Dos escritores renascentistas, apenas
António Ferreira se pode considerar como representante íntegro do espírito
classicista e humanista que conviveu com a tradição literária renascentista e
com a Contra-Reforma; fez parte dos «Zagais da Estremadura» e como tal se
relaciona com Sá de Miranda e com todos os seus seguidores, que pugnavam a
favor do gosto renascentista; pelos destinatários das suas obras sabemos que
conviveu com a elite governante, administrativa, social e literária do seu
tempo. As Odes e Cartas dirigem-se a personalidades como Pêro de Andrade Caminha, Sá
de Miranda, Diogo Bernardes, Francisco de Sá e Meneses, Duque de Aveiro, Padre
Luís Gonçalves da Câmara (mestre de D. Sebastião), D. Francisco Coutinho, D.
Constantino de Bragança, cardeal D. Henrique, rei D. Sebastião, Diogo de Teive,
etc.
Dois importantes factos distinguem
António Ferreira dos outros autores clássicos renascentistas: nunca escreveu em
castelhano e usou sempre a medida nova. De facto, o autor utilizou sempre a
língua portuguesa em prosa e verso. Na sua Carta
a Pêro de Andrade Caminha, censura-o por ter utilizado a língua castelhana
e, em simultâneo, estimula-o a escrever em português, enriquecendo a nossa
língua, como fizeram os Gregos, os Latinos, os Espanhóis e os Italianos, que
sempre escreveram nas suas próprias línguas e não nas dos outros.
1.
Poesia
A obra de António Ferreira, que inclui
sonetos, epigramas, odes, elegias, éclogas, epitalâmios, cartas, epitáfios, um
poema religioso (História de Santa Comba
dos Vales), foi compilada pelo autor num volume editado pelo seu filho mais
velho, Miguel Leite Ferreira, em 1598, intitulado Poemas Lusitanos. Seguiram-se-lhe outras edições, nomeadamente em
1771 e 1829.
No aspeto de estrutura formal, António
Ferreira aperfeiçoou a carta e a elegia, e foi o introdutor em Portugal do
epigrama, da ode e do epitalâmio. Todas estas formas são elaboradas sobre modelos
italianos, latinos e gregos: à expressão em novas formas corresponde fatalmente
a expressão de novas ideias, sentimentos e temas.
Destas composições, umas estão
recheadas de lugares comuns petrarquistas e renascentistas, outras assumem
certa importância e inovação na época, como as odes e as cartas. O facto de se
falar em lugares-comuns não assume aqui a conotação negativa vulgar de mera
repetição da tradição literária: provenientes em geral de autores (autoridade)
greco-latinos (auctores – auctoritas), os lugares comuns sentem-se
viva e diferentemente na Idade Média, Renascimento e Barroco, segundo a
idiossincrasia epocal. Referem-se a áreas semânticas múltiplas: natureza,
sentimentos humanos, vida, etc.
De facto, o interesse das composições
líricas é desigual. Por exemplo, os sonetos, por vezes harmoniosos, repisam os
lugares-comuns do petrarquismo, mas só há vibração nos referentes à morte da
primeira esposa. As éclogas, geralmente de cunho virgiliano ou sannazzariano, e
as elegias revestem-se também de pouco interesse. No entanto, nas odes
horacianas, de que terá sido o primeiro cultor português, e sobretudo nas
cartas, António Ferreira mostra toda a sua excelência enquanto escritor,
podendo considerar-se o mais completo
teorizador português quinhentista, em vernáculo, dos padrões e valores
humanísticos, sobre aqueles relacionados com a arte literária.
Nas suas cartas e odes perpassam,
referenciadas ou como destinatárias de dedicatórias, personalidades múltiplas
de relevo histórico, desde poetas como Pêro de Andrade Caminha, Diogo
Bernardes, Sá de Miranda, Francisco de Sá de Meneses, Jerónimo Corte Real,
Diogo de Teive, a figuras de importância político-social como Alcáçova
Carneiro, secretário de Estado de D. João III, filho do Duque de Aveiro (D.
João de Lencastre), príncipe D. João (filho de D. João III), D. João III, D.
Sebastião, D. Duarte (filho do Infante D. Duarte), Cardeal D. Henrique, Reis
Cristãos (Carlos V, Francisco I), Marquês de Torres Novas (D. Jorge), Afonso de
Albuquerque (filho do governador da Índia do mesmo nome), D. Constantino de
Bragança (governador da Índia), Conde de Redondo (D. Francisco Coutinho,
regedor da Casa da Suplicação), Luís da Câmara (mestre de D. Sebastião), e
muitos outros. Temos assim uma rede polarizada de personalidades a quem António
Ferreira expõe os seus sentimentos e atitudes perante as questões mais
diversas. A todos prodigaliza conselhos e encorajamentos, que encobrem por
vezes uma crítica discreta, pois entendia o escritor exercer desta maneira uma
certa autoridade espiritual que reivindica para os poetas e os doutos em
Humanidades. Diversos poemas são dedicados a D. Maria Pimentel, sua primeira
mulher.
Por outro lado, do conjunto das cartas
e odes desprende-se uma atitude horaciana mais ou menos harmonizada com uma
sabedoria cristã. António Ferreira adota uma postura de impassível superioridade
perante as opiniões irracionais do «vulgo» (odi
profanum vulgus) e perante a vacuidade dos bens por que se bate a maioria
dos homens. Para ele, o «vulgo» ou «povo» é um conceito basicamente moral e não
social: “Eu chamo povo onde há baixos intentos;”. Pelo contrário, considera
sábio quem, guiando-se pelo próprio juízo, pode desprezar o que lhe é exterior:
“Ditoso
aquele que em si só encerra
e,
estimando o tesouro que em si tem,
pisa
soberbamente toda a terra.”
A razão humana, educada nas letras
clássicas, feita de ponderação, buscando uma felicidade terrestre ao abrigo de
paixões e ilusões, e que é a mais alta forma de autodomínio, é o único guia em
que Ferreira confia. Em seu nome, condena todas as manifestações de
impulsividade, incluindo o espírito de aventura e a brutalidade guerreira. Como
se relaciona então com a ideologia expansionista da época, praticamente unânime
em Portugal? Não obstante o elogio dirigido a heróis militares, o escritor
insiste na superioridade da razão sobre a coragem física e, com alguma regularidade,
censura ou lamenta aqueles que trocam a quietude da meditação e do estudo pelos
riscos do mar e da guerra, levados pela ambição da riqueza, na esteira do que
já fizera Sá de Miranda.
No campo das ideias políticas e
sociais, em carta dirigida a D. Sebastião, António Ferreira expõe, de forma
inequívoca, a doutrina do contrato social (provavelmente herdada de Aristóteles)
e nega o poder monárquico absoluto:
“absoluto
poder não há na terra
que
antes será injustiça e crueldade”
e
afirma a condição humana dos reis:
“iguais
somos, Senhor, na natureza:
assim
entramos na vida, assim saímos.”
Além
disso, contrapõe à nobreza do sangue a aristocracia do saber, lamentando que
lhe não sejam reconhecidas no seu tempo as prerrogativas a que se sente com
direito:
“Aquela
proveitosa liberdade
aos
antigos Poetas concedida […]
porque
entre nós será mal recebida?”
Parte da sua obra, nomeadamente as
epístolas dirigidas aos confrades em letras, consagra-se a problemas do ofício
de escrito, sobretudo à defesa e ilustração da língua portuguesa. Como já foi
referido, o escritor quinhentista interessou-se a fundo pelo nosso idioma,
inclusivamente na sua forma medieval, de que fez duas imitações felizes a propósito
do texto do Amadis. Reagiu contra o
emprego da língua castelhana por parte dos poetas seus contemporâneos e foi um
dos poucos portugueses do século XVI que não escreveram em castelhano um só
verso. Pelo contrário, por exemplo, Gil Vicente ou Camões mesclaram com alguma
frequência as duas línguas. Terá sido este amor à língua portuguesa que o levou
a designar a sua coletânea de Poemas
Lusitanos:
“Eu
desta glória só fico contente:
que
a minha terra amei, e a minha gente.”
Além disso, António Ferreira foi um
notável doutrinário, o mais importante teorizador do Classicismo, tendo como
fonte principal o poeta latino Horácio, nomeadamente a sua Epístola aos Pisões (também conhecida por Arte Poética). Alguns dos traços desse magistério são os seguintes:
a)
a primazia do estudo e do trabalho sobre a inspiração, isto é, a poesia não
pode ser só inspiração, deve ser fruto de trabalho e estudo apurado e
prolongado sobre o texto:
“doutrina,
arte, trabalho, tempo e lima
fizeram
aqueles nomes tão famosos
por
quem a Antiguidade se honra e estima.”
b)
a necessidade do conhecimento aprofundado e de uma imitação dos antigos que
afinal consiste na apropriação nacional do património literário das línguas
clássicas:
“Do bom escrever, saber primeiro é
fonte.”
c)
a necessidade da crítica e da autocrítica, de «tempo e de lima»: o poeta deve
desconfiar de si próprio e fazer discutir pelos entendidos as suas composições;
d)
o sentido da justa proporção:
“há
nas cousas um fim, há tal medida,
que
quanto passa ou falta dela é vício.”
e)
a proscrição de toda a herança peninsular medieval, conservando apenas, como
mal inevitável, a rima, que restringe a liberdade dos versos «e com som leve o
juízo engana», enquanto se não encontrar outro sistema rítmico mais próximo do
verso latino – de facto, Ferreira considera desejável que se fizesse uso do
verso branco;
f)
a necessidade de tomar a Razão como único guia
No conjunto da sua obra lírica, há a
destacar ainda as exortações que
dirigiu a vários confrades no sentido de produzirem
uma epopeia nacional (ideia já expressa por Garcia de Resende no Prólogo do
Cancioneiro Geral), não tanto um
texto que fosse a afirmação dos valores guerreiros e cruzadistas nacionais, mas
um monumento de cultura e sobretudo da língua. Coube a Camões seguir o repto e
produzir Os Lusíadas.
2.
Teatro
A seguir…
Bibliografia: