O gênero literatura
infantil é considerado um dos mais recentes gêneros literários existentes,
afirma Zilberman (2003) em sua obra A literatura infantil na escola. As
primeiras obras destinadas ao público infantil foram publicadas no fim do
século XVII e durante o século XVIII, no período clássico. A inexistência desse
gênero antes de tal período deve-se ao fato de que, até então, não havia uma
preocupação especial com a infância. “A nova valorização da infância gerou maior
união familiar, mas igualmente meios de controle do desenvolvimento intelectual
da criança e manipulação de suas emoções. Literatura infantil e escola [...]
são convocadas para cumprir essa missão.” (ZILBERMAN, 2003, p. 15).
No período clássico, o
núcleo familiar burguês, estimulado ideologicamente em um primeiro momento pelo
Estado absolutista e em um segundo momento pelo liberalismo burguês, oferece o
sustentáculo ideal para a centralização do poder político, estabelecendo-se dentro
de valores herdados da nobreza feudal — fato que contrabalançou a rivalidade
entre a burguesia e esta última — sejam eles: “[…] a primazia da vida
doméstica, fundada no casamento e na educação dos herdeiros; a importância do
afeto e da solidariedade de seus membros; a privacidade e o intimismo como
condição de uma identidade familiar.” (ZILBERMAN, 2003, p. 17). Tais valores
elevam a infância ao patamar de baluarte do modelo familiar. A criança, doravante,
converte-se em eixo ao redor do qual a família se organiza, tendo, esta última,
como missão a responsabilidade de conduzir os infantes com saúde e prepará-los
intelectualmente para a vida adulta. Ariès (1981, p. 210), em História social
da criança e da família, afirma a esse respeito: “O sentimento de família, que
emerge assim nos séculos XVI-XVII, é inseparável do sentimento da infância. O interesse
pela infância […] não é senão uma forma, uma expressão particular desse
sentimento mais geral, o sentimento da família.”. Acerca da família, e em
conformidade com o que Zilberman (2003) defende, o autor francês nos assegura:
“Ela torna-se a célula social, a base dos Estados, o fundamento do poder
monárquico.” (ARIÈS, 1981, p. 214). O autor, no prefácio da segunda edição de
sua obra, utiliza os seguintes termos para apontar para a configuração familiar
que então se delineava:
Foi no fim do século XVII e início do XVIII que
situei, partindo de fontes principalmente francesas, o recolhimento da família longe
da rua, da praça, da vida coletiva, e sua retração dentro de uma casa melhor
defendida contra intrusos e melhor preparada para a intimidade. […] É normal
que num espaço tão privatizado tenha surgido um sentimento novo entre a mãe e a
criança: o sentimento de família […] (ARIÈS, 1981, p. 23-25)
Surge, nesse contexto, a
idealização da infância, fundada em teorias que postulam: a dependência da
criança, em virtude dos aspectos fisiológico e transitório dessa faixa etária;
e sua inocência natural, enquanto inexperiência, que tanto precisa ser
preservada idealmente quanto gradativamente destruída pela prática pedagógica
que visa preparar o infante para a vida adulta. Segundo Ariès (1981, p. 180) “Duas
idéias novas surgem ao mesmo tempo: a noção de fraqueza da infância e o
sentimento da responsabilidade moral dos mestres.”.
Desde o final do século
XVII, as crianças são isoladas e distanciadas dos adultos antes de serem
lançadas ao mundo, essa espécie de quarentena a que são submetidos os pequenos,
compara Ariès (1981, p. 11) no prefácio à segunda edição de sua obra, não é,
senão, a própria escola: “Começou então um longo processo de enclausuramento das
crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia até
nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização.”. Zilberman (2003, p.
21-23) acrescenta a esse respeito a afirmação de que a escola, instituição
imbuída da tarefa de preparar a criança para o mundo adulto e de protegê-la das
violências desse mundo exterior,
[...] acentua a divisão entre o indivíduo e a
sociedade, ao retirar o aluno da família e da coletividade, encerrando-o numa
sala de aula em que tudo contraria a experiência que até então tivera. Em vez
de uma hierarquia social, vive uma comunidade em que todos são igualados na
impotência: perante a autoridade do mestre e, mais adiante, da própria
instituição educacional, todos estão despojados de qualquer poder. Em vez de um
convívio social múltiplo, com pessoas de variada procedência, reúne um grupo homogeneizado
porque compartilha a mesma idade […] O sistema de clausura coroa o processo: a
escola fecha as portas para o mundo exterior […] As relações da escola com a
vida são, portanto, de contrariedade: ela nega o social, para introduzir, em
seu lugar, o normativo. […] é por omitir o social que a escola pode-se
converter num dos veículos mais bem-sucedidos da educação burguesa […] Neste
momento, a educação perde sua inocência, e a escola, sua neutralidade,
comportando-se como uma das instituições encarregadas da conquista de todo
jovem para a ideologia que a sustenta, por ser a que suporta o funcionamento do
Estado e da sociedade. […] Desarmada, a criança não reage; e sua impassibilidade
é tomada como sinal de aceitação da engrenagem.
Ainda durante o século
XVII, ressalta Ariès (1981), o sentido da imposição do conceito de inocência
infantil desembocou numa atitude moral de caráter duplo com relação à faixa
etária infantil: “[...] preservá-la da sujeira da vida [...] e fortalecê-la,
desenvolvendo o caráter e a razão.” (ARIÈS, 1981, p. 146). Nesse âmbito surge a
preocupação crescente com a decência tanto na escolha das leituras adequadas às
crianças como no nível das conversas que se pode ter diante delas. “Ensinai-os
a ler em livros onde a pureza de linguagem coincida com a seleção de bons
temas.” (VARET, 1666 apud ARIÈS, 1981, p. 143).
Fabiano de Oliveira Moraes, A representação da infância em Pinóquio: a propagação
e a perpetuação do discurso hegemônico por meio da literatura infantil e da escola
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