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sábado, 17 de agosto de 2024

Análise do poema "Se é doce no recente ameno Estio", de Bocage


n Assunto: o sujeito poético, dirigindo-se à mulher amada, declara-lhe que, se é doce ver a suave alegria da manhã enfeitada de flores e amenizada pelo deslizar do manso rio, se é doce ouvir o doce chilrear dos passarinhos entre os aromas dos pomares, se é doce ver o suave colorido do mar e dos céus, mais doce é poder morrer de amor na posse da sua amada.
 
 
n Tema: a exaltação da mulher amada.
 
 
n Estrutura interna
 
1.ª parte (vv. 1-11) – Descrição de uma Natureza caracterizada pela doçura, pela amenidade, pela beleza, pela claridade, pela serenidade, pela alegria, pela suavidade, pela harmonia – um autêntico paraíso – “locus amoenus”.
 
2.ª parte (vv. 12-14) – A superioridade da mulher em relação à Natureza.
     De facto, o sujeito poético estabelece uma comparação entre a doçura e a alegria que ele experimenta ao observar a Natureza (com as características atrás apontadas) e a doçura que experimenta ao cair nos braços da mulher amada, vencida pelo seu amor. Mas os dois termos comparados não são iguais, porque se é doce sentir a Natureza, mais doce é cair nos braços da mulher; ou seja, a mulher é superior à Natureza em termos de beleza.
               A 1.ª parte do texto contém, por conseguinte, o primeiro termo de comparação e a 2.ª parte contém o segundo.
 
 
n Função da Mulher:
– divina, ideal, doce, carinhosa (comparada a tudo o que é doce e ameno);
– comparada à Natureza, é-lhe, porém, superior;
– deve dar “morte de amor”;
– é causadora do sofrimento, mas também confidente;
– deve deixar-se vencer pelos ais, pelo sofrimento do homem que a ama.
 
 
n Imagem da Natureza

            A suavidade da Natureza, a claridade, a alegria, ao nascer do Sol, irradiando também serenidade e paz, está dentro dos ideais clássicos da “aurea mediocritas”, isto é, da convicção que os clássicos tinham de que a suave alegria da natureza lançava na alma um bálsamo especial que suavizava as agruras da vida, e do “locus amoenus”. Notem-se as palavras e expressões que conotam suavidade, serenidade, paz: “doce”, “ameno Estio”, “mole e queixoso deslizar-se o rio”, “inocente desafio”, “esperta os corações” (no sentido de dar vida, libertar os corações dos pesares da vida.


n Recursos poético-estilísticos
 
            Para realçar a suavidade da Natureza temos, em primeiro lugar, a expressividade dos adjectivos: doce (repetido 4 vezes), ameno, mole e queixoso, inocente, gentil, querida, brandos. Destes, o adjetivo-chave é doce, que se repete anaforicamente e em lugar de destaque, no princípio das estrofes, e no grau comparativo (comparação) de superioridade (“mais doce é”) para, a partir da grande doçura que há na fruição da Natureza, realçar a infinita doçura encontrada na posse da mulher amada. Os verbos também designam acções realizadas suavemente: lambendo, deslizar-se (notar a expressividade do reflexo), modulando (o próprio gerúndio exprime a acção a deslizar suavemente). Estas apalavras, apontando no seu significado para a suavidade, são também suaves como significantes, isto é, no seu próprio som e na musicalidade que ajudam a construir no verso. Há no poema versos de um ritmo, de uma suavidade encantadora: “Mole e queixoso deslizar-se o rio”, “Seus versos modulando e seus ardores”, “Que esperta os corações, floreia os prados”, “Dar-me em teus brandos olhos desmaiados”.
            Por outro lado, o soneto é bastante rico na expressão de sensações:
– gustativas: doce (4 vezes), lambendo;
– visuais: ver (3 vezes), verdores, sombrio, anilados, olhos, desmaiados;
– tácteis: ameno, mole, ardores, brandos;
– auditivas: queixoso, ouvirem-se, ais;
– olfactivas: aromas.
    Note-se que há signos que não designam apenas uma sensação. Por exemplo, na expressão “é doce ver”, o adjectivo doce, em rigor, estará dentro das sensações visuais (agradável aos olhos), mas na expressão “é doce ouvir”, já o mesmo adjectivo se integra nas sensações auditivas (agradável aos ouvidos). O adjectivo brandos exprime ao mesmo tempo sensações visuais e tácteis. E o adjectivo ameno pode referir-se a qualquer sensação.
    Ainda na descrição da Natureza, são de reter a personificações de elementos como o rio e do Amor; as metáforas (“Ver toucar-se a manhã de etéreas flores...”, “... lambendo as areias e os verdores...”, “Que esperta os corações, floreia os prados...”, “... morte de amor...”); a perífrase e a metonímia “Ouvirem-se os voláteis amadores...” (= passarinhos) e os hipérbatos.


n Características


Análise do poema "Liberdade, onde estás? Quem te demora?", de Bocage

  Condições histórico-políticas que estão na génese do soneto:
            – Revolução Francesa (1789);
            – consolidação da República Francesa (1797);
            – estado de absolutismo despótico que se vivia em Portugal.

 
Tema: a ânsia de Liberdade.

 
Assunto: o sujeito poético lamente a chegada tardia da Liberdade, constata a oportunidade da sua vinda, desejando e fazendo apelo para a instauração definitiva de tal valor.
 
 
Estrutura interna

 

1.ª parte (1.ª quadra) – O sujeito lírico interroga-se sobre o paradeiro da Liberdade e desabafa, em tom de incerteza e dúvida, quanto à sua chegada.
   Possuído por grande ansiedade e inquietação, face à situação presente de falta de liberdade e opressão, o sujeito poético chama por uma “liberdade colectiva” (“nós”) que alguém desconhecido impede de chegar.
 
2.ª parte (vv. 5-14) – A ansiedade, o desejo e consequente apelo, súplica, à Liberdade para que, chegando, possibilite a realização do sujeito/Humanidade.
 
 
▪ Na 2.ª estrofe, é clara a dicotomia liberdade/despotismo: o presente é o despotismo, a opressão “feroz” que “nos devora”; a situação desejada é a da redenção, da salvação: “é vinda a hora”.
 
No 1.º terceto, temos a súplica do sujeito poético à Liberdade, súplica para o merecido acolhimento para quem é patriota. Por outro lado, o sujeito apresenta os efeitos do despotismo em si:
– frio e mudo ® inexistência de liberdade de expressão – não pode poetar à vontade;
– oculta o amor pátrio;
– torce a vontade;
– finge.
          Há, de facto, no soneto, uma oposição entre uma situação real e uma situação desejada. A situação real é de opressão (“despotismo feroz”), que obriga o sujeito a silenciar, por medo, o próprio amor à Pátria, a contrariar a sua própria vontade e a fingir, para não ser apanhado nas malhas da perseguição política, conforme pode ver-se neste terceto.
          A situação desejada é a de Liberdade, aqui encarada como uma “santa redenção”, uma verdadeira salvação, tal é a violência da tirania que “nos devora”. Só a “aurora” da Liberdade poderá iluminar a “espera de Lísia” (Portugal) e dissipar as trevas de um regime ditatorial.
 
▪ No 2.º terceto, a Liberdade é apresentada como aspiração máxima do Homem [“tu és (...) tudo”] e caracterizada como divindade, glória, “mãe do génio (não há entraves para poetar) e do prazer.
 
A dicotomia Liberdade/Despotismo é sustentada, no poema, por um vasto conjunto de vocábulos:
 

Liberdade

 

Vv.

 

Ausência de Liberdade

 

Vv.

“Liberdade”
“santa redenção”
“Oh! Venha... Oh! Venha”
“pátrio amor”
“piedade”
“númen tu és
“glória”
“Mãe do génio e prazer”
“Liberdade”

 

1
5
7
10
12
13
13
14
14

 

“demora”
“triste de mim!”
“não caia”
“desmaia”
“descaia”
“Despotismo feroz, que nos devora!”
“frio e mudo”
“Oculta”
“torce a vontade”
“fingir”
“temor”
“grilhões”

 

1
2
2
6
7
8
 
9
10
10
11
11
12
 
 
Conclusão
 
            O número de vocábulos/expressões dos dois grupos opostos é semelhante, ficando, deste modo, comprovada a luta, o conflito entre forças iguais (Liberdade/Ausência de Liberdade), para o qual o sujeito poético incita, apelando e desejando a chegada da Liberdade como necessidade imperiosa para os homens, uma vez que tal privação já causara avultados sacrifícios.

 
Recursos poético-estilísticos
 
            A nível formal, trata-se de um soneto pois contém duas quadras e dois tercetos, de versos isométricos – decassilábicos. O esquema rimático é ABBA / ABBBA / CDC / DCD, sendo a rima interpolada e emparelhada nas quadras e cruzada nos tercetos. Os versos têm ainda rima grave, consoante, rica (“demora”/”aurora”) e pobre (“desmaia”/”descaia”).
 
            A nível morfossintáctico, existem, nos versos 5 e 12, dois hipérbatos bastante significativos: “Da santa redenção é vinda a hora”; “Movam nossos grilhões tua piedade”. Com a inversão sintáctica que caracteriza o hipérbato, são colocados na posição de destaque do verso (no início) os elementos mais significativos: “Da santa redenção” ® a necessidade de salvação; “Movam nossos grilhões” ® o desejo de libertação e de resolução do conflito.
            A adjectivação agrupa-se dm dois conjuntos: “triste”, “feroz”, “frio e mudo”, “pátrio”, referem-se à situação de despotismo, de opressão; “santa” refere-se à ânsia de redenção e salvação possíveis de obter através da chegada da Liberdade.
            O uso do pronome indefinido (“tudo”) reforça a dificuldade do sujeito poético em seleccionar os vocábulos apropriados para a definição de Liberdade, a aspiração máxima do Homem. Dada essa dificuldade, recorre a este pronome como forma de sintetizar a definição.
            O apelo e desejo de liberdade implicam o predomínio da função apelativa, na medida em que o discurso está centrado no receptor – Liberdade – , para, através de vocativos (“Liberdade”, “ó Liberdade”), formas de imperativo (“acode”) e de presente do conjuntivo (“venha”, “descaia”, “movam”), suplicar a sua intervenção redentora. Por outro lado, é visível também a presença emocionada do sujeito poético (função expressiva), não só pela utilização de pronomes pessoais e determinantes possessivos de primeira pessoa (“nós”, “mim”, “nos”, “nossos”, “nosso”), mas, sobretudo, através de exclamações (“triste de mim!”, por exemplo), interrogações, interjeições (“eia”, “oh”), repetições (“Oh!, venha... Oh!, venha”), reticências e adjectivação (“santa”, “trémulo”, “feroz”, “frio e mudo”) e até da metáfora (“raia (...) a tua aurora”, “devora”, “grilhões”).
            O pronome interrogativo “Quem” remete para a indefinição que rodeia a pessoa ou entidade que impede a liberdade de chegar e libertar o sujeito da situação de asfixia em que se debate face ao “despotismo feroz”.
            O polissíndeto (vv. 13-14) resulta numa tentativa de definição de algo que é transcendente pela sucessão de vocábulos.
            Encontram-se no soneto frases interrogativas (vv. 1, 2, 3-4), declarativas (vv. 5-6), exclamativas (vv. 3, 7-8, 13-14) e imperativas (vv. 9-11, 12). Esta sequência, no que diz respeito à forma como surgem no poema, remete para uma determinada progressão do estado de espírito do sujeito poético: em primeiro lugar, incerteza e indignação pela ausência de Liberdade (frases interrogativas, vv. 1-4); de seguida, a constatação de que o tempo oportuno havia chegado (frases declarativas, vv. 5-6), acompanhado de um desejo em forma de súplica para o término da situação presente (frases exclamativas, vv. 7-8); o apelo para a instauração da Liberdade (frases imperativas, vv. 9-11, 12); e, por último, o destaque atribuído à Liberdade e ao sentimentos do sujeito por tal valor (frases exclamativas, vv. 13.14) que protagoniza o poema.

            A nível semântico, logo no primeiro verso deparamos com uma apóstrofe à Liberdade que se repete no último. Ainda na primeira quadra encontramos uma série de interrogações retóricas, isto é, uma série de interpelações à origem da Liberdade, aos responsáveis pela não existência da mesma e às causas da sua chegada tardia, que servem especialmente a função expressiva, presente na 1.ª quadra, na qual o sujeito poético revela a sua tristeza e indignação pelo facto de estar privado de Liberdade.
            As exclamações, associadas às interjeições (vv. 3, 7-8, 9, 13, 14), marcas da função expressiva, evidenciam o estado de espírito do sujeito poético: a súplica, a ansiedade, a aspiração, o desespero.
            Por outro lado, quer a Liberdade quer o Despotismo surgem personificados. Assim, a personificação da Liberdade por parte do sujeito poético traduz a grande ânsia da sua chegada, enquanto a personificação do Despotismo, por um lado, intensifica a sua presença, força e acção, e, por outro, a situação asfixiante em que vive.
            A metáfora é outro dos recursos importantes do poema:
– “raia (...) a tua aurora” (vv. 3-4);
– “A esta parte do mundo, que desmaia” (v. 6);
– “Despotismo feroz, que nos devora!” (v. 8);
– “... torce a vontade...” (v. 10);
– “Movam nossos grilhões...” (v. 12);
– “Nosso númen tu és...” (v. 13);
– “Mãe do génio e do prazer...” (v. 14).
Este conjunto de metáforas revela a situação de opressão em que o sujeito se debate face ao “despotismo feroz” que a Liberdade tarda em destruir, porque demora a chegar. Além disso, no caso da última metáfora, é atribuída à Liberdade a capacidade de gerar e proteger, sendo ela identificada como a génese da inspiração, do talento.


Características


sexta-feira, 16 de agosto de 2024

A escola do século XIX em imagens - XII


Eduard Ritter – Sala de aula no Tirol (c. 1840)

    Eis, em pleno século XIX, uma sala de aula nada convencional: em vez do mobiliário habitual – carteiras, lousas, secretária, estrado, mapas na parede – o que vemos é um aposento da casa do professor, com quadros na parede e móveis domésticos, sem faltar o pormenor da fruta que o docente vai depenicando durante a aula.
    Mais curiosa ainda é a forma como as crianças surgem divididas em dois grupos contrastantes: à esquerda, junto ao professor, três meninas aplicadas apresentam os seus trabalhos ao professor, enquanto o grupo mais numeroso dos rapazes, à direita, se entretêm com diversas tropelias. O mestre, já idoso, concentra-se nas suas alunas predilectas e no enorme cachimbo que vai fumando, aparentemente alheio a desordem que grassa lá para atrás. A indisciplina não é apenas, como aqui se vê, um problema do nosso tempo…
    Outra reflexão que este quadro nos sugere e que se mantém actual: como explicar que a indisciplina e os comportamentos disruptivos em geral surjam mais frequentemente associados, nas escolas, ao género masculino? Sendo esta uma realidade tanto empírica como estatisticamente demonstrável, o que leva a que os rapazes, de um modo geral, tendam a comportar-se pior na escola? Serão determinantes as características biológicas e psicológicas associadas a cada um dos géneros, as mesmas que levam a que também haja mais delinquentes, criminosos e presidiários entre os homens? Ou é a escola, da forma como tradicionalmente se organiza, que tende a valorizar determinados estereótipos atitudinais e comportamentais mais associados aos género feminino?
    Poderá ser um pouco de tudo isto, mas há um factor de natureza mais sociológica não menos relevante: antes da escolaridade ser obrigatória, eram quase só os rapazes que iam à escola. Numa família pobre ou mesmo remediada, era comum os rapazes estudarem pelo menos o tempo suficiente para aprenderem a ler e escrever, enquanto as suas irmãs ficavam em casa. E é quando começam a ser mandadas à escola que muitas raparigas, vendo nos estudos a possibilidade de ter uma vida diferente das suas mães e avós, e sabendo que ao primeiro sinal de insucesso serão retiradas da escola, não hesitam: agarram essa oportunidade com unhas e dentes…

Análise do poema "Olha, Marília, as flautas dos pastores", de Bocage

  Tema: enaltecimento da mulher amada.
 
 
Assunto: descrição de uma natureza campestre aprazível, apenas possível pela presença da mulher amada; de contrário teria o efeito oposto no sujeito: a natureza entristecê-lo-ia.
 
 
Estrutura interna


 
1.ª parte (vv. 1-12) – Descrição de uma natureza idealizada (campestre e pastoril) ® o sujeito convida Marília a admirar este cenário idílico, bucólico, harmonioso, alegre suave:

                 
 
NOTAS:
 
            1.ª) Trata-se de um quadro que “obedece” às características do locus amoenus clássico, sintetizado nas duas exclamações do verso 12: “Que alegre campo! Que manhã tão clara!”.
            No entanto, esta descrição dinâmica não é neutra, há um clima de sensualidade que percorre toda esta 1.ª parte. Marília é convidada, pelo sujeito poético e em conjunto com ele, a admirar um quadro da Natureza que convida ao amor: “Incitam nossos ósculos ardentes”, “o rouxinol suspira”, “a abelhinha sussurrando”. Os dois amantes deverão integrar-se no ambiente festivo e sensual da Natureza.
 
            2.ª) Por outro lado, trata-se de um quadro bucólico:
. a luminosidade das águas do Tejo deslizando suavemente;
. a brisa leve e acariciadora, graciosamente personificada na imagem mitológica dos Zéfiros a brincar brandamente com as flores;
. as flores, as borboletas, o rouxinol, a abelhinha;
. as flautas dos pastores, cujo som ameno condiz com a simplicidade dos pastores e do cenário campestre;
. as sensações auditivas, visuais e tácteis;
. os Amores com os seus beijos apaixonados;
. a natureza harmoniosa e idílica:
- som das flautas;
- sorrir do Tejo e o brincar dos Zéfiros;
- borboletas de mil cores;
- suspiros do rouxinol e murmúrios da abelhinha;
- a harmonia entre a natureza e o estado de alma do sujeito poético, pelo menos enquanto vir Marília.
 
            3.ª) São vários os recursos expressivos que sustentam a descrição da Natureza:
. sensações:
– visuais: olha, olha, vê;
– auditivas:   as flautas dos pastores soam;
“o rouxinol suspira”;
“nos ares sussurrando”;
– táteis:   “... não sentes / Os Zéfiros brincar...”;
“Vê como ali beijando-se...”;
“Incitam nossos ósculos...”;
. personificação do Tejo, do rouxinol, das borboletas e da abelhinha;. verbos no imperativo (olha, olha, olha, vê) que convidam a “saborear” o espectáculo da Natureza;
. emprego do diminutivo abelhinha marcando a subjectividade do sujeito;
. anáforas (“Olha, Marília...” / “Olha o Tejo...”; “Ora nas folhas (...) / Ora nos ares...”), reforçando o carácter dinâmico da descrição;
. hipérbole:   “As vagas borboletas de mil cores!”;
“Mais tristeza que a morte...”;
. hipérbato:   “Vê como ali beijando-se os Amores”;
. metáfora hiperbólica: “ósculos ardentes” (v. 6);
. substantivação: “as inocentes” (v. 7);
. adjetivação;
. intensificação: “Que”; ”tão”;
. frases elípticas e exclamativas (“Que alegre campo! Que manhã tão clara!”) transmitindo a posição do sujeito poético face ao quadro descrito.
 
 
2.ª parte (vv. 13-14) – O sujeito poético alerta Marília para a tristeza que a Natureza lhe causará se não a vir.
 
Conclusões:
. a presença da amada (Marília) é imprescindível para a felicidade do sujeito poético no meio da Natureza;
. a Natureza é vista como um cenário harmónico, perfeito, denominado locus amoenus, propício à partilha amorosa; a pequena nota romântica é diluída na profusão da amenidade.
 
 
NOTAS:
 
            1.ª) A relação entre a Natureza e o estado de alma do sujeito assenta em alguma incerteza:
            A relação entre o sujeito e a Natureza é sempre múltipla:
– ou a Natureza reflecte, como um espelho, o estado de espírito do sujeito;
– ou contrasta com o sujeito, pois nela ele não encontra a felicidade de outrora, alterada que está a ligação amorosa;
– ou comunga o estado de espírito, partilhando os sentimentos dos amantes.
 
            2.ª) Os sentimentos dominantes no poema são a alegria (1.ª parte) e a tristeza (2.ª parte). Assim sendo, as duas partes do poema articulam-se por uma relação de oposição, marcada pela conjunção adversativa mas: se a amada está presente, tudo é belo; se a amada não está presente, tudo causa tristeza. Essa oposição está exemplificada nos dois últimos versos pelo contraste entre a manhã (luz) e a noite (obscuridade).
 
            3.ª) No que diz respeito aos recursos expressivos, temos:
– o abandono do discurso descritivo, predominante na 1.ª parte;
– o emprego exclusivo dos discursos de 1.ª e 2.ª pessoas, marcando a relação do sujeito com a mulher amada;
– a utilização da interjeição e da exclamação, marcando o carácter subjectivo (romântico) da linguagem;
– o trocadilho: “vês (...) não te vira”;
– a hipérbole e a metáfora: “Mais tristeza que a morte me causara”.
 
            4.ª) Estão presentes no poema “dois tipos de descrição”:
® Clássica:
. vocabulário e construção gramatical utilizada: latinismos cadentes (harmoniosos), Zéfiros (ventos brandos do ocidente), Amores (filhos de Vénus e Marte), ósculos ardentes (beijos intensos), inocentes (inofensivas), vagas (errantes, vagueantes);
. uso do pretérito mais-que-perfeito simples (vira, causara) equivalente ao imperfeito do conjuntivo (se eu não te visse) e ao condicional simples (mais tristeza me causaria).
 
® Romântica:
. pontuação;
. abundância de exclamações (vv. 1-2, 5-6, 6-7, 12, 13);
. interjeição “ah” (v. 13);
. vocabulário próprio da sensibilidade romântica: “o rouxinol suspira” (v. 9), “morte” (v. 14).
 

Características


 
Linguagem e recursos poético-estilísticos
 
            A forma do poema (nível fónico) é nitidamente clássica: um soneto, com versos decassilábicos heróicos, de ritmo binário, combinados com alguns sáficos (vv. 2, 9-12), em que o ritmo surge mais entrecortado; rima interpolada, emparelhada e cruzada, segundo o esquema ABBA / ABBA / CDC / DCD, consoante (“pastores”/”flores”), grave ou feminina (“cadentes”/”sentes”), pobre (“pastores”/”flores”) e rica (“cadentes”/”sentes”). Observem-se também os exemplos de transporte nos versos 3-4, 5-6, e as aliterações em pl (v. 7) a sugerir o voo das borboletas e em s e t no verso 11 a sugerir o ruído do voo da abelha.
 
            A nível morfossintáctico, os verbos encontram-se maioritariamente no presente a traduzir um quadro estático, observado simultaneamente pelo emissor e pelo receptor. Os verbos, no geral intransitivos, revestem-se do aspecto durativo, a traduzir a durabilidade das acções e contrastam com os transitivos dos últimos dois versos a marcar a súbita mudança de sensações. O imperativo (“Olha”, “Vê”) traduz o convite do sujeito poético à amada para contemplar a Natureza harmoniosa, alegre e suave. Neste contexto ainda, a presença do verbo “ver” é muito significativa. Além de conferir visualismo à mensagem do poema, remete para a noção de que o amor nasce da visão e de que a presença da amada é necessária para que a natureza tenha valor para os amantes.
            É notório também um tom coloquial no poema, traduzido pela função fática e apelativa da linguagem veiculadas pelo vocativo (“Marília”), pela frase interrogativa “não sentes?”, pelos imperativos “olha” (repetido três vezes), “vê” e pelo designativo “ei-las”. O tom coloquial é também acentuado pela função expressiva patente nas exclamações. Na realidade, o poema é um monólogo que parece um diálogo. As frases exclamativas/apelativas e interrogativas traduzem também um intimismo afectivo e sensorial entre o sujeito poético que fala e a sua muda interlocutora.
            Os substantivos (o Tejo a sorrir, os ventos brandos, as flores, as abelhas, as flautas e os pastores) e os adjectivos traduzem um quadro bucólico, uma natureza harmoniosa e idílica – “locus amoenus”; “aurea mediocritas”.
            O vocabulário é latinizante (cadentes, ósculos, vagas, Zéfiros), traduzindo a erudição do poeta e a sua formação clássica. A anáfora “Ora (...) / Ora...” evidencia os dois movimentos opostos da abelha; “Olha (...) / Olha” traduz o convite a Marília.
            A conjunção adversativaMas” e a interjeiçãoah” marcam a mudança da 1.ª para a 2.ª parte numa relação de oposição e prenunciam o sofrimento do sujeito lírico perante a ausência da mulher amada.

            A nível semântico, a apóstrofe inicial marca a importância do destinatário da mensagem.  Na descrição da Natureza harmoniosa,  suave,  alegre e idílica,  destacam-se as sensações visuais, tácteis e auditivas, as personificações (Tejo, Zéfiros, Amores), traduzindo a subjectividade do discurso e a sua formação clássica, e outras nos versos 9 e 11, as exclamações a traduzirem a exaltação da alegria festiva da Natureza – a exclamação do verso 13 traduz a situação dolorosa hipotética – e as interrogações, sugerindo o tom coloquial da linguagem.
            O diminutivo abelhinha sugere carinho.
            Realcem-se ainda as hipérboles “borboletas de mil cores”, “ósculos ardentes”, “Mais tristeza que a noite me causara” (comparação); o trocadilho “vês (...) não te vira...” (v. 13).

 
Intertextualidade: “Olha, Marília...” e “A fermosura desta fresca serra” (Camões)
 
Estrutura interna
  
1.ª parte (2 quadras) – Descrição da Natureza, concretizada (através da acumulação de frases nominais) de uma forma mais objectiva que no caso do soneto de Bocage. O quadro aponta também para a Natureza de tipo clássico (“locus amoenus”): beleza, formosura, frescura, verdura, calma.
 
2.ª parte (2 tercetos) – Relação do sujeito com a amada e consequente visão da Natureza: sem a presença dela, o sujeito poético fica insensível à beleza da Natureza.
 
Elementos que compõem a paisagem
 

Olha, Marília, as flautas dos pastores

A fermosura desta fresca serra

Flautas dos pastores
O Tejo
As flores
As plantas
As borboletas
O arbusto
O rouxino
A abelhinha
A serra
Os castanheiros
Os ribeiros
O mar
A terra
O esconder do so
Os gados
As nuvens

locus amoenus

locus amoenus

 

Diferenças entre os sonetos

 

         

                                   

sonetos

 
elementos
 
Bocage
 
Camões

Elementos se-lecionados
. espaço mais restrito
. presença de elementos humanos
. rouxinol  como  elemento  perturbador
 
. espaço mais alargado: presença dos quatro elementos primordiais ® terra, água, ar e fogo
 
Qualidades da natureza
 
. harmoniosa e luminosa: destaque para o convite ao amor
. formosura, calma, variedade e raridade: destaque para a beleza

 
 
Adjectivação
 
 
 
 
. cadentes, ardentes, vagas, alegre, clara
 
. menor quantidade  de adjectivos: destaque para o sentimento do amor
. fresca, verdes, manso, rouco, estranha, derradeiros, brandos, rara, mor
 
. maior quantidade de adjectivos; destaque para as características dos objectos, à maneira petrarquista
 
Pontuação

. exclamações, interrogação: destaque para a subjectividade

. vírgula, ponto e vírgula, ponto final: discurso mais objectivo


Funções da linguagem
. apelativa (predomínio), expressiva e poética: mensagem mais voltada para o destinatário; domínio do sentimento

. poética e emotiva: mensagem mais voltada para a realidade e para o sujeito poético; domínio da razão

 
Semelhanças entre os sonetos
 


sonetos

 
elementos
 
Bocage
 
Camões
 
Construção do quadro
 
. dinâmico, com evidência para as acções das pessoas, dos entes mitológicos e das aves

. estático: frases nominais, substantivação do infinitivo verbal; forte visualismo da serra ao mar

 
Cenário

. locus amoenus e leve presença do locus horrendus (o suspirar do rouxinol)

. locus amoenus e leve presença do locus horrendus (o rouco som do mar)

 


Aliterações

 

. 2.º verso: monossílabos, dissílabos e trissílabos; quase onomatopaico, a sugerir o som próprio das flautas; a repetição dos fonemas /pl/ (v. 7) a sugerir o voo das borboletas; a repetição do fonema /s/ (v. 11) a sugerir o ruído do esvoaçar da abelha

 . a repetição do fonema /f/ (v. 1) a sugerir frescura; repetição do fonema /t/ (v. 4) a sugerir uma afirmação segura

Personificações

. do Tejo, dos Zéfiros, dos Amores e do rouxinol

. animização dos ribeiros e das nuvens

Anáforas

. Olha, Olha; Ora, Ora

. Sem ti. Sem ti

 
Elementos ro-mânticos
. a natureza é um estado de alma
. a pontuação subjectiva e livre
. a  presença do  rouxinol  e da noite
. o amor sensual

. a natureza é um estado de alma

 
Sentimentos
. amor (mais sensual)
. alegria / tristeza
. amor
. tristeza
 
 
Síntese
SEMELHANÇAS
            1. Nível temático
 
. Descrição da Natureza: “locus amoenus”.
. A personificação dos elementos descritos.
. Relação sujeito poético / mulher / Natureza (de influência petrarquista).
 
            2. Nível formal
 
. Uso do soneto e do verso decassilábico.
. Equilíbrio na construção frásica de cariz latinizante.
. O processo antitético.
DIFERENÇAS
            1. Nível temático
 

Bocage

Camões

. Descrição da Natureza apoiada numa valorização da sensualidade e da subjetividade.
. Convite ao amor, evidenciando a sua componente sensual e reforçando o papel ativo do sujeito poético na relação amorosa.
. Descrição objetiva da Natureza.
 
. O sujeito poético é um ser passivo face ao amor, totalmente dependente da amada.
 
            2. Nível formal
 
. Tom oralizante criado através do emprego de:
            – imperativos;
            – exclamações;
            – diminutivos;
            – interrogações.
 
            As características diferenciadoras constituem as marcas românticas da poesia de Bocage.
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