Português: INFÂNCIA, ESCOLA E LITERATURA INFANTIL: CONEXÕES, RELAÇÕES E IMBRICAÇÕES

sábado, 1 de junho de 2024

INFÂNCIA, ESCOLA E LITERATURA INFANTIL: CONEXÕES, RELAÇÕES E IMBRICAÇÕES

    O gênero literatura infantil é considerado um dos mais recentes gêneros literários existentes, afirma Zilberman (2003) em sua obra A literatura infantil na escola. As primeiras obras destinadas ao público infantil foram publicadas no fim do século XVII e durante o século XVIII, no período clássico. A inexistência desse gênero antes de tal período deve-se ao fato de que, até então, não havia uma preocupação especial com a infância. “A nova valorização da infância gerou maior união familiar, mas igualmente meios de controle do desenvolvimento intelectual da criança e manipulação de suas emoções. Literatura infantil e escola [...] são convocadas para cumprir essa missão.” (ZILBERMAN, 2003, p. 15).
    No período clássico, o núcleo familiar burguês, estimulado ideologicamente em um primeiro momento pelo Estado absolutista e em um segundo momento pelo liberalismo burguês, oferece o sustentáculo ideal para a centralização do poder político, estabelecendo-se dentro de valores herdados da nobreza feudal — fato que contrabalançou a rivalidade entre a burguesia e esta última — sejam eles: “[…] a primazia da vida doméstica, fundada no casamento e na educação dos herdeiros; a importância do afeto e da solidariedade de seus membros; a privacidade e o intimismo como condição de uma identidade familiar.” (ZILBERMAN, 2003, p. 17). Tais valores elevam a infância ao patamar de baluarte do modelo familiar. A criança, doravante, converte-se em eixo ao redor do qual a família se organiza, tendo, esta última, como missão a responsabilidade de conduzir os infantes com saúde e prepará-los intelectualmente para a vida adulta. Ariès (1981, p. 210), em História social da criança e da família, afirma a esse respeito: “O sentimento de família, que emerge assim nos séculos XVI-XVII, é inseparável do sentimento da infância. O interesse pela infância […] não é senão uma forma, uma expressão particular desse sentimento mais geral, o sentimento da família.”. Acerca da família, e em conformidade com o que Zilberman (2003) defende, o autor francês nos assegura: “Ela torna-se a célula social, a base dos Estados, o fundamento do poder monárquico.” (ARIÈS, 1981, p. 214). O autor, no prefácio da segunda edição de sua obra, utiliza os seguintes termos para apontar para a configuração familiar que então se delineava:
Foi no fim do século XVII e início do XVIII que situei, partindo de fontes principalmente francesas, o recolhimento da família longe da rua, da praça, da vida coletiva, e sua retração dentro de uma casa melhor defendida contra intrusos e melhor preparada para a intimidade. […] É normal que num espaço tão privatizado tenha surgido um sentimento novo entre a mãe e a criança: o sentimento de família […] (ARIÈS, 1981, p. 23-25)
    Surge, nesse contexto, a idealização da infância, fundada em teorias que postulam: a dependência da criança, em virtude dos aspectos fisiológico e transitório dessa faixa etária; e sua inocência natural, enquanto inexperiência, que tanto precisa ser preservada idealmente quanto gradativamente destruída pela prática pedagógica que visa preparar o infante para a vida adulta. Segundo Ariès (1981, p. 180) “Duas idéias novas surgem ao mesmo tempo: a noção de fraqueza da infância e o sentimento da responsabilidade moral dos mestres.”.
    Desde o final do século XVII, as crianças são isoladas e distanciadas dos adultos antes de serem lançadas ao mundo, essa espécie de quarentena a que são submetidos os pequenos, compara Ariès (1981, p. 11) no prefácio à segunda edição de sua obra, não é, senão, a própria escola: “Começou então um longo processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização.”. Zilberman (2003, p. 21-23) acrescenta a esse respeito a afirmação de que a escola, instituição imbuída da tarefa de preparar a criança para o mundo adulto e de protegê-la das violências desse mundo exterior,
[...] acentua a divisão entre o indivíduo e a sociedade, ao retirar o aluno da família e da coletividade, encerrando-o numa sala de aula em que tudo contraria a experiência que até então tivera. Em vez de uma hierarquia social, vive uma comunidade em que todos são igualados na impotência: perante a autoridade do mestre e, mais adiante, da própria instituição educacional, todos estão despojados de qualquer poder. Em vez de um convívio social múltiplo, com pessoas de variada procedência, reúne um grupo homogeneizado porque compartilha a mesma idade […] O sistema de clausura coroa o processo: a escola fecha as portas para o mundo exterior […] As relações da escola com a vida são, portanto, de contrariedade: ela nega o social, para introduzir, em seu lugar, o normativo. […] é por omitir o social que a escola pode-se converter num dos veículos mais bem-sucedidos da educação burguesa […] Neste momento, a educação perde sua inocência, e a escola, sua neutralidade, comportando-se como uma das instituições encarregadas da conquista de todo jovem para a ideologia que a sustenta, por ser a que suporta o funcionamento do Estado e da sociedade. […] Desarmada, a criança não reage; e sua impassibilidade é tomada como sinal de aceitação da engrenagem.
    Ainda durante o século XVII, ressalta Ariès (1981), o sentido da imposição do conceito de inocência infantil desembocou numa atitude moral de caráter duplo com relação à faixa etária infantil: “[...] preservá-la da sujeira da vida [...] e fortalecê-la, desenvolvendo o caráter e a razão.” (ARIÈS, 1981, p. 146). Nesse âmbito surge a preocupação crescente com a decência tanto na escolha das leituras adequadas às crianças como no nível das conversas que se pode ter diante delas. “Ensinai-os a ler em livros onde a pureza de linguagem coincida com a seleção de bons temas.” (VARET, 1666 apud ARIÈS, 1981, p. 143).

Fabiano de Oliveira Moraes, A representação da infância em Pinóquio: a propagação
e a perpetuação do discurso hegemônico por meio da literatura infantil e da escola

Sem comentários :

Enviar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...