Nos textos de feição visionária – História
do Futuro, Livro Anteprimeiro (prólogo explicativo daquela), Esperanças
de Portugal, Clavis Prophetarum, Defesa perante o Tribunal do
Santo Ofício –, procura explicar o verdadeiro sentido das trovas do
Bandarra, as quais apontavam para a consumação do Quinto Império: um império
universal, harmónico, onde coubessem todas as raças e todas as culturas, unidas
espiritualmente num único reino cristão e católico.
As cartas, escritas entre 1626 e
1697, patenteiam o gosto de uma experiência vivida. Umas vezes é a longa
missiva, ordenada, sistemática, a antever já virtuais leitores, reveladora das
principais preocupações do autor; outras, é a carta dita “familiar”, dirigida
geralmente a um amigo, onde perpassam impressões fugazes, desabafos e episódios
da sua vida íntima; aqui e ali, breves discursos ou simples expressões de
amizade e cortesia. Descobrem-se, nestas epístolas, referências à vida militar
e económica do tempo; incorporam-se autênticos ensaios de administração
ultramarina; criticam-se certos pregadores e retratam-se homens e
individualidades de então; defendem-se os índios do Brasil; relatam-se as horas
de êxito vividas no púlpito ou os momentos amargos dos anos de pobreza;
observam-se e descrevem-se povos, costumes, lugares; e focalizam-se tantos
outros assuntos que mereciam ser mencionados.
Pejadas de pormenores e registando
os pontos fulcrais de um percurso biográfico, as cartas do Padre António Vieira
transformam-se num valioso testemunho quer dos diversos condicionalismos
político-sociais da época, quer da complexa personalidade do escritor.
Durante o século XVII, o sermão não
foi só o género literário predominante; foi também, e principalmente, a base da
mais importante cerimónia social: a pregação. Através dela, a palavra do orador
atingia todas as camadas sociais.
O púlpito transformara-se, na época,
no último baluarte da liberdade de expressão. Durante a dominação filipina,
apenas a alguns sacerdotes era dada a faculdade de falar livremente contra, por
exemplo, a opressão espanhola. Talvez daí, também, o hábito instituído de fazer
do púlpito a tribuna ideal do comentário crítico à vida pública. No século
XVII, o púlpito era um palco e o pregador um actor a tentar exibir do melhor
modo possível a sua palavra, ajustando as modulações da sua voz aos efeitos
visados junto do auditório. A pregação era um espectáculo, tanto quanto
possível espectacular. Aliás, uma das tradicionais funções oratórias era o delectare (deleitar), para além do docere (ensinar) e do movere (mover ou influenciar o
comportamento do ouvinte), e estava no espírito da Contrarreforma a captação e
catequização das multidões não tanto pela razão, que se estava cada vez mais revelando
perigosa para a religião de então, mas antes pela sensibilidade, pelo prazer,
pelo puro gozo intelectual, e também pelo terror e piedade que moveriam (movere) os espectadores (o argumento do
inferno era o mais poderoso equivalente imaginário dos autos-de-fé reais).
Tudo isto se relaciona com uma época
cultural que deslocou para múltiplos palcos – o teatro, a ópera, o púlpito, o auto-de-fé, as procissões, os
enterros – o seu sadismo doentio aí o descarregando. A própria existência de um
ritual social como o sermão, onde os ouvintes vão para serem, em princípio,
admoestados e culpabilizados, e os pregadores para os fustigarem como
intérpretes autorizados da Lei, é uma prática mórbida e fantasmagórica. Nos
sermões do Padre António Vieira, espelha-se fielmente a época conturbada em que
ele viveu, apegado a uma nação cada vez mais vulnerável, quer às arremetidas
dos adversários, quer às próprias tensões internas.
Os sermões mais conhecidos contam-se
entre os que, de uma forma mais directa, se prendem a processos ou factos
históricos específicos: o levantamento do sítio que os Holandeses haviam feito
à Baía (1638) e a situação aflitiva que esta cidade de novo enfrentou passados
dois anos determinam, respectivamente, o Sermão de Santo António e o Sermão
pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as da Holanda (1640); para
incitar todas as classes da nação a contribuírem para a defesa nacional, surge
o Sermão de Santo António (1642), proferido na véspera da reunião das
cortes; o sermão Sobre as Verdades e Falsas Riquezas vem datado de 1656,
«na ocasião em que chegou a nova de se ter desvanecido a esperança das minas,
que com grande empenho se tinham ido descobrir»; e lembremos ainda o Sermão
dos Bons Anos, pregado em Lisboa na Capela Real, no ano de 1642, onde
Vieira apregoa a sua confiança em Deus e na política do Rei (D. João IV).
Do missionário catequista
destacam-se os referentes à defesa dos Índios contra o egoísmo dos colonos, de
que ficou célebre o Sermão de Santo António aos Peixes. Os sermões de
mais alta inspiração religiosa, e os de maior fascínio artístico, desligados
das contingências espácio-temporais, são os menos conhecidos dos leitores.
É nesta actividade missionária que o
fervor evangélico de Vieira se impregna de uma doce e comovente humildade, que
a carta dirigida ao Padre Francisco de Morais (maio de 1653) deixa
transparecer: «Sabei, amigo, que a melhor vida é esta. Ando vestido de um pano
grosseiro cá da terra, mais pardo que preto; como farinha de pau; durmo pouco;
trabalho de pela manhã à noite; gasto parte dela em me encomendar a Deus; não
trato com mínima criatura; não saio fora senão a remédio de alguma alma; choro
meus pecados; faço que outros chorem os seus; e o tempo que sobeja destas ocupações,
levam-no os livros da madre Teresa e outros de semelhante leitura. Finalmente,
ainda que com grandes imperfeições, nenhuma coisa faço que não seja com Deus,
por Deus e para Deus, e para estar na bem-aventurança só me falta vê-lo, que
seria maior gosto, mas não maior felicidade.»
Neste género literário desenvolvido
por Vieira convergem, pois, o idealista, o político, o missionário, o
sebastianista, o patriota, enfim, a complexa e enigmática personalidade do
escritor. Por isso, os seus sermões ultrapassam o valor religioso para se tornarem
motor de meditação e estudo por parte de moralistas, sociólogos, linguistas e
historiadores.
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