Português

sexta-feira, 12 de março de 2021

Análise de "D. Dinis"

 D. Dinis e o pinhal de Leiria
 
            Tradicionalmente, o rei D. Dinis (1261-1325), o sexto de Portugal, foi cognominado de o Lavrador, pois fomentou o desenvolvimento da agricultura (distribuiu terras, promoveu a agricultura, mandou plantar o pinhal de Leiria, embora atualmente se pense que a iniciativa terásido obra de Afonso III ou até de D. Sancho II).
            Independentemente de quem tenha sido, na verdade, o monarca que o mandou plantar, D. Dinis teve um papel fundamental no reforço da área do pinhal, do qual foram extraídos a madeira e o pez (alcatrão de origem vegetal) necessários, respetivamente, à construção e calafetagem das naus dos Descobrimentos.
 
 
 
1.ª parte (1.ª estrofe) – O sonho visionário de D. Dinis.
 
▪ Nos dois primeiros versos é apontada a dupla faceta de D. Dinis: o poeta – o trovador (que compôs cantigas de amigo) e o lavrador, o responsável pela plantação do pinhal de Leiria, cuja madeira foi fundamental para a construção das naus dos Descobrimentos (“O plantador de naus a haver” – metáfora – v. 2). Ambas as atividades se referem a atos criadores.
 
▪ O cantar de amigo é escrito durante a noite. Por um lado, a noite é um tempo de silêncio, solidão e calma, ambiente propício à reflexão, à inspiração e à escrita. Por outro lado, a noite é o tempo da germinação, no qual se prepara o tempo futuro, ou seja, é um período de preparação para o dia que há de nascer. É por isso que D. Dinis é apresentado escrevendo de noite: o monarca representou (à luz da conceção providencialista da História presente em Mensagem) a preparação dos Descobrimentos e a origem da literatura portuguesa (que está associada ao Quinto Império, na sua vertente cultural). Além disso, a noite é o momento de fecundação do sonho, ao qual sucede o dia, o nascimento do império.
 
▪ A metáfora e a metonímia “O plantador de naus a haver” remetem para os pinheiros mandados plantar pelo rei, que são virtualmente as naus das Descobertas, pois foram eles que forneceram a madeira para construir as naus usadas nas Descobertas. Projeta-se em D. Dinis o sonho de navegações futuras, realizadas em naus construídas com a madeira dessas árvores, iniciando-se assim a criação de um mito em torno da figura do rei, que, involuntariamente, preparou o futuro.
 
▪ Com efeito, os três versos iniciais do poema apresentam-nos D. Dinis como um visionário, um homem de génio que tem a capacidade de antever o futuro.
 
▪ O oxímoro do verso 3 sugere que o som que D. Dinis ouve (que, na realidade, não existe) é uma prefiguração do futuro: é o som produzido por um pinhal que, futuramente, será extenso e de um mar que será dominado graças à madeira dele extraída. Ou seja, realça a atitude meditativa do rei, que, ao compor o seu cantar, profetiza já a epopeia das Descobertas.
 
▪ A comparação e a metáfora dos versos 4 e 5 sugerem que dos pinhais sairá a madeira para a construção das naus, que permitirão a construção de um império, isto é, que possibilitarão a expansão, que trará riqueza suficiente (trigo) para todos os portugueses. Estes recursos permitem-nos visionar uma imensa seara cujos frutos constituirão o alimento, o suporte de um movimento expansionista do qual emergirá um império. O trigo é o símbolo de alimento, de poder económico, pois as searas de trigo, de cor que lembra o ouro, são a promessa de riqueza para o país. Note-se a presença, no verso 4, do eco da cantiga de amigo “Ai flores, ai flores do verde pino”.
 
▪ Por outro lado, sugere que a génese, a origem do futuro teve início em terra. Tal como o trigo é a base do pão que alimenta os povos, também os pinheiros serão a base da construção dos barcos que alimentarão as Descobertas. O trigo «ondula» ao sabor do vento, as naus ao sabor das naus Estes recursos aproximam os pinhais semeados por D. Dinis de uma sementeira de trigo, que germinará e dará o pão que são as naus que contribuirão para a descoberta e construção do Império futuro.
 
▪ Tal como o trigo é o ingrediente principal do pão, também a madeira fornecida pelos pinhais constitui a matéria-prima que permitiu saciar a «fome de Império» dos portugueses.
 
▪ Por outro lado, a forma verbal «ondulam» associa o movimento dos pinhais e do trigo (impulsionados pelo vento) ao das ondas do mar, ou seja, sugere o movimento das ondas que, no futuro, serão atravessadas pelas naus portuguesas.
 
▪ A expressão “sem se poder ver” (v. 5 – metonímia) associa a D. Dinis um dos traços característicos do herói: é um ser excecional, singular, dado que consegue percecionar, antecipar o futuro – a aventura marítima e a construção de um império.
 
▪ O recurso ao presente do indicativo contribui para a mitificação do herói, mostrando que, no seu tempo, foi a sua ação que preparou involuntariamente o futuro dos Descobrimentos, tornando o seu contributo intemporal.
 
2.ª parte (2.ª estrofe) – A concretização do sonho.
 
▪ O sujeito poético associa o cantar de amigo que D. Dinis está a escrever a um regato, que, como um pequeno fio de água, corre para o mar. Esta metáfora significa que o rei, além de precursor dos Descobrimentos (enquanto responsável pela plantação do pinhal de Leiria), também é um precursor de toda a literatura portuguesa, visto que as cantigas de amigo que escreveu se contam entre as primeiras composições poéticas da língua e literatura portuguesas. O «oceano por achar» pode constituir uma referência à epopeia portuguesa, escrita por Camões, sobre os Descobrimentos: Os Lusíadas.
 
▪ Pode igualmente significar uma visão metafórica de Portugal (uma nação «jovem» – porque recém-formada – e «pura» – porque ainda não contaminada pela ganância e pelo materialismo trazidos pelos Descobrimentos) como um «arroio», ou seja, um pequeno curso de água (uma pequena nação) que corre, mal nasce, em direção ao oceano. O cantar é, em suma, jovem, inocente e puro, e procura, de forma persistente, determinada e contínua o «oceano por achar» (vv. 6-7).
 
▪ A personificação do verso 8 (“a fala dos pinhais, marulho obscuro”) sugere o caráter mítico de D. Dinis, uma espécie de intérprete de uma vontade superior, que anunciava aos ouvidos do rei um novo ciclo de conquistas. O som dos pinhais que D. Dinis imaginava ouvir era um prenúncio secreto (“obscuro”) do ruído da epopeia marítima dos portugueses.
 
▪ O mar a cumprir no futuro já pode ser adivinhado no rumor dos pinhais: “E a fala dos pinhais, marulho obscuro, / É o som presente desse mar futuro” (paradoxo e personificação – vv. 8-9). A fala dos pinhais manifesta o seu desejo de serem navios e de atingirem o mar, mas, nos últimos três versos, é a terra que anseia pelo mar. Trata-se da atração que o oceano sempre exerceu um povo que se distinguiu como uma nação de navegadores. Por outro lado, o último verso do poema traduz a ideia de união, isto é, a ideia de que o mar, após a sua conquista no futuro pelos portugueses, já não separará, antes ligará povos, culturas, civilizações.
 
▪ Os dois últimos versos da segunda estrofe indiciam os dois ciclos da História de Portugal: numa primeira fase, a expansão por terra, mais tarde o domínio do mar. D. Dinis mandou plantar o pinhal de Leiria para impedir que as terras à beira-mar fossem destruídas pela ação da areia do mar e do vento, no entanto, anos mais tarde, a madeira por ele produzida seria utilizada para construir as naus em que partiram os navegadores portugueses. A terra é, por isso, a voz presente que chama pelo futuro, o mar.

D. Dinis
 
 

Trovador
 
Plantador
 
 

Poeta: criador de poesia

 
Plantador do pinhal de Leiria: criador

 
 
 
Autor de cantigas de amigo (e de amor)

 
“é som presente desse mar futuro”

 
 
 
 
Prenúncio dos Descobrimentos: “o oceano por achar”

 
 
Integração do poema na estrutura de Mensagem
 
            “D. Dinis” faz parte de “Brasão”, a primeira parte de Mensagem, sendo o sexto poema da secção “Os Castelos”.
            D. Dinis foi o sexto rei de Portugal e antecede o ciclo das Descobertas. Trata-se do monarca de preparar o futuro, criando, no [seu] presente, condições para a construção do Império, que será cantado na segunda parte da obra.
 
 
Valor simbólico de D. Dinis
 
            D. Dinis é o herói apresentado como um instrumento de uma vontade transcendente que está ao serviço da missão que Portugal tem a cumprir: a construção de um império cultural, o Quinto Império.
            O rei foi um trovador, porque compôs poemas (cantigas de amigo e de amor), alguns dos quais tinham como cenário o mar.
            Foi o Lavrador, visto que desenvolveu a agricultura, dado que muitas terras tinham sido abandonadas e era necessário fomentar o setor, para alimentar a população.
            Foi ainda o plantador, isto porque mandou plantar o pinhal de Leiria, cuja madeira foi utilizada, posteriormente, para construir as naus das Descobertas.
 
 
Recursos poético-estilísticos
 
            A nível fónico, o poema é constituído por duas quintilhas. Os versos são irregulares quanto à métrica e ao ritmo. O segundo verso de cada estrofe possui 8 sílabas, enquanto os restantes são decassílabos.
            A rima é cruzada, emparelhada e interpolada, segundo o esquema ABAAB; é consoante (“amigo”/”consigo”), pobre (“haver”/”ver”) e rica (“amigo”/”consigo”), grave (“amigo”/”consigo”) e aguda (“haver”/”ver”).
            O verso decassílabo, de ritmo largo, é próprio para a expressão de uma mensagem que traduz o meditar repousado de um poeta que é rei e vai ao leme de um povo que quer ser grande.
            No poema convivem os sons fechados e semifechados, que remetem para o sonho e para o impossível, e o som aberto [a], que remete para a expansão, para a realização do sonho.
            O poema é ainda rico em aliterações (“na noite”) e em assonâncias e onomatopeias, sugerindo o ruído do rio ou da água que corre: “E o rumor dos pinhais – marulho obscuro”.
 
            A nível morfossintático, são de destacar os seguintes recursos:
. Verbos:
- As formas verbais evocam o movimento, a flexibilidade sugerida na imagem da espiga de trigo ao vento, numa união entre o movimento e o sonho, como constatação de um destino que, numa primeira fase, é dado de uma forma indistinta.
- O “rumor dos pinhais”, o som, reaparece no último verso do poema, na expressão “a voz da terra”. A terra, por seu lado, é símbolo de fecundidade – é como se a ação de D. Dinis, cujas consequências se desconheciam ainda, se anunciasse no som indistinto.
- O mar funciona como o elemento fecundador do elemento feminino: a terra.
- Os verbos encontram-se no presente do indicativo, não apenas o presente histórico ou narrativo, mas sobretudo o presente de aspeto durativo. As formas verbais (“escreve”, “ouve”, “busca”) traduzem ações que perduram, que se prolongam no tempo.
   Por outro lado, fazem a interseção temporal passado/presente. De facto, o presente, no modo indicativo, aponta, ao nível mítico, para o futuro; ou seja, não só a época dos Descobrimentos surge como um tempo futuro em relação ao momento em que viveu D. Dinis, mas a própria dimensão do seu ato, que se projetará ainda num período que está para vir, que a expressão “mar futuro” anuncia. Para Pessoa, o ato criador do passado é a promessa de um futuro grandioso que se cumprirá sob a égide de Portugal.
 
. Nomes:
- O ato criador de D. Dinis é apresentado de forma analógica, constituindo-se em unidades duplas:
. cantar (de amigo) / arroio;
. plantador / Império;
. pinhais / trigo;
. terra / mar: remete para a ideia de união.
- O nome “noite”, no início do poema, encontra o seu duplo na totalidade do discurso, ou seja, o dia, cuja luz é o momento da própria fecundação, que dá origem ao nascimento do Império (quer no período dos Descobrimentos quer na era que, segundo Pessoa, constituirá o Quinto Império).
. Os adjetivos, sobretudo presentes na segunda estrofe, unem os princípios passividade/atividade, assim como dois momentos temporais distintos, que apontam para um tempo posterior às épocas referidas no poema.
 
            A nível semântico, deparamos com:
. Metáforas:
- “O plantador de naus a haver” (v. 2) – também metonímia, pois as naus são construídas com a madeira do pinhal, isto é, tomou-se o produto pela matéria de que é feito: sugerem a preparação longínqua da matéria-prima de que se fabricariam as naus para a epopeia marítima dos portugueses;
- “É o rumor dos pinhais...”: o rumor dos pinhais (ainda confuso como um marulhar) é já a semente de algo que frutificará, graças às possibilidades materiais (a madeira com que serão construídas as naus) e às capacidades psicológicas dos portugueses que sonharam sulcar os oceanos desconhecidos e conseguiram construir o nosso império ultramarino. A ação dinâmica do sonho da demanda do oceano reforça-se com a visão e audição do mar que nos chama para a nossa grande aventura épica e nos sagrará como heróis míticos. A nossa identidade nacional afirmou-se pela importância concedida ao sonho, à poesia e ao mar;
- “Arroio, esse cantar, jovem e puro, / Busca o oceano por achar...”:
. exprime a forma como os portugueses, começando quase do nada (“arroio”), foram engrossando o caudal das suas forças, até conquistarem o mar;
. por outro lado, a associação do canto a um rio, cuja água corre, simboliza que a ação de D. Dinis se perpetuará no tempo, ecoando no futuro.
            O poema referencia duas fases da nossa história: o ciclo da terra (“plantador de naus”, “pinhais”, “trigo”) e o ciclo do mar (“arroio”, “naus”, “mar”). A terra e o mar são dois pólos entre os quais se balouçou continuamente o povo português, sem nunca ter encontrado uma distância equilibrada entre esses dois pólos, de acordo com o ditado “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”.
. Oxímoro: “... ouve um silêncio murmuro consigo” ® realça a atitude meditativa de D. Dinis que, como um mago rei-poeta, ao escrever o seu cantar de amigo, estava já a profetizar a epopeia marítima dos portugueses.
. Personificações:
- “É o rumor dos pinhais como um Trigo / De Império” (também comparação). porquê os pinhais, trigo de Império? O trigo (o pão) não é só a base da alimentação, é também o símbolo dos alimentos (ganhar o pão de cada dia é ganhar todos os alimentos). Por outro lado, não há império sem poder económico: o trigo é a promessa da riqueza de um país. Daí a ligação “pinhais” “Trigo de Império”. Os pinhais contribuíram para a expansão portuguesa e esta criará a riqueza do nosso império; a palavra trigo pode ter o sentido de abundância, ausência de fome, riqueza, sobrevivência, alargamento do território, construção do Império.
- “E a fala dos pinhais...”          e
- “É a voz da terra ansiando pelo mar”: os pinhais parecem falar e inspiram o próprio cantar do rei-poeta, porque anunciam qualquer coisa de grandioso, ainda envolvida em mistério.
. Conjunto de expressões que se congregam para dar a sugestão de um mistério do domínio futuro dos mares: “Na noite...”, “... silêncio murmuro...”, “... rumor dos pinhais...”, “... marulho obscuro...”.
 
            Este poema, como todos os de Mensagem, está imbuído de sensibilidade épica. A grandeza dos feitos de Portugal é inseparável da sua grandeza literária: o cantar nascido do marulhar dos pinheiros prenuncia a grandeza épica de Portugal. Não nos esqueçamos que Fernando Pessoa concebeu na Mensagem um super-Portugal de que ele seria o super-Poeta.


A organização da mensagem no plano espácio-temporal
 
            O sujeito poético imagina D. Dinis, “O plantador de naus a haver” (seria dos pinhais semeados por este rei que viria a madeira para os navios das descobertas), a compor uma cantiga de amigo, inspirado pelo rumor dos pinhais. O poeta recua no tempo até ao presente de D. Dinis (passado para o poeta) e escuta, com o rei, “a fala dos pinhais... o som presente desse mar futuro”. Assim, o poeta recorre ao presente, enquanto no poema “D. Sebastião” utiliza o passado. Neste caso, é Pessoa quem traz D. Sebastião para o seu tempo, isto porque este rei é uma figura lendária que está fora do seu tempo, porque é simultaneamente uma figura do passado, do presente e do futuro (sebastianismo).
            Por outro lado, notemos que a mensagem de "D. Dinis" está basicamente centrada no futuro, dado que, se a perspetiva temporal do poeta é a de D. Dinis e este rei preparava as glórias futuras da sua pátria, é óbvio que a mensagem se centra sobretudo no futuro: "O plantador de naus a haver...", "...É o som presente desse mar futuro...".
            No que diz respeito à questão espacial, há um conjunto de expressões que remetem claramente para a época anterior aos Descobrimentos: "O plantador de naus...", "... o rumor dos pinhais...", "É o som presente desse mar futuro...". Mas, por outro lado, surgem outras expressões que projetam Portugal através do mundo: "... como um Trigo / De Império...", "Busca o oceano por achar...", "... desse mar futuro...", "... ansiando pelo mar...".
            Se relacionarmos o espaço com o tempo, constatamos que ao futuro corresponde a projeção de Portugal através dos mares.
 
 
Conclusões
 
            1.ª) D. Dinis aparece caracterizado pelo cantar de amigo (o poeta) e como o plantador de naus (o lavrador). Assim, conciliam-se na sua personalidade poética o sonho providencialista de um império que se estenderá por longes terras e mares desconhecidos.
            O primeiro elemento caracterizador reporta-se ao rei trovador / poeta que compôs cantigas de amigo e de amor, na época trovadoresca. Ligado ao segundo, mostra como a poesia tem forte importância na construção do mundo. Como poeta, D. Dinis foi capaz de revelar estados psicológicos gerados pelo amor ausente, mas o seu poder criador consumou-se também no feito político de ter mandado plantar o pinhal de Leiria, lançando assim a semente das navegações e descobertas portuguesas. Portanto, de noite e no meio do seu próprio silêncio, o rei trovador percepcionou no rumor dos pinhais a nossa aventura oceânica.
 
            2.ª) De facto, Pessoa aponta D. Dinis não só como o rei trovador, mas também como o criador “genético” dos Descobrimentos. Se, por um lado, foi conhecido como o “Lavrador”, seu cognome, pela plantação do pinhal de Leiria, por outro lado, ele foi o grande responsável pela abundância de matéria-prima que proporcionou aos portugueses a expansão e a construção de um vastíssimo império, que se concretizou com o sonho do Infante D. Henrique.
 
            3.ª) São também evidentes no poema os elementos que evidenciam o destino mítico de Portugal:
. os pinhais plantados por D. Dinis;
. o rumor dos pinhais;
. esse cantar;
. o som presente;
. a voz da terra.
            Os pinhais plantados por D. Dinis, agitados pelo vento, prefiguram o marulho das ondas que as “naus a haver” hão de sulcar. O destino de Portugal cumpriu-se, porque este poeta / trovador pressentiu, a seu tempo, a nossa ânsia de perscrutar o desconhecido e distante, criando as condições favoráveis para o lançamento dessa aventura.
 
            4.ª) Em suma, D. Dinis é retratado como o rei capaz de antever futuros, justamente porque poeta visionário, em cujo cantar de amigo se fundam o rumor – a “fala dos pinhais” – e o mar futuro. Por isso ele é visto como “plantador de naus a haver”, as naus / cantar de amigo que desvendarão, no futuro que ele sonha, o “oceano por achar”. No poema, os pinhais plantados pelo rei-poeta-visionário são “um trigo de império” e “ondulam sem se poder ver” (porque futuros – só acessíveis aos sonhadores).
            Foi ele quem lançou a semente das navegações e dos Descobrimentos.
 
            5.ª) O poema insere-se na primeira parte de Mensagem, intitulada «Brasão», alusiva à constituição da nação. Remete, assim, para um tempo longínquo, que funciona como paradigma da construção do reino. Trata-se, porém, agora, de um reino espiritual, do Quinto Império, uma época de fraternidade universal, sem fronteiras definidas no espaço, sob a hegemonia dos portugueses.
 

quarta-feira, 10 de março de 2021

Estada ou estadia?

     Estada é uma palavra registada em português já desde o século XIII, com origem no verbo latino stare (supino statum), que tinha o significado de «estar de pé», «estar imóvel», «parar», «permanecer».

     A palavra estada significa «ação de estar», «demora em algum lugar», «parada», «detença», «permanência».

     Estes significados são referidos em dicionários atuais bem como em dicionários antigos, como, por exemplo, no Novo Diccionario da Lingua Portugueza, de Eduardo de Faria (1855), ou no Diccionario Contemporaneo da Lingua Portugueza, da Imprensa Nacional (1881), que também registam a expressão «dar a boa estada», com o significado de «cumprimentar quem está de estada ou residência», «visitar e cumprimentar uma pessoa à sua chegada».

     A palavra estada está documentada, por exemplo, em Os Maias (1888), de Eça de Queirós [«Havia três anos (desde a sua última estada em Paris) que ele não via Carlos.»], ou na obra A Selva (1930), de Ferreira de Castro [«A recordação da sua estada em Todos-os-Santos, com a constante ameaça daquele perigo, amarfanhava-o ainda, dolorosamente.»].

     Estadia é uma palavra com origem na palavra italiana stallia (primeiro dicionário acima referido), com o significado de «demora que o capitão de um navio fretado para o transporte de mercadorias é obrigado a fazer no porto aonde chegou, sem que por isso se lhe deva mais coisa alguma além do frete convencionado» ou «demora forçada do navio mercante no porto de destino».

     Trata-se de um termo que era usado em contratos comerciais entre quem fretava um navio e o respetivo capitão. Atualmente designa em geral «tempo que o capitão de um navio fretado é obrigado a permanecer no porto de chegada» e «prazo concedido para a descarga e a carga de mercadoria de navio fretado».

     A confusão no emprego das palavras estada e estadia é, pois, relativamente recente.'


Fonte: Ciberdúvidas, Maria Regina Rocha.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Análise de "Amor é um fogo que arde sem se ver"

 
Tema: o amor.
 

Assunto: o amor é definido como um sentimento contraditório, mas, ainda assim, procurado pelos corações humanos.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (11 versos iniciais) – Onze tentativas de definir o amor, assentes no paralelismo, na anáfora (“é”) e na frase declarativa afirmativa.
 
verso 1:
Amor é um fogo que arde
um sentimento intenso
(a intensidade da paixão)

 

sem se ver
mas invisível
  
verso 2:
é ferida que dói
causa sofrimento / dor

 

e não se sente
mas insensível
(é impercetível aos sentidos)
 
verso 3:
é um contentamento
alegria, satisfação, felicidade

 

descontente
e infelicidade
 
verso 4:
é dor que desatina
dor intensa, que perturba ou faz perder a razão

 

sem doer
mas insensível, não se sente
[o desatino aplaca a dor, por conter em si o impulso vital, ou por iludir a consciência]
 
verso 5:
É um não querer mais

 

e que bem querer
anulação dos desejos daquele que ama
 
Se o amor não se concretizar, a insatisfação mantém-se, perpetuando o sentimento.
Em contrapartida, a concretização do desejo pode levar à diminuição ou até à extinção do sentimento amoroso.
 
verso 6:
é um andar solitário
isolamento e solidão

 

entre a gente
no meio da gente
 
Aquele que ama anda de tal modo absorvido pelos seus pensamentos que, mesmo quando se encontra no meio da gente, fica concentrado nas suas vivências interiores, como se estivesse só.
 
verso 7:
é nunca contentar-se
insatisfação constante

 

de contente
e satisfação / contentamento
 
Aquele que ama sente-se contente por amar, mas, por mais contente que se sinta, mostra-se insatisfeito, pois aspira sempre a aumentar a sua satisfação / o seu contentamento.
 
verso 8:
é um cuidar que ganha
ilusão (vitória)

 

em se perder
e frustração (derrota)
 
O verso remete para as vantagens e desvantagens do amor. O proveito liga-se à posse do objeto amado, enquanto que a perda traduz o falhanço dessa posse ou os danos que daí resultam ao nível moral, psicológico e religioso.
 
verso 9:
É querer estar preso
dependência/sujeição/privação de liberdade

 

por vontade
voluntária
 
verso 10:
é servir a quem vence

 

o vencedor

é serviço amoroso à pessoa amada

 
O vencedor serve, paradoxalmente, quem ele próprio venceu. Esta metáfora [do amor como servidão] exprime a submissão absoluta ao objeto de amor. Reenvia para a poesia occitânica e para o conceito de amor como serviço, que encontramos, entre nós, nas cantigas de amor.
 
verso 11:
é ter com quem nos mata
morrer de amor

 

lealdade
e ser / continuar leal/fiel
 
Amar alguém implica fidelidade absoluta, apesar de o amor não ser correspondido pelo outro.
Este tópico da morte de amor encontra-se também na cantiga de amor. Aquele que ama sente lealdade pelo objeto do seu amor, apesar de este o fazer sofrer.

Conclusões:
1.ª) o amor é um sentimento indefinível (cf. uso do artigo indefinido);
2.ª) o amor é um sentimento contraditório (cf. antíteses, oximoros/paradoxos, metáforas e bipartição dos versos).
 
2.ª parte (2.º terceto) – Chave de ouro: o amoré um sentimento contraditório, mas procurado pelos corações humanos.
 
▪ O sujeito poético interroga-se como pode o ser humano aceitar de bom grado o amor, se sabe que experimentará as contradições e tensões violentas desse sentimento.
 
▪ Apesar de produzir efeitos contrários, o amor continua a ser perseguido, procurado, pelos seres humanos.
 
Conjunção coordenativa adversativa «mas»: marca a oposição entre o caráter contraditório do amor e o facto de, mesmo assim, ser procurado pelos seres humanos.
 
Interrogação retórica:
. traduz a perplexidade do «eu» face ao facto de o Homem procurar e se entregar ao amor, apesar de este ser um sentimento contraditório;
. apresenta a contradição como a verdadeira característica do amor.
 
   

terça-feira, 2 de março de 2021

Análise de "Se Helena apartar"


 
Assunto: o sujeito lírico descreve a beleza dos olhos de Helena, cuja magia e beldade é comprovada pelo efeito que provocam: tornam belos todos os elementos da Natureza, cativam os corações e a alma e o próprio amor lhes presta vassalagem.
 
 
Tema: o poder transformador de Helena / a beleza da mulher.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (mote) – Introdução: se Helena afastar os seus olhos do campo, nascerão abrolhos – a beleza da Natureza depende dos olhos de Helena.
 
2.ª parte (vv. 4-12) – Os efeitos / o poder dos olhos de Helena na Natureza:
▪ a verdura dos campos;
▪ acalma os ventos;
▪ transforma espinhos em flores;
▪ faz as ferras floridas;
▪ faz límpidas as fontes (isto é, purifica-as).
*     Os campos são verdes, porque Helena está presente e os seus olhos também possuem essa cor.
*     Os gados beneficiam indiretamente da cor dos olhos de Helena, pois o seu alimento é a verdura dos campos, que existe graças àquela.
*     Os versos 4 a 7 apresentam um discurso de 2.ª pessoa (“pasceis”, “sabei”), enquanto os restantes contêm um discurso de 3.ª pessoa. Além disso, no verso 5 está presente uma apóstrofe aos gados, que apascenta nos campos (eles são verdes devido à presença de Helena e à cor dos seus olhos), notando-se como a ação da mulher é muito abrangente, dado que têm influência direta na verdura e indireta nos animais que dela dependem.
*     Além disso, tornam a beleza bela e trazem-lhe paz e sossego.
 
3.ª parte (vv. 13-21) – Os efeitos dos olhos de Helena nas pessoas:
▪ trazem as vidas suspendidas – ou seja, causam admiração e fascínio;
▪ prendem os corações – isto é, seduzem (fazem com que os homens se apaixonem);
▪ uma alma pende cada pestana – sentido equivalente ao verso 18.
*     Helena é uma figura graciosa, inatingível, espiritualizada, divinizada (“Com graça inumana”), pertencente a outro mundo. O amor que inspira é um amor espiritualizado, inefável.
 
4.ª parte (vv. 22-24) – Os efeitos dos olhos de Helena no Amor (Cupido), que se ajoelha, rendido à magia do olhar:
▪ rendição (v. 22);
▪ êxtase e espanto / surpresa (v. 24).
*     Helena é tão bela que o próprio Amor (Cupido) tem para com ela uma atitude de vassalagem, ajoelhando-se na sua frente.
 
Uma outra possível divisão do texto passará por considerar que é constituído por duas partes: a primeira, situada entre os versos 1 e 13 e constituída pelos efeitos dos olhos de Helena na Natureza, e a segunda, entre os versos 14 e 24, compreendendo os efeitos nos seres humanos.
 
 
Caracterização dos olhos de Helena
▪ verdes: “A verdura […] deveis / aos olhos de Helena”;
▪ serenos: “Os ventos serena”;
▪ belos: “faz flores d’abrolhos”; “Faz serras floridas”;
▪ claros: “Faz claras as fontes”;
▪ luminosos: “na luz dos seus olhos”;
▪ meigos e sedutores: “Os corações prende”;
▪ graciosos e divinos: “Com graça inumana”
▪ amorosos: “Amor se lhe rende”.
 
 
Retrato da Natureza
 
• A imagem que nos é apresentada no poema corresponde ao locus amoenus clássico, isto é, uma paisagem idealizada, uma espécie de paraíso terrestre, constituído por elementos como o campo verdejante, um arvoredo vasto, flores coloridas e fontes claras (águas límpidas e transparentes).
 
• Esta natureza mágica propicia o amor, o encantamento sensorial e espiritual do Homem.
 
 
Relação entre Helena e a Natureza
 
• Os olhos / a beleza de Helena influencia(m) grandemente a Natureza: os seus olhos verdes e belos tornam a terra verde e florida, que depois serve de alimento para o gado; a paz do seu olhar serena os ventos, transforma os espinhos em flores e clareia a água das fontes.
 
• Por outro lado, estas características prendem os corações, isto é, fazem o Amor render-se, numa espécie de vassalagem amorosa (personificação do Amor – vv. 22 a 24).
 
• Em suma, a beleza da Natureza fica a dever-se à beleza de Helena, que tem o poder de transformar o que se situa em seu redor.
 
 
Análise formal
 
Classificação: vilancete constituído por um mote de 3 versos (terceto) e três voltas de 7 versos (sétimas).
 
Métrica: versos de 5 sílabas métricas – redondilha menor (medida velha).
 
Rima:
» esquema rimático: abb / cddccbb
» o 1.º verso do mote é branco
» rima emparelhada e interpolada
» aguda (vv. 1, 5 e 6) e grave (os restantes)
» consoante (todo o poema)
» pobre (“olhos” e “abrolhos”) e rica (“amena” e “Helena”)
» imperfeita (“giolhos” e “olhos”)
 
 
Recursos expressivos
 
Reiteração do nome «olhos» (5 vezes): enfatiza a importância, os efeitos e o seu poder transformador.
 
Adjetivos: realçam a beleza de Helena, dos seus olhos e respetivo poder.
 
Verbos:
Presente do indicativo: torna mais viva a presença dos olhos de Helena.
Futuro do indicativo: exprime os efeitos desastrosos do eventual afastamento dos olhos de Helena (v. 13).
 
Sinédoque: “seus olhos” (v. 2) – o sujeito poético atribui à mulher as maiores qualidades físicas e morais, referindo-se-lhe através de uma das partes do corpo mais importantes e expressivas – os olhos (são o espelho da alma).
 
Apóstrofe (v. 5): identifica o interlocutor do sujeito poético, que inconscientemente beneficia dos efeitos transformadores dos olhos de Helena, para lhe dar conta do seu extraordinário poder, capazes de colorir a verdura.
 
Hipérbato (vv. 8 a 10): o «eu» dá primazia à ação e ao objeto onde esta recaiu ao inverter a ordem natural dos elementos da frase, relegando para o fim o sujeito (“O ar de seus olhos”).
 
Anáfora (vv. 9, 11-12): enfatiza o poder transformador dos olhos de Helena sobre a Natureza.
 
Enumeração + Assíndeto (vv. 8 a 12): o sujeito poético enumera os elementos da Natureza afetados e transformados pelos olhos de Helena.
 
Interrogação retórica: salienta o poder dos olhos de Helena, que transita da Natureza para as vidas humanas; leva-nos a refletir sobre os efeitos dos olhos nos seres humanos (se eles conseguem ter todo aquele poder na Natureza, o que conseguirão fazer à vida das pessoas?).
 
Comparação (vv. 15-17): destaca a quantidade de vidas que Helena traz apaixonadas pela luz dos seus olhos; deste modo, reforça-se o efeito provocado por eles, equiparando um molho de ervas ao conjunto de vidas presas pelo fascínio de Helena.
 
Personificação (v. 22): traduz a atitude de vassalagem do Amor face aos olhos de Helena.
 
Sinédoque + Metáfora + Hipérbole (“De cada pestana / Uma alma lhe pende” – vv. 20-21): reforço do poder de Helena através da referência às pestanas enquanto agentes de sedução e magia (as pessoas ficam suspensas da beleza do seu olhar). As pestanas representam os olhos e estes simbolizam a própria Helena.
 
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...