1. Origem e
Condição Social
- Bertoleza é uma mulher negra e escravizada, descendente direta
de africanos escravizados, que simboliza a opressão e a exploração do
sistema escravocrata.
- A sua trajetória como escrava é marcada pelo trabalho árduo,
desumanização e falta de acesso a qualquer direito básico
- Enganada com a promessa de liberdade, acredita poder comprar a sua
alforria com o dinheiro acumulado após anos de trabalho, com o apoio de
João Romão, mas descobre mais tarde que ainda é legalmente escrava e que
foi intencionalmente ludibriada por ele.
- A sua condição social é caracterizada pelos seguintes traços:
·
Subalternidade e exploração:
·
Bertoleza vive numa situação de extrema subalternidade,
tanto no âmbito social quanto nas relações pessoais, sendo retratada como uma figura
subalterna, vítima de exploração contínua, seja como escrava de direito ou
como trabalhadora livre de facto.
·
Apesar de acreditar ter conquistado algum grau de
independência, permanece submetida à opressão de João Romão, que usufrui do seu
trabalho sem oferecer contrapartidas justas.
·
Trabalho excessivo: a sua trajetória é marcada
pelo trabalho exaustivo, nomeadamente como cozinheira e responsável por
diversas atividades que sustentam os empreendimentos do amante.
·
Ausência de direitos:
·
A personagem acredita ser livre, porém, na
realidade, não possui autonomia real nem proteção social, pois depende de João
Romão, o que a coloca numa posição de vulnerabilidade extrema, tanto emocional
como material.
·
Relação com o sistema escravocrata e o racismo
estrutural:
·
Formalmente, a escravatura está próxima do seu
fim, todavia a sociedade perpetua a marginalização de pessoas negras como
Bertoleza, que continuam sujeitas a relações de trabalho similares à
escravidão.
·
Na prática, ela é duplamente explorada – como
mulher e como negra –, sendo excluída do progresso que ajuda a construir.
·
Desamparo social:
·
Bertoleza não encontra qualquer suporte em
nenhuma estrutura da sociedade: não tem familiares ou membros da comunidade que
se preocupem com ela e a protejam; o sistema legal apenas reforça a sua
condição de mulher explorada, permitindo que João Romão a denuncie como escrava
fugitiva.
- Vive numa situação de extrema subalternidade, tanto no âmbito
social quanto nas relações pessoais.
2. Aparência
Física
- Cor da pele:
- Bertoleza é descrita como uma mulher negra, o que, no contexto da
obra, indicia a sua origem e condição social marginalizada.
- Constituição física:
- É uma mulher robusta e corpulenta, com um corpo moldado pelo
trabalho árduo e constante.
- A sua força física constitui um reflexo das tarefas pesadas que
desempenha diariamente, como cozinhar, transportar pesos e tratar do
cortiço.
- Marcas do trabalho:
- As suas mãos são grossas e calejadas, evidenciando anos de
serviço braçal.
- A pele apresenta cicatrizes e rugosidades, sinais claros da
vida de esforço incessante e de privação.
- Traços faciais:
- Os seus eus traços são descritos como ásperos e marcantes,
espelhando o sofrimento que pauta a sua vida.
- Os olhos, cansados e fundos, transmitem um misto de resignação e
dureza, resultado das dificuldades enfrentadas.
- Vestuário:
- Bertoleza geralmente aparece vestida com roupas simples, pobres e
gastas, adequadas à sua condição social e às funções que exerce no
dia a dia.
- As roupas, frequentemente, estão sujas ou marcadas pelo trabalho na
cozinha, reforçando a sua associação com o esforço físico constante.
- Postura:
- A sua postura demonstra cansaço crónico, refletindo o peso
literal e figurativo que marca a sua existência.
- Apesar disso, há na sua figura uma energia prática,
característica de quem está habituada a viver para o trabalho.
- Cabelos:
- Os cabelos são crespos, frequentemente presos de maneira
funcional, sem qualquer preocupação estética, dado o foco da sua vida ser
a sobrevivência e o trabalho.
- Idade aparente:
- Apesar de não ser idosa, Bertoleza aparenta ser mais velha do que
realmente é, pois o trabalho exaustivo e as condições adversas a que
sempre esteve sujeita desgastaram-lhe a aparência.
- A expressão do rosto evidencia uma vida de privações e sacrifícios.
- Em suma, o retrato físico de Bertoleza não é apenas um momento
descritivo do romance, mas também uma forma de simbolismo naturalista,
visto que o seu corpo é apresentado como uma extensão da sua condição
social: uma ferramenta explorada até ao limite. Cada detalhe físico
reforça a ideia de que atua como representante da classe trabalhadora e do
grupo social marginalizado pela sociedade escravocrata e patriarcal da
época
3. Caracterização
psicológica
1. Trabalhadora
e abnegada: É um símbolo da classe trabalhadora, sendo
incansável nas suas funções e no seu apoio ao desenvolvimento do cortiço.
2. Resignada e submissa
·
Bertoleza é profundamente resignada ao seu
destino, aceitando sem resistência explícita as adversidades e opressões que
enfrenta. Por outro lado, aceita passivamente as circunstâncias da sua relação
com João Romão, deixando-se explorar tanto como companheira quanto como
trabalhadora.
·
Sua submissão está enraizada no condicionamento
social e histórico, típico de uma sociedade escravocrata que negava a
agência de pessoas como ela.
·
Confia cegamente em João Romão, mesmo quando ele
a explora e manipula, evidenciando sua falta de perspetivas de autonomia
emocional.
3. Forte e resiliente
·
Apesar de ser submissa, Bertoleza demonstra uma força
interior marcante, enfrentando com coragem as dificuldades da vida e
aceitando sua condição sem revoltas explícitas.
·
A sua capacidade de suportar o trabalho árduo, os
maus-tratos e a exclusão social é um testemunho de sua resiliência
psicológica.
·
Essa força, no entanto, é muitas vezes canalizada
para o trabalho incessante e não para questionar ou resistir à exploração.
4. Ingénua e vulnerável
·
Bertoleza é apresentada como uma personagem ingénua,
especialmente na sua relação com João Romão, em quem confia, mesmo sendo vítima
da sua ambição desmedida.
·
Acredita ter alcançado a liberdade e vê no
companheiro um protetor, sem perceber que ele a explora para alcançar os seus
próprios objetivos.
·
A sua vulnerabilidade emocional impede-a
de ver a traição iminente e a manipulação contínua de que é vítima por parte de
João Romão.
5. Dedicada e com espírito de sacrifício
·
Bertoleza é extremamente dedicada ao
trabalho e à relação com João Romão, muitas vezes em detrimento de si mesma.
·
O sacrifício pessoal é uma característica
central da sua personalidade, pois entrega-se completamente ao objetivo de
ajudar João Romão a prosperar.
·
Essa dedicação cega faz dela uma personagem
trágica, pois tudo o que constrói acaba sendo usado contra si.
6. Solitária e Carente Afetivamente
·
A vida de Bertoleza é marcada pela solidão,
dado que não tem família ou apoio comunitário, o que a torna emocionalmente
dependente de João Romão.
·
A sua carência afetiva é evidente na
maneira como se agarra à relação com ele, vendo-o como sua única fonte de
estabilidade e segurança.
7. Grata
·
Bertoleza nutre um sentimento de gratidão
ilusória em relação a João Romão, acreditando que ele a ajudou a conquistar
sua liberdade.
·
Essa gratidão é manipulada pelo companheiro para a
manter submissa, alimentando um ciclo de exploração emocional e material.
8. Medrosa e Desamparada
·
Ao longo da narrativa, Bertoleza demonstra um medo
profundo de perder o pouco que acredita ter conquistado, como, por exemplo,
a sua liberdade e a relação com João Romão.
·
Esse medo deixa-a desamparada,
especialmente quando descobre que foi enganada sobre a sua alforria.
9. Digna: dignidade Trágica
·
Mesmo sujeita à submissão e ao sofrimento,
Bertoleza mantém uma certa dignidade trágica, especialmente na sua
decisão final de tirar a própria vida.
·
O suicídio é um ato de desespero, mas
também de resistência, pois ela recusa-se a ser recapturada como escrava e a perder
sua humanidade.
10. Alienada e sem Consciência Crítica
·
Bertoleza é alienada em relação à própria
condição de exploração, não desenvolvendo uma consciência crítica sobre
a sua situação.
·
Essa alienação reflete o sistema opressor em que
vive, que não oferece meios ou possibilidades para que questione o seu lugar na
sociedade.
11. Simbolismo Psicológico
·
Psicologicamente, Bertoleza representa o
arquétipo da mulher negra escravizada e explorada, cuja força e
sacrifício são usados por outros para prosperarem.
·
A sua trajetória psicológica reflete a crítica naturalista
à sociedade brasileira, mostrando como os indivíduos mais vulneráveis eram
esmagados por um sistema opressor e desumano.
Em suma, Bertoleza é uma mulher forte, porém
aprisionada pelas circunstâncias históricas e sociais. Alguns traços, como a
submissão, a dedicação e a ingenuidade tornam-na uma personagem profundamente
trágica, enquanto a força e a dignidade perante o sofrimento a transformam num
símbolo da exploração e resistência das classes oprimidas.
4. Relação com
João Romão
1. Início da Relação
·
A relação de Bertoleza com João Romão começa de
forma utilitária:
- João
Romão oferece ajuda a Bertoleza para comprar a sua suposta alforria,
consolidando um vínculo que se baseia na dependência emocional e
material.
- Para
Bertoleza, João Romão representa inicialmente uma possibilidade de liberdade
e estabilidade, o que faz com que confie nele cegamente.
·
Já para o amante, Bertoleza é um instrumento
de trabalho e um meio para alcançar os seus objetivos económicos.
2. Dependência e Submissão
·
Submissão de Bertoleza:
- Bertoleza submete-se completamente a João Romão, tanto emocional
quanto fisicamente, tornando-se sua companheira e trabalhadora
incansável.
- Acredita que deve lealdade a João Romão por ter "comprado" a
sua liberdade, mesmo que isso a mantenha num estado de constante
exploração.
·
Dependência emocional:
- A solidão de Bertoleza leva a que crie uma relação afetiva com João
Romão, mesmo que ele não demonstre reciprocidade.
- O homem torna-se o centro da sua vida, consolidando a sua dependência
emocional em relação a ele.
3. Exploração e Desequilíbrio de Poder
·
João Romão vê Bertoleza como uma ferramenta de
trabalho, explorando a sua força e dedicação para expandir o seu património.
Ela trabalha sem descanso, seja na cozinha, no comércio ou na manutenção do
cortiço, contribuindo diretamente para o enriquecimento de João Romão.
·
Há um desequilíbrio extremo de poder na
relação: João Romão detém o controle económico, emocional e até legal sobre
Bertoleza, manipulando-a sem oferecer qualquer contrapartida justa.
4. Ausência de Amor Verdadeiro
·
A relação não é baseada em amor ou afeto
recíproco:
- Bertoleza nutre sentimentos de
gratidão e apego emocional, acreditando num vínculo afetivo com João
Romão.
- João Romão, por outro lado, nunca
demonstra amor ou cuidado genuíno por ela, tratando-a como um recurso
útil para atingir os seus objetivos materiais.
5. Traição e Abandono Final
·
A traição de João Romão é o clímax da relação:
- Quando toma consciência de que Bertoleza representa um obstáculo para
as suas ambições de ascensão social, denuncia-a às autoridades como
escrava fugitiva, para se livrar dela e consolidar um casamento com
Zulmira, que lhe garante entrada na elite social.
- A traição revela a natureza calculista e desumana de João
Romão, que descarta Bertoleza quando deixa de ser útil para os seus
planos.
6. Papel Simbólico da Relação
·
Simbolismo de exploração:
- A relação entre os dois é uma metáfora das dinâmicas de exploração de
classe, raça e género.
- João Romão representa o capitalista ambicioso, enquanto Bertoleza
simboliza a classe trabalhadora e as mulheres negras exploradas no Brasil
do século XIX.
·
Crítica à hipocrisia social:
- A relação expõe a hipocrisia de uma sociedade que permite a ascensão
económica de João Romão, mas às custas da exploração e do sofrimento de
pessoas como Bertoleza.
Em suma, a relação entre Bertoleza e João Romão é
profundamente desigual, marcada pela exploração, submissão e ausência de
reciprocidade emocional. Para João Romão, a escrava é apenas um meio para satisfazer
as suas ambições, enquanto, para ela, ele representa segurança e uma esperança
ilusória. O desfecho trágico da relação ressalta as injustiças sociais e
raciais da época, alinhando-se com a crítica naturalista presente em O
Cortiço.
5. Papel no
Desenvolvimento do Cortiço
1. Trabalhadora
a. Trabalho físico e incansável:
a.
Bertoleza é a principal força de trabalho na vida
de João Romão, desempenhando tarefas essenciais como cozinhar, lavar, limpar e
cuidar da organização geral.
b.
Ela assume também responsabilidades na manutenção
do comércio que abastece o cortiço, garantindo o sustento e o lucro que
permitem a João Romão expandir os seus negócios.
b. Instrumento de acumulação de capital:
a.
O trabalho árduo e praticamente gratuito de
Bertoleza é uma das bases da prosperidade de João Romão.
b.
Ela representa a classe trabalhadora explorada,
cujo esforço e sacrifício alimentam o crescimento do patrimônio alheio.
- Estímulo para a ambição de João Romão
a.
Bertoleza, ao unir-se a João Romão, contribui
diretamente para que ele concentre a energia e ambição no desenvolvimento do
cortiço.
b.
O seu trabalho permite que João Romão poupe
recursos e os invista na expansão do cortiço, como a construção de novas casas
para arrendar e a ampliação dos negócios.
c.
Figura que facilita o empreendedorismo de João
Romão: enquanto Bertoleza se ocupa com as tarefas quotidianas, ele pode dedicar-se
exclusivamente à acumulação de riqueza.
3.
Símbolo de continuidade e estabilidade
do cortiço
a.
Bertoleza é um dos pilares do funcionamento
cotidiano do cortiço. Por um lado, a sua presença garante a alimentação dos
trabalhadores e moradores, fortalecendo a dinâmica de produção e sobrevivência
no espaço. Por outro, representa a força constante que sustenta a vida no
cortiço, mesmo no meio às adversidades e à pobreza.
b.
Estabilidade invisível: embora seja fundamental
no desenrolar da narrativa, Bertoleza permanece invisível para o público, sendo
entendida apenas como uma peça funcional no mecanismo do cortiço.
4. Papel no contexto social do cortiço
a.
Bertoleza, como mulher negra e subalterna,
simboliza o elo entre a base explorada e os interesses dominantes.
b.
A sua presença reforça a crítica social de O
Cortiço, mostrando como a ascensão econômica de figuras como João Romão
depende da exploração de trabalhadores como Bertoleza.
- Desencadeadora
do desfecho da narrativa
a.
O papel de Bertoleza não se limita ao crescimento
inicial do cortiço, mas também influencia o desfecho trágico da narrativa. Por
um lado, quando João Romão decide traí-la, entregando-a às autoridades como
escrava fugitiva, a atitude dele reflete a dinâmica de exploração levada ao
extremo. Por outro, esta atitude, que culmina no suicídio de Bertoleza,
simboliza o caráter predatório do sistema social e econômico do cortiço.
6. Simbolismo de classe e raça no desenvolvimento do cortiço
a.
Bertoleza é um símbolo da mão de obra
explorada, que sustenta tanto o crescimento material do cortiço quanto a
crítica social naturalista de Aluísio Azevedo.
b.
Representa também a confluência das opressões de raça,
género e classe, sendo a figura que trabalha incessantemente para um
sistema que a descarta quando deixa de ser útil.
c.
A relação entre Bertoleza e o cortiço é uma
analogia direta com o funcionamento do capitalismo nascente no Brasil: a
riqueza de poucos é construída sobre o trabalho e o sacrifício dos mais pobres.
7. Impacto final no cortiço
a.
O suicídio de Bertoleza tem um impacto simbólico
no cortiço:
i.
marca o ponto culminante da denúncia social de
Aluísio Azevedo, evidenciando o custo humano do progresso material;
ii.
o seu sacrifício final expõe as injustiças do
sistema social e encerra a trajetória de uma personagem que deu tudo, mas não
recebeu nada em troca.
Em suma, o papel de Bertoleza no desenvolvimento
do cortiço é essencial tanto do ponto de vista prático quanto simbólico. Ela é
a força invisível que sustenta a prosperidade económica de João Romão e a
estrutura quotidiana do cortiço. No entanto, a sua trajetória também denuncia a
exploração de classe, raça e género, expondo as desigualdades sociais e económicas
que marcam o romance. A sua presença reforça a crítica naturalista ao sistema
opressor que subjuga os mais vulneráveis para alimentar o progresso de poucos.
6. Simbolismo
a) Símbolo de exploração
·
Bertoleza é um símbolo vivo da exploração:
- Trabalha incansavelmente sem receber benefícios proporcionais ao seu
esforço.
- A sua dependência emocional e económica de João Romão mantém-na numa
situação de servidão disfarçada.
·
Representa o sistema socioeconómico desigual
que caracteriza a sociedade brasileira da época, onde a riqueza de poucos é
construída sobre o trabalho de muitos.
·
É uma metáfora para a opressão das classes mais
baixas, destacando a desigualdade social e racial da época
b) Figura de sacrifício
·
A sua vida é marcada pelo sacrifício constante:
sacrifica a liberdade, a saúde e, finalmente, a vida em benefício de João Romão
e do sistema que ele representa.
·
O suicídio de Bertoleza é um ato final de
resistência e tragédia, destacando a ausência de alternativas reais para os
oprimidos.
c) Símbolo da
Transição Histórica
·
Bertoleza reflete a transição histórica entre o
sistema escravocrata e o trabalho assalariado precário no Brasil:
- Embora formalmente livre, continua a viver como escrava, subordinada
a um sistema que perpetua a desigualdade racial e económica.
- A sua figura denuncia o facto de a abolição da escravatura não ter
trazido mudanças imediatas para a população negra e trabalhadora.
- A sua trajetória reflete a realidade das mulheres negras escravizadas
no Brasil do século XIX.
7. Representatividade
social
a)
Representação da mulher negra e escravizada
·
Bertoleza simboliza a condição das mulheres
negras no Brasil pós-escravidão, ainda profundamente marcadas pela exploração e
pela marginalização.
·
Apesar de acreditar estar livre, a sua vida
reflete uma escravidão velada, onde o trabalho incessante e a submissão
continuam a definir a sua existência.
·
Constitui uma síntese das opressões cruzadas de raça,
género e classe, sendo relegada para o papel de servidora e trabalhadora
incansável, sem direitos ou reconhecimento.
b) Retrato da classe
trabalhadora
·
Como parte da classe trabalhadora explorada,
Bertoleza é o motor que impulsiona o desenvolvimento do cortiço e a ascensão
económica de João Romão.
·
Representa a massa de trabalhadores anónimos que
sustentam o progresso material da sociedade, mas que são descartados quando
deixam de ser úteis, recordando, por exemplo, a figura de Bailote em Aparição,
romance de Virgílio Ferreira.
c) Exclusão social
e invisibilidade
·
Bertoleza vive à margem da sociedade, sem acesso
a qualquer suporte institucional ou comunitário.
·
A sua condição reflete a exclusão estrutural de
mulheres negras, que, mesmo após o fim da escravidão formal, continuam presas a
relações de trabalho abusivas e desiguais.
d) Crítica
social:
i) Crítica ao racismo
estrutural
·
Bertoleza é um símbolo do racismo estrutural:
o
A sociedade retratada no romance é construída
sobre a desumanização, a exploração e a exclusão de pessoas negras.
o
A exploração e traição final de Bertoleza reforçam
a ideia de que as relações raciais permanecem baseadas na opressão e na
desigualdade.
ii)
Desigualdade de género
·
Além de ser negra e pobre, Bertoleza é uma
mulher, o que a coloca em uma posição de vulnerabilidade ainda maior.
·
A sua relação com João Romão é marcada pela
dependência e pelo abuso, refletindo as dinâmicas de género características de
uma sociedade patriarcal.
iii)
Representação da exclusão económica
·
A personagem simboliza a classe trabalhadora que
vive em condições miseráveis, enquanto os frutos de seu trabalho enriquecem uma
elite económica, como João Romão.
·
A sua exploração reflete a crítica naturalista ao
capitalismo nascente, onde os mais pobres são reduzidos a ferramentas para o
lucro.
8. Desfecho
trágico
1. Contexto do suicídio
·
O suicídio de Bertoleza ocorre após João Romão, na
sua busca desenfreada por ascensão social, decidir entregá-la às autoridades
como escrava fugitiva.
·
Ao perceber que será capturada e devolvida à
condição formal de escrava, Bertoleza opta por se suicidar.
·
A cena final é carregada de dramatismo e
extremamente simbólica, refletindo o fim de uma existência marcada pela
exploração e desamparo.
2. Significado imediato do suicídio
a) Resistência final
·
O ato de suicídio pode ser interpretado como a
última forma de resistência de Bertoleza:
o
Ao cometer suicídio, ela recusa submeter-se
novamente à condição de escrava, preservando a dignidade frente à brutalidade
do sistema opressor.
o
Por outro lado, o suicídio configura um gesto de
desespero, mas também de afirmação da sua humanidade diante de uma sociedade
que a reduzia a uma mercadoria.
b) Desamparo Absoluto
·
O suicídio evidencia o desamparo total de
Bertoleza, que, ao longo da narrativa, é explorada e traída por aqueles em quem
confia.
·
Sem família, comunidade ou apoio social, encontra-se
completamente isolada, sem alternativas para escapar ao seu destino trágico.
3. Simbolismo social do suicídio
a) Denúncia da exploração
·
A morte de Bertoleza é o culminar da crítica
social do romance, simbolizando os custos humanos da exploração.
·
Ela é o retrato do trabalhador que, após ter a sua
força física e emocional explorada até o limite, é descartado quando deixa de
ser útil.
b) Reflexo do Racismo e da Escravidão
·
O suicídio de Bertoleza escancara a permanência
do sistema escravocrata, mesmo após a sua abolição formal: a morte simboliza
como as estruturas racistas e opressoras ainda aprisionam as pessoas negras,
negando-lhes qualquer possibilidade de liberdade ou dignidade.
·
É um ato de denúncia contra a desumanização
promovida pelo racismo estrutural da época.
c) Crítica ao individualismo e à ganância
·
O desfecho também reflete a crítica ao individualismo
e à ganância, personificados em João Romão:
o
Ele ascende e enriquece à custa de Bertoleza e,
no final, não hesita em a sacrificar para atingir os seus objetivos sociais e
económicos.
o
O suicídio expõe a brutalidade das relações
humanas no contexto de um sistema marcado pela ambição desmedida e pela falta
de solidariedade.
4. Relação com o Naturalismo
a) Determinismo e Tragédia
·
O suicídio de Bertoleza é coerente com a
perspectiva naturalista do romance:
o
A personagem é apresentada como vítima das forças
sociais e históricas que determinam o seu destino, como o racismo, o machismo e
a exploração económica.
o
A sua morte é inevitável dentro desse contexto,
reforçando a ideia de que os indivíduos mais vulneráveis não têm escapatória no
sistema opressor.
b) Animalização e Desumanização
·
Ao longo do romance, Bertoleza é frequentemente
descrita de forma desumanizada, quase como uma extensão das máquinas e do
trabalho.
·
O seu suicídio marca a rutura final com essa
lógica: ao tirar a própria vida, ela recupera uma dimensão humana, recusando-se
a continuar a ser tratada como um objeto.
5. Impacto narrativo e simbólico
a) Clímax da tragédia
·
O suicídio de Bertoleza é o ponto culminante da
tragédia do romance, encerrando a sua trajetória com um gesto de forte impacto
emocional.
·
Serve como uma espécie de grito silencioso contra
a injustiça, denunciando as condições desumanas impostas aos mais vulneráveis.
b) Reflexão sobre a sociedade
·
A morte de Bertoleza força o leitor a confrontar
as desigualdades e violência estruturais que permeiam a sociedade retratada na
obra.
·
Ela é uma metáfora do sistema que destrói aqueles
que mais contribuem para o seu funcionamento, mas que nunca recebem o devido reconhecimento
ou justiça.
Em suma, o
suicídio de Bertoleza é uma das cenas mais poderosas e simbólicas de O
Cortiço. Ele representa a denúncia final de Aluísio Azevedo contra o
racismo, a exploração económica e a desumanização das classes trabalhadoras,
bem como o desamparo total dos oprimidos na sociedade da época. Para Bertoleza,
é tanto um ato de desespero quanto de resistência, marcando o desfecho
inevitável de uma vida de opressão. A sua morte destaca a injustiça de um
sistema que a explorou até o limite e, finalmente, a descartou.