Português: Gastão Cruz
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sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

Análise do poema "Ofício", de Gastão Cruz

 Ofício
 
Ofício

 
Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pôde a poesia nunca dar-lhe

 
Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe

 
Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não respira

 
    Este poema, da autoria de Gastão da Cruz, poeta, crítico literário, escritor, encenador e tradutor português, nascido em 1941, em Faro, e falecido em 2022, em Lisboa, aborda a questão da criação poética.

    O título – “Ofício” – remete para a ideia de trabalho, profissão, rotina. Deste modo, escrever poesia é apresentado no texto como um trabalho, um ofício, e não uma mera atividade criativa. Por outro lado, trata-se de um ato ligado ao viver, ao sentir e à procura de sentido entre corpo e alma. O «eu» poético não perceciona a escrita como «simples» passatempo, mas antes como um “ofício vital”, que exige sacrifício e entrega. Ou seja, o título valoriza a poesia como tarefa de vida, como luta constante entre expressão e introspeção, entre matéria e espírito.

    O primeiro dos três tercetos alude aos poemas que o sujeito lírico não escreveu, justificando o facto com uma necessidade que era mais premente: espiritualizar o corpo, dando-lhe “uma espécie de alma”, o que aponta para a ideia de que possuir essa alma é mais importante do que aquilo que a poesia lhe pode proporcionar. Neste sentido, esta é apresentada como insuficiente, pois não pode dar ao corpo do poeta aquilo que o seu corpo necessita: uma alma mais visceral, mais viva, “aquela espécie de alma / que não pôde a poesia nunca dar-lhe”. A repetição do verso 1 sugere precisamente a tentativa de justificar a ausência der criação poética – ele estava ocupado com algo mais importante, mais essencial.

    O segundo terceto, ao contrário mas em paralelo com o segundo, refere-se aos poemas que o sujeito poético escreveu e apresenta, igualmente, a justificação para tal. De facto, nesta estrofge, há uma inversão lógica da anterior: desta vez, ele escreve, ele cria poesia porque necessita de algo. Igualmente em contraste com a estrofe precedente, agora é o corpo quem necessita de alma, e o «eu» procura-a através da poesia: “Os poemas que fiz só os fiz porque estava / pedindo ao corpo aquela espécie de alma / que somente a poesia pode dar-lhe”. A alma, que antes o corpo recebia fora da poesia, agora é procurada dentro dela. Assim, a poesia aparece como o único meio de transmitir ao corpo uma certa essência espiritual ou transcendente.

    A partir das duas estrofes iniciais podemos concluir que a composição poética reflete sobre a tensão entre corpo e alma, mostrando que ora um dá sentido ao outro, ora se afasta dele, havendo uma espécie de duas formas de «alma» evocadas: uma, que o corpo recebe e é exterior à poesia, e a outra, que o corpo só pode receber através da poesia. Assim, o corpo é simultaneamente recipiente e agente dessa busca espiritual. Quando o «eu» poético está em busca de dar alma ao corpo (primeira estrofe), não escreve. Por seu turno, quando o corpo carece de alma, é a poesia que pode supri-la (segunda estrofe). Deste modo, a relação que existe entre corpo e alma é uma relação de interdependência, dado que ambas as dimensões coexistem em tensão e se alimentam mutuamente.

    Por outro lado, nas duas estrofes iniciais existe um paralelismo entre “Os poemas que não fiz” e “Os poemas que fiz” que dá origem a uma estrutura especular, que serve vários propósitos. Em primeiro lugar, mostra o equilíbrio instável entre criação e experiência: há momentos em que o viver impede o escrever e outros em que a escrita é a forma essencial de viver. Em segundo lugar, possibilita contrastar a procura de alma e a ausência de escrita e a necessidade de escrever para recuperar sentido ou alma. Por último, reforça a circularidade do processo poético: viver e escrever poesia são duas faces da mesma moeda, ou seja, uma não existe sem a outra, mas não coexistem plenamente em simultâneo.

    O terceiro terceto tem um caráter conclusivo ou demonstrativo, como o mostra o uso inicial de «Assim». Há um ciclo: o corpo, que deu ou recebeu algo da poesia, posteriormente devolve. A poesia é comparada ao “duro sopro”, algo essencial, vital, mas difícil, que funciona como uma metáfora da própria vida e do processo de criação poética. O nome «sopro» remete para a respiração, sinal de vida, mas o adjetivo que o qualifica («duro») associa-se às ideias de esforço, resistência, trabalho. Mas que sopro duro é esse? A tarefa da criação poética, de traduzir por palavras a existência? Viver e escrever são atos de resistência, que implicam esforço, sacrifício, trabalho aturado. O verso final é profundamente paradoxal: estar vivo sem respirar sugere um sofrimento silencioso, uma existência angustiada, sem paz e alívio.

    Curiosamente, no poema, a poesia possui um papel ambivalente, mas crucial. Por um lado, é limitada, dado que não pode dar ao corpo uma determinada alma, que apenas a experiência vivida permite. Por outro lado, é indispensável, já que é o único meio de o corpo obter outra «espécie» de alma. Assim, a poesia funciona como uma espécie de mediadora entre corpo e espírito, entre o mundo real e o mundo interior. A poesia é o «sopro» necessário à vida, mesmo que aquele seja difícil, árduo, duro – como o de quem vive sem fôlego. A arte poética configura uma forma de respirar quando a existência se torna sufocante.

    Em suma, o presente poema de Gastão Cruz reflete sobre o ato de criação poética, apresentando-o como uma relação entre corpo e alma, entre vida e arte. A escrita é um processo dinâmico e aturado, um ofício vital, por vezes doloroso, como o “duro sopro de quem está vivo e às vezes não respira”, em que o corpo ora busca uma alma que a poesia não fornece, ora clama por uma alma que só a poesia pode oferecer. Poesia e existência alimentam-se mutuamente – ambas são indispensáveis, ambas são incompletas sozinhas.

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