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terça-feira, 24 de dezembro de 2024

A primeira árvore de Natal


A rainha Vitória, o príncipe Alberto e os filhos
reúnem-se à volta de uma árvore de Natal, em Dezembro de 1848.
Museu Webster. Domínio público

    O primeiro registo escrito de uma árvore de Natal decorada vem de Riga, na Letónia, em 1510. Os homens do grémio dos comerciantes locais decoraram uma árvore com rosas artificiais, dançaram à volta dela no mercado e depois atearam-lhe fogo. A rosa foi utilizada durante muitos anos e é considerada um símbolo da Virgem Maria.
    Há outra lenda que diz que foi Martinho Lutero, o reformador religioso alemão, quem inventou a árvore de Natal. Segundo a história, numa noite de inverno de 1536, Lutero passeava por um pinhal perto da sua casa em Wittenberg quando, de repente, olhou para cima e viu milhares de estrelas a brilhar como jóias entre os ramos das árvores. Esta visão maravilhosa inspirou-o a montar um abeto à luz de velas em sua casa nesse Natal, para lembrar aos seus filhos o céu estrelado de onde veio o seu Salvador.
    Em 1605, as árvores de Natal decoradas já tinham aparecido no Sul da Alemanha. Nesse ano, um escritor anónimo escreveu que, no Natal, os habitantes de Estrasburgo “montavam pinheiros nas salas de estar (...) e penduravam neles rosas cortadas em papel de várias cores, maçãs, bolachas, papel dourado, doces, etc.”.
    Noutras partes da Alemanha, os buxos ou os teixos eram levados para dentro de casa no Natal, em vez dos abetos. E no ducado de Mecklenburg-Strelitz, onde a Rainha Charlotte cresceu, era costume enfeitar um único ramo de teixo. 
    O poeta Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) visitou Mecklenburg-Strelitz em dezembro de 1798, e ficou muito impressionado com a cerimónia do ramo de teixo que aí presenciou, cujo relato seguinte escreveu numa carta à sua mulher, datada de 23 de abril de 1799: 
Na véspera do dia de Natal, uma das salas, na qual os pais não podem entrar, é iluminada pelas crianças; um grande ramo de teixo é fixado sobre uma mesa a uma pequena distância da parede, uma multidão de pequenas velas é fixada no ramo ... e papel colorido, etc., pende e esvoaça dos ramos. Sob este ramo, as crianças colocam os presentes que pretendem oferecer aos pais, escondendo ainda nos bolsos os que pretendem oferecer uns aos outros. Depois, os pais são apresentados e cada um apresenta o seu presentinho; em seguida, tiram os restantes presentes dos bolsos, um a um e entregam-nos com beijos e abraços.
    Quando a jovem Charlotte deixou Mecklenburg-Strelitz em 1761 e foi para Inglaterra para casar com o Rei George III, levou consigo muitos dos costumes que tinha praticado em criança, incluindo o ramo de teixo no Natal. No entanto, na corte inglesa, a Rainha transformou o ritual essencialmente privado do ramo de teixo da sua terra natal numa celebração mais pública que podia ser desfrutada pela sua família, pelos seus amigos e por todos os membros da Casa Real.
    A Rainha Charlotte colocou o seu ramo de teixo não numa pequena sala de estar, mas numa das maiores salas do Palácio de Kew ou do Castelo de Windsor. Assistida pelas suas damas de companhia, foi ela própria a vestir o ramo. E quando todas as velas de cera estavam acesas, toda a corte se juntava e cantava canções de Natal. A festa terminou com a distribuição de presentes do ramo, que incluía artigos como roupas, jóias, pratos, brinquedos e doces.
    Estes ramos de teixo reais causaram grande alarido entre a nobreza, que nunca tinha visto nada do género. Mas não foi nada comparado com a sensação criada em 1800, quando a primeira verdadeira árvore de Natal inglesa apareceu na corte.
    Nesse ano, a Rainha Charlotte planeou organizar uma grande festa de Natal para as crianças de todas as famílias principais de Windsor. E, pensando num mimo especial para oferecer aos mais novos, decidiu subitamente que, em vez do habitual ramo de teixo, iria envasar um teixo inteiro, cobri-lo com enfeites e frutos, enchê-lo de presentes e colocá-lo no meio do chão da sala de visitas do Queen's Lodge. Uma árvore assim, pensou ela, daria um espetáculo encantador para os mais pequenos contemplarem. E foi o que aconteceu. 
    Quando as crianças chegaram à casa, na noite do dia de Natal, e viram aquela árvore mágica, toda enfeitada com enfeites e vidros, acreditaram que tinham sido transportadas diretamente para o país das fadas e a sua felicidade não tinha limites.
    O Dr. John Watkins, um dos biógrafos da Rainha Charlotte, que assistiu à festa, fornece-nos uma descrição vívida desta árvore cativante “dos ramos da qual pendiam cachos de doces, amêndoas e passas em papéis, frutas e brinquedos, dispostos com muito bom gosto; tudo iluminado por pequenas velas de cera”. Acrescenta ainda que “depois de a companhia ter passeado e admirado a árvore, cada criança recebeu uma porção dos doces que ela continha, juntamente com um brinquedo, e todos regressaram a casa muito satisfeitos”.
    As árvores de Natal passaram a ser o centro das atenções nos círculos da classe alta inglesa, onde constituíam o ponto focal de inúmeras reuniões de crianças. Tal como na Alemanha, qualquer árvore de folha perene podia ser arrancada para o efeito: teixos, buxo, pinheiros ou abetos. Mas eram invariavelmente iluminadas por velas, adornadas com bugigangas e rodeadas por pilhas de presentes. As árvores colocadas em cima das mesas tinham também, normalmente, uma Arca de Noé ou uma quinta modelo e numerosos animais de madeira pintados a dourado dispostos entre os presentes, por baixo dos ramos, para dar um encanto suplementar ao cenário. 
    Aquando da morte da Rainha Charlotte, em 1818, a tradição da árvore de Natal estava firmemente estabelecida na sociedade e continuou a florescer durante as décadas de 1820 e 30. A descrição mais completa destas primeiras árvores de Natal inglesas encontra-se no diário de Charles Greville, o espirituoso e culto funcionário do Conselho Privado, que em 1829 passou as férias de Natal em Panshanger, Hertfordshire, casa de Peter, 5º Conde Cowper, e da sua mulher Lady Emily.
    Quando, em dezembro de 1840, o Príncipe Alberto importou vários abetos de Coburgo, a sua terra natal, estes não eram, portanto, uma novidade para a aristocracia. Mas foi só quando periódicos como o Illustrated London News, Cassell's Magazine e The Graphic começaram a retratar e a descrever minuciosamente as árvores de Natal reais todos os anos, de 1845 até ao final da década de 1850, que o costume de montar tais árvores nas suas próprias casas se generalizou em Inglaterra.
    Em 1860, porém, não havia praticamente nenhuma família abastada no país que não ostentasse uma árvore de Natal na sala de estar ou no salão. E todas as festas de Dezembro organizadas para crianças pobres nesta data tinham como principal atração as árvores de Natal carregadas de presentes. O abeto era agora geralmente aceite como a árvore festiva por excelência, mas os ramos destes abetos já não eram cortados em camadas artificiais, como na Alemanha, mas podiam permanecer intactos, com velas e ornamentos dispostos aleatoriamente sobre eles, como atualmente. 

    A primeira árvore de Natal em Portugal foi instalada no Paço Real das Necessidades, em Lisboa, por D. Fernando II, duque de Saxe-Coburgo-Gotha, o marido de D. Maria II, em meados do século XIX, para recordar a tradição de Natal da sua infância passada na Alemanha. Por volta de 1844, o monarca, nascido em Viena, na Áustria, colocou, no Paço Real das Necessidades, em Lisboa, uma árvore e enfeitou-a para festejar com os sete filhos e com a rainha, D. Maria II, com quem casou a 9 de abril de 1836.
    Originalmente, a árvore era decorada com rosas feitas a partir de papel colorido, maçãs e fios prateados. Já desde o séc. XVIII que a árvore era decorada com velas. As maçãs representavam o episódio bíblico de Adão e Eva. Hoje em dia, as maçãs foram substituídas pelas bolas coloridas, as velas foram trocadas pelas luzes. Só os fios prateados se mantêm.
    O abeto, que era colocado numa sala privada da família real no Palácio das Necessidades, era decorado com velas, laços e bolas de vidro transparente. Também era comum colocar guloseimas na árvore já decorada, como frutas cristalizadas e chocolates. O marido de D. Maria II chegava mesmo a vestir-se de verde e a imitar São Nicolau, o santo que deu origem ao Pai Natal, para entreter os seus sete filhos. O rei consorte entrava na sala com um saco às costas e distribuía presentes pelos príncipes e outras crianças do palácio.
    A árvore de Natal original era mais bonita e mágica que a actual. Tinha os pequenos presentinhos pendurados nos próprios ramos ao lado das velinhas. Nos dias de hoje, como todos os dias são Natal em termos de consumo e presentes, a magia da árvore de Natal decorada com doces e presentes perdeu-se muito.

Análise do poema "Cinco galinhas e meia", de Camões

    Este poema breve de tom irónico, da autoria de Luís Vaz de Camões, escrito em redondilha maior, com características de repentismo, nas palavras da professora Rita Marnoto, é, de acordo com a epígrafe inicial, dirigido a D. António, Senhor de Cascais. Convém recordar que, por vezes, as epígrafes eram acrescentadas a um poema por um copista que sentia necessidade de o contextualizar. Trata-se, por outro lado, de uma quadra em redondilha maior, na esteira da Corrente Tradicional, precedida de uma epígrafe, e com um esquema rimático abab, ou seja, rima cruzada. As duas rimas, em -eia e -ais, contém uma aliteração em /i/, que nos versos 1 e 3 se estende ao interior do verso. Além disso, a rima em /a/ é reforçada pela repetição da primeira palavra rimante no interior do terceiro verso – «meia». Relativamente ao ritmo, este é rápido, tendo em conta o uso do verso curto, e ganha vivacidade com a divisão de cada um em dous segmentos paralelos, ligados através do encavalgamento. O primeiro apresenta a situação, enquanto o segundo a comenta e explicita.
    O D. António, senhor de Cascais, referido na epígrafe e no segundo verso, é D. António de Castro, um aristocrata muito poderoso, filho primogénito de D. Luís de Castro e D. Violante de Ataíde. Casou com D. Inês Pimentel, uma senhora que era aparentada com os Távora, e foi IV Conde de Monsanto por designação de Filipe II de Espanha em carta datada de 23 de outubro de 1582. O seu nome esteve envolvido na agitada vida que caracterizou a época que assistiu aos derradeiros anos de vida de Camões. Em 1572, ano da primeira edição de Os Lusíadas, D. Luís de Ataíde, vice-rei da Índia, regressou do Oriente envolto em triunfos e glória, ao mesmo tempo que a forte e dispendiosa armada formada para apoiar a liga entre o Papado, a Espanha e a França contra o inimigo turco não passava a barra do Tejo, em virtude de a aliança ter sido dificultada por diversas convulsões políticas. Em agosto desse ano, D. Sebastião ordenou a prisão de D. António de Castro nos subterrâneos do Castelo de Lisboa, enquanto a sua família e os seus criados foram encarcerados na prisão do Limoeiro. A razão para tal relacionava-se com a acusação de que tinha sido alvo por parte de um criado de apoiar os luteranos e de estar a organizar a entrega do Forte de São João da Barra aos franceses. No entanto, a denúncia era falsa, pelo que todos foram libertados. Posteriormente, D. António de Castro apoiou Filipe II de Espanha aquando da união dos tronos de Portugal e Castela, tendo ordenado o arvorar da bandeira castelhana no Castelo de São Jorge, no entanto acabou por ser vítima de nova acusação, desta vez de se preparar para entregar Cascais a D. António Prior do Crato, por isso foi desterrado para Espanha, juntamente com a família.
    Poderá parecer estranho, à primeira vista, que um poeta que cultiva um estilo elevado e que escreve uma obra monumental como Os Lusíadas aborde, nesta quadra humorística, uma questão menor como a alimentação, mas a verdade é que o tema da alimentação remonta às origens da literatura europeia, desde logo por se tratar de um bem essencial à sobrevivência dos seres vivos. Uma das estratégias indutoras doo cómico num texto é o contraste entre a superioridade de um sujeito em relação a uma vítima e a desilusão das suas expectativas. Neste caso, as duas figuras que preenchem a composição prestam-se ao referido contraste: de um lado, temos um destinatário de estatuto elevado, o poderoso D. António de Castro, enquanto no outro encontramos um poeta simples e modesto que se diminui fazendo uma cópia. A vida do primeiro caracteriza-se pelo bem-estar, ao passo que o segundo vive ansioso por confortar o seu estômago e satisfazer o seu palato. À promessa de seis galinhas feita pelo homem todo poderoso, segue-se a desilusão do poeta humilde pela receção de mera meia galinha, o que equivale a dizer que, novamente nas palavras da professora Rita Marnoto, “Às expectativas geradas pela plenitude de um delicioso recheio, corresponde uma ausência, como se a pulsão do corpo fosse remetida para o vazio material da concavidade da meia ave.”
    Retornando à análise da epígrafe, ficamos a saber que D. António, um homem poderoso, prometeu a Camões seis galinhas recheadas como pagamento por uma cópia que este lhe fizera, porém apenas lhe enviara meia. Note-se que, semanticamente, a meia dúzia é uma quantidade ligada à banalização, à indeterminação e até à escassez nos seus vários planos. Por sua vez, o verso inicial da quadra enuncia uma quantidade, a do débito, como se de um deficit se tratasse, que mensura uma substância alimentar: a galinha. As cinco galinhas e meia são antecipadas e postas em relevo pelo anacoluto, pois há uma inversão da ordem dos seus elementos, que seria “O senhor de Cascais deve cinco galinhas e meia”. O segundo verso identifica o débito (“deve” cinco galinhas e meia) e a figura histórica que corresponde ao devedor: D. António de Castro. Feita a substração, resta o que Camões efetivamente recebeu: meia galinha (“e a meia”), que vem cheia (adjetivo que se liga a outro – “recheadas” –, presente na epígrafe, por paronomásia a partir do mesmo étimo). Estamos perante uma espécie de eufemismo que aponta para o oposto daquilo a que se está a aludir: uma ausência. O registo das quantidades numéricas processa-se em decréscimo: de seis galinhas (epígrafe), passa-se a cinco galinhas e meia (v. 1), a seguir a meia (v. 3) e daí ao vazio (v. 4). Deste modo, é possível concluir que o adjetivo que aponta para a plenitude (“cheia”, do latim “plena”, que sugere exatamente a noção de plenitude) indicia, afinal, uma sucessão de faltas: do Senhor de Cascais, ao prometido; de comida, para o poeta; do recheio da meia galinha (sugerido pela ironia). Outra conclusão a que se pode chegar é que a “diminuição do quantitativo (em galinhas) é inversamente proporcional ao aumento dos apetites. (v. 4)”.
    O último verso assenta num jogo de palavras: o que preenche a galinha não corresponde à substância material do recheio, mas, por oposição, um apetite não satisfeito., o que, metaforicamente, pode ser interpretado como o vazio que se apodera do poeta. As suas expectativas foram traídas e a concavidade da meia galinha (personificada, ao ser dotada de apetites – não satisfeitos – a satisfazer) simboliza o seu desejo de comer. Deste modo, os apetites do poeta são transferidos para a meia galinha por hipálage. A metade do animal que Camões recebeu carrega consigo não um recheio material, mas o vazio onde se aloja o desejo em toda a sua plenitude, simbolicamente: é lá que se nutrem todos os anseios, todas as esperanças e todas as promessas que simbolizam “quanto de insaciável carrega a existência e com ela a escrita.” Note-se, por último, que, seguindo a tradição segundo a qual a redondilha deve apresentar uma estrutura circular, esta composição poética obedece a esse preceito, pois o último verso retoma o primeiro: “Cinco galinhas e meia” (v. 1); “de apetites para as mais” [cinco galinhas e meia].

Análise da cantiga "A la fé, Deus, se nom por Vossa Madre"

    Esta cantiga satírica de mestria, constituída por quatro sextilhas e uma finda de quatro versos, abre com uma imprecação contra Deus (“A la fé, Deus” – apóstrofe), apresentado como um rival do trovador, pois rouba para si as mulheres jovens e belas, deixando apenas as velhas e feias, e obriga-as a andar mal vestidas e mal governadas nos conventos onde as encerra. Tendo em conta estes dados, como pode considerar-se Deus uma figura bondosa e misericordiosa?
    O «eu» poético afirma que, se não fosse pela sua mãe, Nossa Senhora, que é “mui bõa”, ou seja, uma figura bondosa, santa, generosa, teria causado sofrimento a Deus (“fezera-vos eu pesar”), porque Ele lhe roubou (“filhastes”) a “mia [sua] senhor” (atente-se na linguagem característica da cantiga de amor), isto é, a mulher amada, seja por meio da morte, por exemplo, ou de forma figurada. Deste modo, a figura divina é caracterizada como injusta, causadora de sofrimento e dor no trovador, cruel até, já que lhe roubou o bem mias precioso que possuía.
    Através do encavalgamento, o trovador continua a mensagem da primeira cobla na segunda, neste caso pondo em dúvida a paternidade de Jesus (São José ou Deus Pai?). Deste modo, o «eu», em virtude de o nascimento e o progenitor de Deus-Jesus não serem muito claros, só não O ataca por causa do respeito que nutre pela mãe, Santa Maria. O sujeito poético prossegue a sua crítica, afirmando que estaria disposto a morrer, se, dessa forma O responsabilizasse publicamente, isto é, o desse como culpado aos olhos de todos, por lhe ter tirado a sua «senhor»: “se lhi nom pesasse, / morrera eu, se vos acõomiasse / a mia senhor, que mi vos tolhestes.”. O trovador prossegue a sua queixa e recriminação, interrogando Deus acerca do motivo por que o perdeu, isto é, porque o abandonou, porque o tratou de forma tão injusta, se o «eu» era Dele, Lhe pertencia, acreditava Nele. A resposta surge no último verso da segunda cobla: “Nom queríades que eu mais valesse.”, ou seja, Deus não queria que o trovador valesse mais do que Ele aos olhos da «senhor».
    No primeiro verso da terceira estrofe, o «eu» interpela de novo a figura divina, desafiando-O a dizer-lhe que “bem” lhe fez, que benefício lhe trouxe, para que pudesse acreditar Nele ou O servisse, além de uma grande ofensa e soberba (leia-se “filhar-lhe” a “senhor”). A explicação (“Ca” = “pois”) surge de seguida: Deus tem a mulher em Seu poder forçada, ou seja, contra a vontade dela, quando o trovador nunca Lhe “filhou” nada nem recebeu Dele desde que nasceu: “e nunca vos eu do vosso filhei nada / des que fui nado, nem vós nom mi o destes”. Assim sendo, Deus é retratado como uma figura injusta e ingrata.
    A terceira cobla clarifica a acusação e o motivo do desagrado do trovador: Deus tomou por esposas as mulheres belas (“fremosas”) e jovens (“mancebas”), deixando apenas as “velhas feas”. Ora, o que significa Deus tomar por esposa uma mulher? A metáfora, neste caso, refere-se às mulheres que, contra a sua vontade, davam entrada nos conventos para O servir. Esta situação ocorre com inúmeras mulheres, o que sugere o número gigantesco das que eram forçadas a recolher a um convento pelas mais diversas razões, num mundo, numa sociedade e numa época que as castrava e limitava as suas liberdades, como é o caso da religiosa, nesta cantiga. Isto tem uma consequência: para o trovador, não resta qualquer mulher jovem e formosa (“E a mi nunca mi nenhua dades: / assi partides migo quant’havedes.” – observe-se a ironia, bem como a alusão ao princípio bíblico que estabelece a repartição das riquezas.
    Assim, chegamos à finda, cujo verso inicial constitui uma referência ao serviço que o trovador devia à sua «senhor», que incluía o seu louvor nas cantigas de amor: “Nen’as servides vós, nen’as loades”. A acusação prossegue e torna-se, agora, completamente clara: Deus obriga-as também a andar mal vestidas e mal governadas (“vestide-las mui mal e governades”), nos conventos em que as encerra (“e metedes-no-las trá-las paredes.”).
    Em suma, a cantiga visa a forma como as mulheres eram sujeitas na época medieval, vivendo num mundo em que não possuíam liberdade. Neste caso, é questionada a ausência de liberdade religiosa: muitas eram obrigadas a enterrar-se em conventos contra a sua vontade. As razões eram variadas. A primeira era religiosa: múltiplas mulheres eram confinadas à vida conventual, nomeadamente em famílias nobres, para evitar, por exemplo, disputas ou a fragmentação de heranças, isto é, para preservar o património da família. A segunda era por uma questão de honra: diversas famílias nobres enviavam as filhas para proteger a sua honra, nomeadamente as que não se casavam, evitando assim escândalos e garantindo que não violavam as normas sociais da época, que promovia ideais de pureza e castidade femininas. A terceira prendia-se com a busca de um refúgio ou de uma alternativa à vida mundana: o convento constituía uma alternativa à vida doméstica e às obrigações do casamento, optando por uma existência mais espiritual. Uma quarta remetia para uma forma de castigo ou punição, sendo as mulheres encerradas num convento, à força, para punir comportamentos tidos como socialmente inapropriados, como, por exemplo, o adultério ou a rejeição de casamentos arranjados. Repare-se que, 500 ou 600 anos depois, encontramos a novela Amor de Perdição e Teresa Albuquerque, uma jovem que é obrigada a entrada num convento por recusar casar com o primo Baltazar Coutinho, um casamento arranjado pelas famílias.

sábado, 21 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Afons’ Afonses, batiçar queredes", de Afonso Sanches

    Só uma estrofe desta cantiga de Afonso Sanches nos chegou, a qual satiriza um indivíduo chamado Afonso Afonses, a propósito do batismo de um seu criado. Tudo indica, no entanto, que o poema se basearia num equívoco sobre quem é que nunca teria sido batizado – e que seria o próprio Afonso Afonses, pelo que se depreende do verso 6.
    Concretamente no que diz respeito a essa figura, não sabemos exatamente quem é este Afonso Afonses, o qual deseja batizar um criado (“Afons’ Afonses, batiçar queredes / vosso criad’”), porém não tem padre para presidir à cerimónia (“e cura nom havedes / que chamem clérig’”). Nestes versos, encontramos um jogo com a palavra «cura» no duplo sentido de “curar, tratar de” e “ter um padre”. Os últimos versos, nomeadamente o derradeiro, permite questionar quem é que, efetivamente, nunca tinha sido batizado, indiciando que se tratava do próprio Afonso Afonses: “como haverdes, / Afonso Afonses, nunca batiçado?”.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Caracterização de Bertoleza

1. Origem e Condição Social

  • Bertoleza é uma mulher negra e escravizada, descendente direta de africanos escravizados, que simboliza a opressão e a exploração do sistema escravocrata.
  • A sua trajetória como escrava é marcada pelo trabalho árduo, desumanização e falta de acesso a qualquer direito básico
  • Enganada com a promessa de liberdade, acredita poder comprar a sua alforria com o dinheiro acumulado após anos de trabalho, com o apoio de João Romão, mas descobre mais tarde que ainda é legalmente escrava e que foi intencionalmente ludibriada por ele.
  • A sua condição social é caracterizada pelos seguintes traços:

·         Subalternidade e exploração:

·         Bertoleza vive numa situação de extrema subalternidade, tanto no âmbito social quanto nas relações pessoais, sendo retratada como uma figura subalterna, vítima de exploração contínua, seja como escrava de direito ou como trabalhadora livre de facto.

·         Apesar de acreditar ter conquistado algum grau de independência, permanece submetida à opressão de João Romão, que usufrui do seu trabalho sem oferecer contrapartidas justas.

·         Trabalho excessivo: a sua trajetória é marcada pelo trabalho exaustivo, nomeadamente como cozinheira e responsável por diversas atividades que sustentam os empreendimentos do amante.

·         Ausência de direitos:

·         A personagem acredita ser livre, porém, na realidade, não possui autonomia real nem proteção social, pois depende de João Romão, o que a coloca numa posição de vulnerabilidade extrema, tanto emocional como material.

·         Relação com o sistema escravocrata e o racismo estrutural:

·         Formalmente, a escravatura está próxima do seu fim, todavia a sociedade perpetua a marginalização de pessoas negras como Bertoleza, que continuam sujeitas a relações de trabalho similares à escravidão.

·         Na prática, ela é duplamente explorada – como mulher e como negra –, sendo excluída do progresso que ajuda a construir.

·         Desamparo social:

·         Bertoleza não encontra qualquer suporte em nenhuma estrutura da sociedade: não tem familiares ou membros da comunidade que se preocupem com ela e a protejam; o sistema legal apenas reforça a sua condição de mulher explorada, permitindo que João Romão a denuncie como escrava fugitiva.

  • Vive numa situação de extrema subalternidade, tanto no âmbito social quanto nas relações pessoais.

2. Aparência Física

  • Cor da pele:
    • Bertoleza é descrita como uma mulher negra, o que, no contexto da obra, indicia a sua origem e condição social marginalizada.
  • Constituição física:
    • É uma mulher robusta e corpulenta, com um corpo moldado pelo trabalho árduo e constante.
    • A sua força física constitui um reflexo das tarefas pesadas que desempenha diariamente, como cozinhar, transportar pesos e tratar do cortiço.
  • Marcas do trabalho:
    • As suas mãos são grossas e calejadas, evidenciando anos de serviço braçal.
    • A pele apresenta cicatrizes e rugosidades, sinais claros da vida de esforço incessante e de privação.
  • Traços faciais:
    • Os seus eus traços são descritos como ásperos e marcantes, espelhando o sofrimento que pauta a sua vida.
    • Os olhos, cansados e fundos, transmitem um misto de resignação e dureza, resultado das dificuldades enfrentadas.
  • Vestuário:
    • Bertoleza geralmente aparece vestida com roupas simples, pobres e gastas, adequadas à sua condição social e às funções que exerce no dia a dia.
    • As roupas, frequentemente, estão sujas ou marcadas pelo trabalho na cozinha, reforçando a sua associação com o esforço físico constante.
  • Postura:
    • A sua postura demonstra cansaço crónico, refletindo o peso literal e figurativo que marca a sua existência.
    • Apesar disso, há na sua figura uma energia prática, característica de quem está habituada a viver para o trabalho.
  • Cabelos:
    • Os cabelos são crespos, frequentemente presos de maneira funcional, sem qualquer preocupação estética, dado o foco da sua vida ser a sobrevivência e o trabalho.
  • Idade aparente:
    • Apesar de não ser idosa, Bertoleza aparenta ser mais velha do que realmente é, pois o trabalho exaustivo e as condições adversas a que sempre esteve sujeita desgastaram-lhe a aparência.
    • A expressão do rosto evidencia uma vida de privações e sacrifícios.
  • Em suma, o retrato físico de Bertoleza não é apenas um momento descritivo do romance, mas também uma forma de simbolismo naturalista, visto que o seu corpo é apresentado como uma extensão da sua condição social: uma ferramenta explorada até ao limite. Cada detalhe físico reforça a ideia de que atua como representante da classe trabalhadora e do grupo social marginalizado pela sociedade escravocrata e patriarcal da época

3. Caracterização psicológica

1. Trabalhadora e abnegada: É um símbolo da classe trabalhadora, sendo incansável nas suas funções e no seu apoio ao desenvolvimento do cortiço.


2. Resignada e submissa

·         Bertoleza é profundamente resignada ao seu destino, aceitando sem resistência explícita as adversidades e opressões que enfrenta. Por outro lado, aceita passivamente as circunstâncias da sua relação com João Romão, deixando-se explorar tanto como companheira quanto como trabalhadora.

·         Sua submissão está enraizada no condicionamento social e histórico, típico de uma sociedade escravocrata que negava a agência de pessoas como ela.

·         Confia cegamente em João Romão, mesmo quando ele a explora e manipula, evidenciando sua falta de perspetivas de autonomia emocional.


3. Forte e resiliente

·        Apesar de ser submissa, Bertoleza demonstra uma força interior marcante, enfrentando com coragem as dificuldades da vida e aceitando sua condição sem revoltas explícitas.

·        A sua capacidade de suportar o trabalho árduo, os maus-tratos e a exclusão social é um testemunho de sua resiliência psicológica.

·        Essa força, no entanto, é muitas vezes canalizada para o trabalho incessante e não para questionar ou resistir à exploração.


4. Ingénua e vulnerável

·         Bertoleza é apresentada como uma personagem ingénua, especialmente na sua relação com João Romão, em quem confia, mesmo sendo vítima da sua ambição desmedida.

·         Acredita ter alcançado a liberdade e vê no companheiro um protetor, sem perceber que ele a explora para alcançar os seus próprios objetivos.

·         A sua vulnerabilidade emocional impede-a de ver a traição iminente e a manipulação contínua de que é vítima por parte de João Romão.


5. Dedicada e com espírito de sacrifício

·         Bertoleza é extremamente dedicada ao trabalho e à relação com João Romão, muitas vezes em detrimento de si mesma.

·         O sacrifício pessoal é uma característica central da sua personalidade, pois entrega-se completamente ao objetivo de ajudar João Romão a prosperar.

·         Essa dedicação cega faz dela uma personagem trágica, pois tudo o que constrói acaba sendo usado contra si.


6. Solitária e Carente Afetivamente

·         A vida de Bertoleza é marcada pela solidão, dado que não tem família ou apoio comunitário, o que a torna emocionalmente dependente de João Romão.

·         A sua carência afetiva é evidente na maneira como se agarra à relação com ele, vendo-o como sua única fonte de estabilidade e segurança.


7. Grata

·         Bertoleza nutre um sentimento de gratidão ilusória em relação a João Romão, acreditando que ele a ajudou a conquistar sua liberdade.

·         Essa gratidão é manipulada pelo companheiro para a manter submissa, alimentando um ciclo de exploração emocional e material.


8. Medrosa e Desamparada

·         Ao longo da narrativa, Bertoleza demonstra um medo profundo de perder o pouco que acredita ter conquistado, como, por exemplo, a sua liberdade e a relação com João Romão.

·         Esse medo deixa-a desamparada, especialmente quando descobre que foi enganada sobre a sua alforria.


9. Digna: dignidade Trágica

·         Mesmo sujeita à submissão e ao sofrimento, Bertoleza mantém uma certa dignidade trágica, especialmente na sua decisão final de tirar a própria vida.

·         O suicídio é um ato de desespero, mas também de resistência, pois ela recusa-se a ser recapturada como escrava e a perder sua humanidade.


10. Alienada e sem Consciência Crítica

·         Bertoleza é alienada em relação à própria condição de exploração, não desenvolvendo uma consciência crítica sobre a sua situação.

·         Essa alienação reflete o sistema opressor em que vive, que não oferece meios ou possibilidades para que questione o seu lugar na sociedade.


11. Simbolismo Psicológico

·         Psicologicamente, Bertoleza representa o arquétipo da mulher negra escravizada e explorada, cuja força e sacrifício são usados por outros para prosperarem.

·         A sua trajetória psicológica reflete a crítica naturalista à sociedade brasileira, mostrando como os indivíduos mais vulneráveis eram esmagados por um sistema opressor e desumano.


Em suma, Bertoleza é uma mulher forte, porém aprisionada pelas circunstâncias históricas e sociais. Alguns traços, como a submissão, a dedicação e a ingenuidade tornam-na uma personagem profundamente trágica, enquanto a força e a dignidade perante o sofrimento a transformam num símbolo da exploração e resistência das classes oprimidas.


4. Relação com João Romão

1. Início da Relação

·         A relação de Bertoleza com João Romão começa de forma utilitária:

    • João Romão oferece ajuda a Bertoleza para comprar a sua suposta alforria, consolidando um vínculo que se baseia na dependência emocional e material.
    • Para Bertoleza, João Romão representa inicialmente uma possibilidade de liberdade e estabilidade, o que faz com que confie nele cegamente.

·         Já para o amante, Bertoleza é um instrumento de trabalho e um meio para alcançar os seus objetivos económicos.


2. Dependência e Submissão

·         Submissão de Bertoleza:

    • Bertoleza submete-se completamente a João Romão, tanto emocional quanto fisicamente, tornando-se sua companheira e trabalhadora incansável.
    • Acredita que deve lealdade a João Romão por ter "comprado" a sua liberdade, mesmo que isso a mantenha num estado de constante exploração.

·         Dependência emocional:

    • A solidão de Bertoleza leva a que crie uma relação afetiva com João Romão, mesmo que ele não demonstre reciprocidade.
    • O homem torna-se o centro da sua vida, consolidando a sua dependência emocional em relação a ele.

3. Exploração e Desequilíbrio de Poder

·         João Romão vê Bertoleza como uma ferramenta de trabalho, explorando a sua força e dedicação para expandir o seu património. Ela trabalha sem descanso, seja na cozinha, no comércio ou na manutenção do cortiço, contribuindo diretamente para o enriquecimento de João Romão.

·         Há um desequilíbrio extremo de poder na relação: João Romão detém o controle económico, emocional e até legal sobre Bertoleza, manipulando-a sem oferecer qualquer contrapartida justa.


4. Ausência de Amor Verdadeiro

·         A relação não é baseada em amor ou afeto recíproco:

    • Bertoleza nutre sentimentos de gratidão e apego emocional, acreditando num vínculo afetivo com João Romão.
    • João Romão, por outro lado, nunca demonstra amor ou cuidado genuíno por ela, tratando-a como um recurso útil para atingir os seus objetivos materiais.

5. Traição e Abandono Final

·         A traição de João Romão é o clímax da relação:

    • Quando toma consciência de que Bertoleza representa um obstáculo para as suas ambições de ascensão social, denuncia-a às autoridades como escrava fugitiva, para se livrar dela e consolidar um casamento com Zulmira, que lhe garante entrada na elite social.
    • A traição revela a natureza calculista e desumana de João Romão, que descarta Bertoleza quando deixa de ser útil para os seus planos.

6. Papel Simbólico da Relação

·         Simbolismo de exploração:

    • A relação entre os dois é uma metáfora das dinâmicas de exploração de classe, raça e género.
    • João Romão representa o capitalista ambicioso, enquanto Bertoleza simboliza a classe trabalhadora e as mulheres negras exploradas no Brasil do século XIX.

·         Crítica à hipocrisia social:

    • A relação expõe a hipocrisia de uma sociedade que permite a ascensão económica de João Romão, mas às custas da exploração e do sofrimento de pessoas como Bertoleza.

Em suma, a relação entre Bertoleza e João Romão é profundamente desigual, marcada pela exploração, submissão e ausência de reciprocidade emocional. Para João Romão, a escrava é apenas um meio para satisfazer as suas ambições, enquanto, para ela, ele representa segurança e uma esperança ilusória. O desfecho trágico da relação ressalta as injustiças sociais e raciais da época, alinhando-se com a crítica naturalista presente em O Cortiço.


5. Papel no Desenvolvimento do Cortiço

1. Trabalhadora

a.       Trabalho físico e incansável:

a.    Bertoleza é a principal força de trabalho na vida de João Romão, desempenhando tarefas essenciais como cozinhar, lavar, limpar e cuidar da organização geral.

b.   Ela assume também responsabilidades na manutenção do comércio que abastece o cortiço, garantindo o sustento e o lucro que permitem a João Romão expandir os seus negócios.

b.      Instrumento de acumulação de capital:

a.    O trabalho árduo e praticamente gratuito de Bertoleza é uma das bases da prosperidade de João Romão.

b.   Ela representa a classe trabalhadora explorada, cujo esforço e sacrifício alimentam o crescimento do patrimônio alheio.

  1. Estímulo para a ambição de João Romão

a.    Bertoleza, ao unir-se a João Romão, contribui diretamente para que ele concentre a energia e ambição no desenvolvimento do cortiço.

b.    O seu trabalho permite que João Romão poupe recursos e os invista na expansão do cortiço, como a construção de novas casas para arrendar e a ampliação dos negócios.

c.    Figura que facilita o empreendedorismo de João Romão: enquanto Bertoleza se ocupa com as tarefas quotidianas, ele pode dedicar-se exclusivamente à acumulação de riqueza.

3.         Símbolo de continuidade e estabilidade do cortiço

a.    Bertoleza é um dos pilares do funcionamento cotidiano do cortiço. Por um lado, a sua presença garante a alimentação dos trabalhadores e moradores, fortalecendo a dinâmica de produção e sobrevivência no espaço. Por outro, representa a força constante que sustenta a vida no cortiço, mesmo no meio às adversidades e à pobreza.

b.    Estabilidade invisível: embora seja fundamental no desenrolar da narrativa, Bertoleza permanece invisível para o público, sendo entendida apenas como uma peça funcional no mecanismo do cortiço.

4.       Papel no contexto social do cortiço

a.    Bertoleza, como mulher negra e subalterna, simboliza o elo entre a base explorada e os interesses dominantes.

b.    A sua presença reforça a crítica social de O Cortiço, mostrando como a ascensão econômica de figuras como João Romão depende da exploração de trabalhadores como Bertoleza.

  1. Desencadeadora do desfecho da narrativa

a.    O papel de Bertoleza não se limita ao crescimento inicial do cortiço, mas também influencia o desfecho trágico da narrativa. Por um lado, quando João Romão decide traí-la, entregando-a às autoridades como escrava fugitiva, a atitude dele reflete a dinâmica de exploração levada ao extremo. Por outro, esta atitude, que culmina no suicídio de Bertoleza, simboliza o caráter predatório do sistema social e econômico do cortiço.

6.       Simbolismo de classe e raça no desenvolvimento do cortiço

a.    Bertoleza é um símbolo da mão de obra explorada, que sustenta tanto o crescimento material do cortiço quanto a crítica social naturalista de Aluísio Azevedo.

b.    Representa também a confluência das opressões de raça, género e classe, sendo a figura que trabalha incessantemente para um sistema que a descarta quando deixa de ser útil.

c.    A relação entre Bertoleza e o cortiço é uma analogia direta com o funcionamento do capitalismo nascente no Brasil: a riqueza de poucos é construída sobre o trabalho e o sacrifício dos mais pobres.

7.       Impacto final no cortiço

a.    O suicídio de Bertoleza tem um impacto simbólico no cortiço:

                                           i.          marca o ponto culminante da denúncia social de Aluísio Azevedo, evidenciando o custo humano do progresso material;

                                         ii.         o seu sacrifício final expõe as injustiças do sistema social e encerra a trajetória de uma personagem que deu tudo, mas não recebeu nada em troca.

Em suma, o papel de Bertoleza no desenvolvimento do cortiço é essencial tanto do ponto de vista prático quanto simbólico. Ela é a força invisível que sustenta a prosperidade económica de João Romão e a estrutura quotidiana do cortiço. No entanto, a sua trajetória também denuncia a exploração de classe, raça e género, expondo as desigualdades sociais e económicas que marcam o romance. A sua presença reforça a crítica naturalista ao sistema opressor que subjuga os mais vulneráveis para alimentar o progresso de poucos.


6. Simbolismo

a) Símbolo de exploração

·         Bertoleza é um símbolo vivo da exploração:

    • Trabalha incansavelmente sem receber benefícios proporcionais ao seu esforço.
    • A sua dependência emocional e económica de João Romão mantém-na numa situação de servidão disfarçada.

·         Representa o sistema socioeconómico desigual que caracteriza a sociedade brasileira da época, onde a riqueza de poucos é construída sobre o trabalho de muitos.

·         É uma metáfora para a opressão das classes mais baixas, destacando a desigualdade social e racial da época

b) Figura de sacrifício

·         A sua vida é marcada pelo sacrifício constante: sacrifica a liberdade, a saúde e, finalmente, a vida em benefício de João Romão e do sistema que ele representa.

·         O suicídio de Bertoleza é um ato final de resistência e tragédia, destacando a ausência de alternativas reais para os oprimidos.

c) Símbolo da Transição Histórica

·         Bertoleza reflete a transição histórica entre o sistema escravocrata e o trabalho assalariado precário no Brasil:

    • Embora formalmente livre, continua a viver como escrava, subordinada a um sistema que perpetua a desigualdade racial e económica.
    • A sua figura denuncia o facto de a abolição da escravatura não ter trazido mudanças imediatas para a população negra e trabalhadora.
    • A sua trajetória reflete a realidade das mulheres negras escravizadas no Brasil do século XIX.

7. Representatividade social

a) Representação da mulher negra e escravizada

·         Bertoleza simboliza a condição das mulheres negras no Brasil pós-escravidão, ainda profundamente marcadas pela exploração e pela marginalização.

·         Apesar de acreditar estar livre, a sua vida reflete uma escravidão velada, onde o trabalho incessante e a submissão continuam a definir a sua existência.

·         Constitui uma síntese das opressões cruzadas de raça, género e classe, sendo relegada para o papel de servidora e trabalhadora incansável, sem direitos ou reconhecimento.

b) Retrato da classe trabalhadora

·         Como parte da classe trabalhadora explorada, Bertoleza é o motor que impulsiona o desenvolvimento do cortiço e a ascensão económica de João Romão.

·         Representa a massa de trabalhadores anónimos que sustentam o progresso material da sociedade, mas que são descartados quando deixam de ser úteis, recordando, por exemplo, a figura de Bailote em Aparição, romance de Virgílio Ferreira.

c) Exclusão social e invisibilidade

·         Bertoleza vive à margem da sociedade, sem acesso a qualquer suporte institucional ou comunitário.

·         A sua condição reflete a exclusão estrutural de mulheres negras, que, mesmo após o fim da escravidão formal, continuam presas a relações de trabalho abusivas e desiguais.

d) Crítica social:

i) Crítica ao racismo estrutural

·         Bertoleza é um símbolo do racismo estrutural:

o    A sociedade retratada no romance é construída sobre a desumanização, a exploração e a exclusão de pessoas negras.

o    A exploração e traição final de Bertoleza reforçam a ideia de que as relações raciais permanecem baseadas na opressão e na desigualdade.

ii) Desigualdade de género

·         Além de ser negra e pobre, Bertoleza é uma mulher, o que a coloca em uma posição de vulnerabilidade ainda maior.

·         A sua relação com João Romão é marcada pela dependência e pelo abuso, refletindo as dinâmicas de género características de uma sociedade patriarcal.

iii) Representação da exclusão económica

·         A personagem simboliza a classe trabalhadora que vive em condições miseráveis, enquanto os frutos de seu trabalho enriquecem uma elite económica, como João Romão.

·         A sua exploração reflete a crítica naturalista ao capitalismo nascente, onde os mais pobres são reduzidos a ferramentas para o lucro.


8. Desfecho trágico

1. Contexto do suicídio

·         O suicídio de Bertoleza ocorre após João Romão, na sua busca desenfreada por ascensão social, decidir entregá-la às autoridades como escrava fugitiva.

·         Ao perceber que será capturada e devolvida à condição formal de escrava, Bertoleza opta por se suicidar.

·         A cena final é carregada de dramatismo e extremamente simbólica, refletindo o fim de uma existência marcada pela exploração e desamparo.

2. Significado imediato do suicídio

a) Resistência final

·         O ato de suicídio pode ser interpretado como a última forma de resistência de Bertoleza:

o   Ao cometer suicídio, ela recusa submeter-se novamente à condição de escrava, preservando a dignidade frente à brutalidade do sistema opressor.

o   Por outro lado, o suicídio configura um gesto de desespero, mas também de afirmação da sua humanidade diante de uma sociedade que a reduzia a uma mercadoria.

b) Desamparo Absoluto

·         O suicídio evidencia o desamparo total de Bertoleza, que, ao longo da narrativa, é explorada e traída por aqueles em quem confia.

·         Sem família, comunidade ou apoio social, encontra-se completamente isolada, sem alternativas para escapar ao seu destino trágico.

3. Simbolismo social do suicídio

a) Denúncia da exploração

·         A morte de Bertoleza é o culminar da crítica social do romance, simbolizando os custos humanos da exploração.

·         Ela é o retrato do trabalhador que, após ter a sua força física e emocional explorada até o limite, é descartado quando deixa de ser útil.

b) Reflexo do Racismo e da Escravidão

·         O suicídio de Bertoleza escancara a permanência do sistema escravocrata, mesmo após a sua abolição formal: a morte simboliza como as estruturas racistas e opressoras ainda aprisionam as pessoas negras, negando-lhes qualquer possibilidade de liberdade ou dignidade.

·         É um ato de denúncia contra a desumanização promovida pelo racismo estrutural da época.

c) Crítica ao individualismo e à ganância

·         O desfecho também reflete a crítica ao individualismo e à ganância, personificados em João Romão:

o   Ele ascende e enriquece à custa de Bertoleza e, no final, não hesita em a sacrificar para atingir os seus objetivos sociais e económicos.

o   O suicídio expõe a brutalidade das relações humanas no contexto de um sistema marcado pela ambição desmedida e pela falta de solidariedade.

4. Relação com o Naturalismo

a) Determinismo e Tragédia

·         O suicídio de Bertoleza é coerente com a perspectiva naturalista do romance:

o   A personagem é apresentada como vítima das forças sociais e históricas que determinam o seu destino, como o racismo, o machismo e a exploração económica.

o   A sua morte é inevitável dentro desse contexto, reforçando a ideia de que os indivíduos mais vulneráveis não têm escapatória no sistema opressor.

b) Animalização e Desumanização

·         Ao longo do romance, Bertoleza é frequentemente descrita de forma desumanizada, quase como uma extensão das máquinas e do trabalho.

·         O seu suicídio marca a rutura final com essa lógica: ao tirar a própria vida, ela recupera uma dimensão humana, recusando-se a continuar a ser tratada como um objeto.

5. Impacto narrativo e simbólico

a) Clímax da tragédia

·         O suicídio de Bertoleza é o ponto culminante da tragédia do romance, encerrando a sua trajetória com um gesto de forte impacto emocional.

·         Serve como uma espécie de grito silencioso contra a injustiça, denunciando as condições desumanas impostas aos mais vulneráveis.

b) Reflexão sobre a sociedade

·         A morte de Bertoleza força o leitor a confrontar as desigualdades e violência estruturais que permeiam a sociedade retratada na obra.

·         Ela é uma metáfora do sistema que destrói aqueles que mais contribuem para o seu funcionamento, mas que nunca recebem o devido reconhecimento ou justiça.

Em suma, o suicídio de Bertoleza é uma das cenas mais poderosas e simbólicas de O Cortiço. Ele representa a denúncia final de Aluísio Azevedo contra o racismo, a exploração económica e a desumanização das classes trabalhadoras, bem como o desamparo total dos oprimidos na sociedade da época. Para Bertoleza, é tanto um ato de desespero quanto de resistência, marcando o desfecho inevitável de uma vida de opressão. A sua morte destaca a injustiça de um sistema que a explorou até o limite e, finalmente, a descartou.

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