em que não se
revê, sente-se “envergonhado” após ter sido “apanhado” a olhar o pássaro preso.
O “chefe”, estupidificado por anos de chefia, não percebeu que um ser humano
digno desse nome lamenta a triste vida dos pássaros engaiolados, eles que
nasceram para voar no infinito do céu. Provavelmente convencido de que o
funcionário desejava trocar a vida rotineira e monótona de “o deve” e “o haver”
por outra diferente, decidiu diminuir-lhe o salário, pois muitos outros
estariam dispostos a fazer a contabilidade dias inteiros sem tirar os olhos do
papel.
A divisão interior que o conflito
entre a vontade da “alma” e a necessidade de ser um funcionário exemplar não se
manifesta em revolta contra o agente controlador da sua vida, apenas se anuncia
nas perguntas retóricas que o funcionário se coloca e para as quais sabe a
resposta: “Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? / Porque
me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?” Estas interrogações
traduzem o desalento solitário, a insatisfação calada e só confessada a si
mesmo.
Cansado de não viver, mas da vida
desagregadora da sua realidade interior, da ausência de esperança / sonho em
que a sua vida se transformou, tem consciência de que, caso escolhesse um
caminho alternativo à submissão ao “chefe”, se condenaria à angústia gerada
pelo desemprego, pela despromoção social, pelo sentimento de culpa e pela
miséria. Na engrenagem social de que ele e a maioria das pessoas faz parte, não
há final feliz para ninguém, porque a exploração dos que estão empregados e o
desespero dos que procuram emprego é mortal para uns e outros, ainda que por
razões diferentes.
Na solidão do quarto, o funcionário
“soletra” as “velhas palavras generosas” (metáfora) que outrora o fizeram
sentir-se vivo, talvez porque já não as saiba pronunciar tão bem como
antigamente, de tão descabidas que elas agora lhe parecem no isolamento em que
vive e em tempos de desprezo pelo que é genuinamente humano.
Em suma, na segunda estrofe, o «eu»
poético revela as razões da sua insatisfação e do seu cansaço: a atividade que
exerce como funcionário público, daí o seu autorretrato – apagado, triste e
inadaptado à rotina de um trabalho que não é compatível com a sua alma de
“poeta”. O seu trabalho envolvendo contas e contabilidade, cálculos e números
fazem parte de um mundo material, de um tipo de atividade da qual a sua alma
lírica não participa.
Apesar da sua condição de funcionário
que arrasta uma existência apagada, o funcionário soletra “velhas palavras” que
povoam o seu sonho abafado – “flor”, “rapariga”, “amigo”, “menino”, “irmão”, “beijo”,
“namorada”, “mãe”, “estrela”, “música”. São palavras que podem encher de calor
a alma mais fria, de cor o lugar mais cinzento, palavras carregadas da poesia
que o funcionário não ousa, apenas timidamente soletra e deixa escapar do “olho
lírico”. A enumeração dos versos 22 a 24 simbolizam aspetos como amor, afeto,
beleza, vida, inocência, amizade, alegria, luz, que a vida tem e ao «eu»
faltam.
No entanto, o sonho de libertação é
impossível, pois o sujeito poético esconde, envergonhado, as suas evasões
poéticas, como se verifica com o olhar a gaiola do quintal em frente do seu
escritório, está soterrado na prisão da sua vida, autolimitado, sozinho na
noite que o venceu e lhe “trocou os sonhos e as mãos”. Aprisionado num espaço
físico e social absolutamente asfixiante que o engole e aos seus sonhos, num
universo de funcionários que só podem ter olhos para os papéis, perde tudo o
que possa ter de mais íntimo, pessoal e criativo, e fica um “funcionário
cansado”, “irremediavelmente perdido no [seu] […] cansaço”. De acordo com o
«eu» poético, a existência sem poesia constitui um grande vazio, por isso
intenta um momento de evasão, traduzido pelo soletrar de “palavras generosas”,
sem as quais a vida se resume a nada.
terça-feira, 27 de setembro de 2022
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segunda-feira, 26 de setembro de 2022
Análise do prefácio da segunda edição de Amor de Perdição (1863)
Título ↓ a caracterização da história de Simão: “triste
história”, “trágicas e afrontosas dores” |
|
Subtítulo ↓ as referências à família do protagonista e do autor
(“a triste história do meu tio paterno”, “Minha tia […] estava sempre pronta
a repetir o facto”, etc.) |
domingo, 25 de setembro de 2022
sexta-feira, 23 de setembro de 2022
Análise do poema "Variações sobre «O Poema Pouco Original do Medo» de Alexandre O’Neill", de Manuel Alegre
Este poema de Manuel Alegre foi escrito em 1965,em plena vigência do Estado Novo, que é o equivalente a falar em falta de liberdade, censura, medo, opressão. A literatura não ficou indiferente à situação: houve escritores que a aceitaram, enquanto outros procuraram combater o regime, o que forçou alguns ao exílio, como sucedeu com Manuel Alegre.
O título do texto relaciona-o
com o poema de Alexandre O’Neill por meio do nome «variações», termo que remete
para uma versão de algo. Assim sendo, iremos encontrar diferenças entre as duas
composições.
Relativamente à estrutura interna,
podemos dividir o texto em três partes. A primeira corresponde à primeira
estrofe, que nos dá conta da invasão da cidade pelos ratos e o seu domínio
sobre “as gentes”. A segunda parte, composta pela segunda estrofe, evidencia a
postura do «eu», que não se conforma nem se acomoda à vontade dos ratos, não se
deixa intimidar nem oprimir. A terceira parte, a terceira estrofe, apresenta o
resultado do poder transformador do canto, isto é, a liberdade de expressão
combate o medo.
A primeira estrofe dá-nos conta de
uma situação: os ratos invadiram a cidade e dominaram toda a gente, como o
demonstra o seu comportamento – tomaram as casas e roeram o coração das
pessoas, a vida, o sol, a lua e o amor. Quer isto dizer que o medo reina,
governa tudo e todos, incluindo o próprio país. A metáfora do verso 4 (“Cada
homem traz um rato na alma.”) significa que as pessoas foram dominadas pelo que
os ratos simbolizam negativamente. A aliteração do /r/ do verso 5 sugere a
forma como os ratos roem e o ruído que produzem ao fazê-lo, bem como a sua ação
dominadora e destruidora dos seres humanos. Por sua vez, o verso 6 traduz a
noção de que todos têm de aceitar os valores e as ideias representadas pelos
ratos. Por outro lado, simboliza a desumanização das pessoas, ao retirar-lhes
os traços humanos, substituídos pelos dos roedores.
Por que motivo terá o «eu» selecionado
estes animais para desenvolver a temática do poema? Os ratos são bichos que
vivem e se alimentam do lixo, que se reproduzem rapidamente e em grande escala.
Quando atuam em grupo, têm um efeito devastador. Além disso, são responsáveis
pela transmissão de várias doenças graves para os humanos, como, por exemplo, a
peste negra. Por último, o termo «rato», quando aplicado às pessoas como
adjetivo qualificativo, significa que as ditas são medrosas, se acobardam.
Deste modo, podemos deduzir que os
ratos, neste poema, simbolizam o medo, a opressão, a desumanização do indivíduo,
etc.
A segunda estrofe mostra a atividade
e o comportamento do «eu». Assim, afirma-se um homem, por oposição a um rato.
Por outro lado, ao contrário dos roedores, que chiam, ele canta e grita-lhes
não, isto é, enfrenta-os corajosamente, não se deixando intimidar nem oprimir. Por
conseguinte, enche a toca de sol, que simboliza a liberdade (o sol fica no
céu), a luz, a esperança; de luar e de amor. Cada uma das ações do sujeito poético
é seguida de um verso entre parênteses e anafórico (“Cá fora”), que traduz a
oposição entre os ideais que defende – a liberdade, por exemplo – e que estão a
ser destruídos pelos ratos (“roeram o sol”, “roeram a lua”, “roeram o amor”) e
a situação vivida.
A última estrofe reflete o poder
transformador da ação e do canto do «eu». Esses quatro versos estão prenhes de
esperança e representam a semente da mudança que foi plantada: a toca do
sujeito poético não é mais dominada pelos animais; pertence agora a um conjunto
de homens que canta e que, através do seu canto, a enche de sol, ou seja, subverte
a situação num sentido positivo. O sol e o canto simbolizam os princípios que
os ratos haviam destruído, concretamente a liberdade de expressão, a vida, o
amor. Por outro lado, a antítese entre os ratos que chiam e os homens que
cantam representa a humanização destes. Em suma, esta estrofe apresenta-nos a
imagem de um conjunto de homens unidos e a cantar contra os ratos, isto é,
todos os que oprimiam, para permitir que a cidade, sinédoque do país
(Portugal), se voltasse a encher de sol, ou seja, de liberdade.
Deste modo, podemos concluir que
este poema reflete o medo e a opressão vividos nos anos 60 em Portugal, em
plena ditadura salazarista. Assim, não é de estranhar o posicionamento crítico
do poeta, que denuncia e expõe a opressão e a falta de liberdade suscitadas
pelo regime, como forma de dominar “as gentes”, a sociedade.
A presença do canto dos homens neste poema relaciona-se com uma tendência da época, que consistia em fazer da poesia uma arma de combate, de denúncia da situação, em suma, uma arma política. Assim sendo, o poeta, nesta composição, denuncia a opressão e a falta de liberdade de expressão, mostra a sua postura perante a realidade vivida na época face à opressão e perseguição da polícia através da figura dos ratos.