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segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Análise do poema "Já Bocage não sou", de Bocage

    Segundo a tradição, este soneto terá sido composto no momento da agonia final de Bocage. De qualquer forma, seja ou não verdade esta suposição, não restam grandes dúvidas acerca da fase da vida em que o poeta escrever o soneto: fim da vida, aproximação da morte [“À cova escura / Meu estro vai parar desfeito em vento.”; “(...) a língua quase fria”].
 
 
n Assunto: reconhecimento da ausência de mérito/valor dos seus textos (em prosa e em verso) e o arrependimento perante a vida inútil que viveu.

 
n Tema: arrependimento/autocrítica do sujeito poético relativamente à sua existência.
 
 
n Estrutura interna
 
1.ª parte (vv. 1-4) – Mostrando-se consciente da proximidade da morte, o sujeito poético apresenta-se desalentado e decepcionado perante si próprio, desejando que o seu sofrimento e remorso lhe atenuem o castigo de que irá ser vítima. É como que a síntese das restantes estrofes.
    Repare-se na expressão egotista (uso continuado da 1.ª pessoa), aqui reforçada pela presença do nome próprio do poeta. Nesta estrofe e, de um modo geral, dentro das restantes, as formas verbais partem do presente para o passado e, depois, para o futuro, demarcando assim três momentos: o arrependimento de agora sucede à ilusão de ontem, e justifica o desejo de uma morte a pensar na eternidade. O passado e o presente são interpretados e projectados no futuro: depois da morte, tudo acabará, e do engenho poético (estro) que o celebrizou nada restará, a não ser pó e vento (vv. 1-2). Neste contexto, o sujeito poético formula um desejo estruturado com base numa metáfora, numa hipérbole e num oximoro: “O meu tormento / Leve me torne sempre a terra dura.” (vv. 3-4), ou seja, o tormento do sujeito poético torna leve a terra da sepultura, quer dizer, o seu desespero será atenuado após a morte – ou com a morte – uma vez que já padeceu de múltiplos sacrifícios durante a sua existência.
 
2.ª parte (vv. 5-14) – O sujeito poético desenvolve o seu pensamento, revela uma grande capacidade de auto-análise e autocrítica, acentua o seu arrependimento e a vontade de remediar (se possível) os maus efeitos produzidos/causados pelos seus textos.
    O sujeito poético, na 2.ª quadra, apercebe-se de que a sua inspiração poética o fez cometer erros, de que fez uma vã figura, reconhecendo o uso negativo que fez da inspiração poética e a falta de racionalidade que lhe custou o desgosto em que se encontra agora. É isso que traduz a apóstrofe e a exclamação “Musa!”, ou seja, uma reflexão e confissão do sujeito lírico sobre a utilização dada à imaginação e às palavras poéticas, daí que o apelo feito, em jeito de desabafo, à divindade que possibilita tal poesia consiste numa espécie de pedido de desculpas ou comiseração. É a função morigeradora da morte.
    No 1.º terceto surge o arrependimento do sujeito poético e a vontade de poder alterar o passado. Ou seja, apercebendo-se da nulidade da sua existência/actividade poética (vv. 1-2, 5), admitindo e arrependendo-se dos seus erros (vv. 9, 12-13), o sujeito poético deseja alterar o rumo dos acontecimentos futuros, alertando poetas novos (“mocidade”, v. 10) para o carácter utópico e fantasista que a poesia possui e que eles procuram (“som fantástico”, v. 11).
    Na derradeira estrofe, o sujeito poético autonomeia-se “Outro Aretino” (Aretino – 1492-1556 – foi um poeta satírico italiano de vida boémia) e sente remorsos por ter produzido poesias satíricas, imorais. Daí que se dirija aos leitores (“gente ímpia”, v. 13), a quem apelida de ingénuos por acreditarem nas ilusões da poesia, ou seja, ele confessa-se perante o público, arrepende-se e, de forma a ser “absolvido” pelos leitores, pede que destruam os seus textos, que o esqueçam, pois, já que a morte que se aproxima irá pôr fim aos seus devaneios poéticos, pretendendo não deixar lembranças negativas naqueles que o conhecem – deseja que a morte física abranja os seus textos igualmente, e que não perdure a imagem desencantada e mesmo deplorável daquele que foi “Outro Aretino” (v. 12).
    Em suma, o sujeito poético encontra-se moribundo, prestes a morrer (vv. 1-4) e foi a partir desta tomada de consciência do momento que atravessava que efectuou a retrospectiva da sua vida, apercebendo-se da nulidade da sua existência/actividade poética (vv. 1-2, 5), admitindo e arrependendo-se dos seus erros (vv. 9, 12-13), desejando alterar o rumo dos acontecimentos futuros, alertando poetas novas (“mocidade”, v. 10) para o carácter utópico e fantasista que a poesia possui e que eles procuram (“som fantástico”, v. 11), mas que, quando é usada de forma imoral (“Outro Aretino fui...”, v. 12), faz sentir remorsos a quem a ela recorre. É, pois, na fase terminal da sua vida que o sujeito de enunciação envida esforços no sentido de não deixar rancor nas pessoas, preferindo o esquecimento, a destruição dos seus versos (v. 14) à recordação negativa.

 
n Estado de espírito do sujeito poético
 
    Neste soneto, o sujeito de enunciação tece uma autocrítica, sobressaindo a auto-recriminação e o desconforto sentidos pelo EU lírico relativamente ao desrespeito manifestado perante outrem (“Eu aos Céus ultrajei!”, v. 3; “A santidade / Manchei!...”, vv. 12-13); a humildade e a consciência de que a sua existência poética teve um efeito nulo, inútil por obedecer a impulsos irracionais (“... vã figura / Em prosa e verso fez meu louco intento”, vv. 5-6); o remorso e a tentativa de contribuir com a sua experiência para modificar comportamentos semelhantes ao seu (vv. 10-11); a resignação, a submissão perante o público, a modéstia ao propor o esquecimento (v. 14), a anulação da sua pessoa, tal como fora exposto logo no verso 1: “Já Bocage não sou”.
    Outros sentimentos do sujeito são a desilusão do momento presente, o arrependimento dos seus actos passados, a falta de segurança e confiança, o desânimo, o desalento e o remorso por não ter sido mais lúcido, mais racional.
 
 
n Recursos poético-estilísticos
 
1. Nível fónico

    O poema é composto por duas quadras e dois tercetos (soneto), cujo esquema rimático é ABBA/ABBBA/CDC/DCD, verificando-se rima interpolada e emparelhada nas quadras e cruzada nos tercetos. Todas as rimas são graves e consoantes; nos versos 5 e 8, 9 e 11 é rica (“figura”/”pura”), nos restantes é pobre (“escura”/”dura”). O transporte existe nos versos 1-2, 3-4, 5-6, 9-10, 12-13. A métrica é o verso decassílabo.
 
 
2. Nível morfossintáctico
 
    Existe grande abundância de vocábulos de cariz negativo no poema: cova, escura, desfeito, ultrajei, tormento, dura, , louco, fria, manchei, ímpia, rasga. Esta abundância contribui para evidenciar a autoconsciência que o sujeito poético tem de si e dos trabalhos que produziu, o temor que sente relativamente ao futuro – castigo divino – e o apelo que dirige aos leitores no sentido de destruírem os seus textos e, dessa forma, fazer desaparecer os erros/malefícios provocados pelos seus textos.
    A partir da análise das pessoas verbais e dos pronomes pessoais e determinantes na 1.ª pessoa gramatical (meu, vv. 2, 3, 6; me, vv. 4, 9, 13; meus, v. 14), conclui-se que o sujeito poético elaborou uma auto-análise, na medida em que, além dos pronomes e determinantes já referidos, predomina a 1.ª pessoa verbal do singular (6 ocorrências) em frases onde se refere a si próprio, mencionando também aspectos exteriores à sua vida, mas que são parte integrante da sua personalidade e actividades (6 ocorrências). Quanto aos tempos verbais, alternam o presente, o passado e o futuro: o sujeito poético mostra-se consciente quanto à insensatez, irracionalidade e efeitos prejudiciais causados pelos seus versos (vv. 3, 6-9, 12-13) – passado; assume a culpa, os seus erros, arrependendo-se (vv. 5, 9) – presente; reconhece o fim do seu trabalho (v. 2), teme o castigo (v. 4) – futuro. Por outro lado, o uso do imperativo tem como finalidade alterar o que for possível no futuro: a crença na utopia da poesia a que deseja pôr fim (v. 10) e a sua imagem negativa que deseja ver apagada (v. 14), através da destruição dos seus textos.
    Tratando-se de um poema com o qual se pretende fazer uma caracterização, neste caso, a autocaracterização do sujeito poético, é natural a variedade de adjectivos que contribuem e reforçam essa caracterização. A sua colocação nas frases pode tornar o efeito mais objectivo (pospostos) ou mais subjectivo (antepostos). No texto verifica-se a anteposição dos adjectivos nas afirmações em que o sujeito poético se refere a si, à sua imagem (v. 5), à sua audácia (v. 6), à sua tentativa de alertar os outros (v. 10); a posposição dos adjectivos surge quando o sujeito poético faz referências mais objectivas e a aspectos exteriores a si, à sua sepultura (vv. 1 e 4), à razão (v. 8), à ilusão prematura dos novos poetas (v. 11) e aos leitores (v. 14).
    No que diz respeito à pontuação, o predomínio das reticências põe em relevo o carácter hesitante do sujeito poético, ao constatar a desilusão do momento presente (1.ª estrofe), o arrependimento dos seus actos (2.ª e 4.ª estrofes), denotando-se no sujeito poético a falta de segurança e de confiança, características de quem cometeu actos impróprios, injustos e os assume perante os outros. As exclamações reforçam a função das reticências, na medida em que transmitem o estado de espírito negativos do sujeito lírico: desconforto e desânimo em relação a si próprio, remorso por não ter sido mais lúcido e racional.
    A interjeição Oh (v. 13) contribui para acentuar a emotividade das palavras transmitidas, salientando-se a pena, o lamento, a desilusão relativamente ao seu passado.
    Ã convulsão interior do sujeito poético é transmitida ainda com o auxílio de outros procedimentos formais e estilísticos: a bipartição de alguns versos (1, 3, 12 e 14), responsável pela criação de uma pausa no seu interior, justificando o encavalgamento da segunda parte com o verso seguinte; a ênfase final no sentimento de fé numa vida transcendente, que é expressa com a repetição da forma do verbo crer: se antes o tomaram como modelo de poeta, devem agora recebê-lo como paradigma do arrependimento. Note-se ainda como a palavra ímpia(v. 13), acentuada como grava (impia), rima com fria e corria (vv. 9 e 11), através do processo de mudança de acento (diástole).
    O hipérbato do verso 1 (“Já Bocage não sou!...”) reforça o desânimo e a desilusão do sujeito poético ao anular a sua própria pessoa, deixando evidente o que fora em tempos – note-se a colocação do nome no interior de um segmento.

 
3. Nível semântico
 
    O eufemismo e o hipérbato dos versos 1 e 2 (“À cova escura / Meu estro vai parar desfeito em vento...”) denotam o carácter moribundo do sujeito poético (“cova escura”), o qual vai contribuir para o tom confessional do poema. Esta sugestão de morte aparece noutra sugestão eufemística presente no verso 9: “... a língua quase fria...”.
    A metáfora e o oximoro dos versos 3 e 4 (“O meu tormento / Leve me torne sempre a terra dura.”) traduzem um desejo do sujeito lírico, ou seja, que o seu tormento torne leve a terra da sepultura, que o seu desespero seja atenuado com e após a morte, uma vez que já padeceu de múltiplos sacrifícios durante a sua existência. A impossibilidade de concretização deste pedido acentua o seu estado de espírito de tristeza, mágoa e dor.
    A apóstrofe “Musa!” (v. 7) expressa uma tentativa de estabelecer contacto com aquela divindade que permite a existência de inspiração poética, em forma de desculpabilização pelo mau uso que fez daquele dom. Quer dizer, com esta apóstrofe o sujeito poético dirige-se, neste momento da sua reflexão e auto-análise, à própria poesia de que se serviu para as suas loucuras e imoralidades, lamentando-se do uso negativo que fez da sua inspiração poética e reconhecendo a falta de racionalidade que lhe custou o desgosto em que se encontra agora. O poema trata de uma reflexão e confissão do sujeito lírico sobre a utilização dada à imaginação e às palavras poéticas, daí que o apelo feito, em jeito de desabafo, à divindade que possibilita tal poesia consiste como que num pedido de desculpas ou comiseração (note-se cumulativamente o emprego da personificação).
    A partir da metáfora do verso 8 (“Se um raio de razão seguisse, pura!”), equipara-se a razão ao Sol por ser aquilo que pode esclarecer a mente do sujeito lírico e torná-la lúcida e sensata, tal como o Sol ilumina os dias e o espaço que habitamos.
    Na expressão “... a língua quase fria / Brade em alto pregão à mocidade...” (vv. 9-10), toma-se a parte do corpo que tem a capacidade de comunicar – “língua” – pelo todo a que pertence – o sujeito poético – como forma de transmitir a intenção deste em expressar aos outros a sua experiência – estamos perante uma sinédoque. Por outro lado, o desespero do sujeito é tão grande que conta, nos momentos que antecedem a sua morte, poder modificar as atitudes daqueles que ouvem/lêem, gritando e alertando poetas novos para o carácter utópico e fantasista que a poesia possui e que eles procuram, mas que, quando é usada de forma imoral, faz sentir remorsos a quem a ela recorre.
    Por meio da apóstrofe do verso 13 (“... gente ímpia...”) o sujeito poético dirige-se aos leitores, a quem apelida de ingénuos por acreditarem nas ilusões da poesia. Confessa-se perante o público, arrepende-se e, de forma a ser “absolvido” pelos leitores, sugere que destruam os seus textos, que o esqueçam, pois, já que a morte que se aproxima irá pôr fim aos seus devaneios poéticos, pretende não deixar lembranças negativas naqueles que o conhecem – deseja que a morte física abranja também os seus textos e que não perdure a imagem desencantada e deplorável daquele que foi “Outro Aretino”.
    A metáfora dos versos 12 e 13 (“A santidade / Manchei...”) salienta o efeito negativo ou pejorativo das palavras/poesia do sujeito poético, contrastando com a pureza e idoneidade conferida pelo primeiro termo.
 
 
n Características

domingo, 25 de agosto de 2024

A escola do século XIX em imagens - XIV


Nikolai Bogdanov-Belsky – À porta da escola (1897)

    Quando pintou este quadro, Bogdanov-Belsky era já um pintor conceituado na Rússia, embora estivesse na altura a viver em Paris, cidade onde completou a sua formação artística. Mas nunca esqueceu as suas origens humildes: nascido numa família de camponeses pobres e vivendo com dificuldades – uma realidade muito comum na Rússia czarista – o pintor conservou sempre um especial carinho pelos camponeses, que se exprime frequentemente nas suas pinturas.

    Nesta pintura, vemos em destaque um rapaz do campo que, num misto de curiosidade, acanhamento e vontade de aprender, observa o interior da sala de aula onde já se encontram o professor e os colegas., Não lhe vislumbramos o rosto, mas podemos apreciar o contraste entre as roupas grosseiras e esfarrapadas que veste e o interior organizado da sala de aula, com os alunos nas suas carteiras, o quadro preto à sua frente, mapas e quadros na parede. Nikolai Bogdanov-Belsky, um pintor formado no Realismo, dá aqui os seus primeiros passos no Impressionismo, o estilo então preponderante nas escolas de arte parisienses que frequentou. Uma influência que se nota facilmente, por exemplo, no cuidado tratamento da luz que se projecta no interior da sala.

    Este retrato do novo aluno à porta da escola não só nos transporta ao ambiente de uma escola rural dos finais do século XIX como adquire até um cunho autobiográfico: o artista revê-se neste humilde rapaz, à partida predestinado às lides do campo, mas com enorme vontade de aprender muitas mais coisas do que as que o esquálido mundo em que vive tem para lhe ensinar. E é a escola que lhe abrirá novos e deslumbrantes horizontes. Isto é o exacto oposto do discurso cretino dos detractores da “escola do século XIX”: a escola não existia nesse tempo, como nos querem convencer, para formatar alunos destinados às profissões mecânicas. Pelo contrário, foi graças à instrução escolar que milhares e milhares de estudantes pobres, mas aplicados e talentosos, puderam escapar da sua condição de partida e daquilo que seria o seu destino quase inevitável: o trabalho nos campos, nas fábricas ou nas minas.

Fonte: Escola Portuguesa.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Caracterização de Ofélia

    Ofélia é uma de duas personagens femininas de Hamlet, mas a trama que a envolve está intimamente relacionada com três figuras masculinas: Polónio, seu pai, Laertes, seu irmão, e Hamlet, o seu interesse amoroso.
    Ofélia é uma mulher dinamarquesa nobre, jovem e bela, doce e inocente, honesta, gentil, sensível e inteligente, mas controlada e manipulada por forças que lhe são superiores, nomeadamente os homens da sua vida.
    A sua relação com Hamlet é complexa. No início da peça, aparentemente os dois compartilham um afeto genuíno (por exemplo, Ofélia refere ter recebido cartas do príncipe, nas quais este expressava o seu amor por ela), mas o relacionamento é ambíguo. Porém, desde logo se percebe que a jovem depende das figuras masculinas para lhe dizerem como se comportar e o que fazer. De facto, o pai e o irmão advertem-na para não confiar nas expressões de amor de Hamlet, sugerindo que o sentimento dele pode não ser sincero e que ela pode ser desonrada) e, mais do que isso, Polónio usa-a para espiar o príncipe e tenta descobrir a origem da sua loucura e, em última análise, força-a a devolver as cartas de Hamlet e a renunciar ao seu afeto. Ofélia, obediente, corta os laços com ele, o que desperta a fúria do príncipe, que começa a trata-la de forma cruel e desconcertante, o que pode ser lido como um reflexo da própria dor de Hamlet, mas também como uma estratégia tendente a afastá-la ou a protegê-la como parte do seu esquema para parecer louco. Exemplificativa de tudo isto é a sugestão para que se torne freira. A morte de Polónio, seu progenitor, às mãos de Hamlet sela o destino trágico do relacionamento entre ambos e da própria Ofélia. De facto, esta, já num estado de fragilidade emocional devido ao comportamento errático e inconsistente do príncipe, fica devastada pela morte do pai, o que a leva à loucura e, posteriormente, à morte em circunstâncias ambíguas. A reação de Hamlet ao passamento da jovem, de arrependimento e dor, indica que os seus sentimentos por ela eram genuínos.
    A relação entre Ofélia e Polónio é marcada pela obediência da filha relativamente ao pai e pelo controle deste sobre ela, o que traduz uma grande desigualdade de poder, característico de uma sociedade patriarcal e machista. De facto, a jovem é uma filha obediente, respeitosa e submissa, seguindo as ordens e os conselhos do pai sem os questionar. Por seu turno, Polónio procura controlar a vida de Ofélia, nomeadamente a amorosa, essencialmente porque desconfia das reais intenções de Hamlet relativamente à filha e, porque acredita que o interesse não é sério, instrui-a a cortar relações com ele. No fundo, isto significa que Polónio a usa como um peão na sua demanda de poder e influência na corte. Exemplificativo desta ideia é o modo como a usa para espiar o príncipe, o que, em última análise, a coloca numa situação de vulnerabilidade e perigosa. Em todo o trajeto, nunca este pai parece ter em consideração os sentimentos e os interesses da sua filha, antes a manipula e usa para atingir os seus objetivos, sem se preocupar com o impacto emocional que pode ter sobre ela. Exemplifica isso o facto de a usar para testar a sinceridade do amor e as intenções de Hamlet, não considerando como esse plano poderia afetá-la emocionalmente. No entanto, nada disto afeta o amor de Ofélia pelo pai, daí o desamparo e a dor que sente aquando da sua morte, que a deixa devastada e desamparada.
    Relativamente a Laertes, existe entre ambos um amor filial e uma afeição sinceros. O irmão mostra sempre grande cuidado e preocupação com ela, procurado protegê-la como irmão mais velho, aconselhando-a a ser cautelosa relativamente aos avanços amorosos de Hamlet. No fundo, Laertes reflete a mentalidade da época, que associava a dignidade e a honra da mulher ao seu comportamento e castidade. Em simultâneo, essa postura traduz uma atitude paternalista sobre a figura feminina, que necessita de alguém que a guie e proteja dos próprios sentimentos e das intenções dos homens que a rodeiam.
    Por outro lado, embora não de forma tão intensa, também Laertes exerce controle sobre a vida de Ofélia, influenciando e condicionando as suas decisões, o que significa que, apesar de amada, vive cercada por figuras masculinas que limitam a sua autonomia. Ela, por sua vez, respeita e ouve os conselhos dele, que confia que a irmã seguirá as suas recomendações, o que configura uma confiança mútua entre ambos. Assim sendo, não é de estranhar que Laertes, após a sua morte, seja consumido pela culpa e pela dor, pois sente-se culpado por não ter estado presente para a proteger, o que o leva a procurar vingar-se de Hamlet, por o considerar culpado do desenlace trágico da irmã.
    Ofélia vê-se envolvida em intrigas políticas e é manipulada por figuras de poder, não obstante manter uma relação distante e formal com o casal real, que olha para a jovem como um instrumento para espiar Hamlet, desconsiderando os seus sentimentos e o seu bem-estar. Curiosamente, ou não, embora esteja próxima do poder e da corte, Ofélia não possui qualquer influência nela, antes vive subordinada à autoridade política. No fundo e em suma, ela é uma vítima do poder: não exerce qualquer influência sobre os acontecimentos e, pelo contrário, é manipulada pelas forças políticas que a envolvem. Enquanto jovem mulher na corte, ela é ensinada a ser obediente e submissa, quer pelo pai, quer pela própria corte. É possível que a jovem se sinta culpada pela morte do pai, ainda que indiretamente, pois foi a sua relação com Hamlet que precipitou os eventos trágicos.
    Ofélia possui uma visão idealizada e romântica do amor, exprimindo um apelo genuíno por Hamlet e acredita nas suas promessas amorosas. O seu amor por ele é puro e inocente, refletindo a sua inocência e a sua sensibilidade, mas acaba por ser colocado à prova pela manipulação e pela desconfiança que pairam sobre ele. Por outro lado, a jovem é ensinada a valorizar a castidade e a pureza, como a sociedade esperava de uma jovem nobre. O sexo é encarado por ela como algo que deve estar conectado à honra pessoal e a mulher deve preservar a sua virgindade e castidade. No final, a jovem vive uma grande confusão emocional perante a sucessão de acontecimentos negativos que marcam a sua vida, começando pela forma como Hamlet a trata a partir de certo momento e que faz com que o amor se torne em fonte de sofrimento. Todo este caldo de cultura faz com que Ofélia nunca tenha oportunidade de expressar a sua sexualidade ou o seu amor de forma plena, pois é constantemente condicionada pelos homens da sua vida, que a oprimem e levam ao silenciamento dos seus desejos e sentimentos.
    Em suma, Ofélia é uma jovem nobre, inocente, pura e obediente que contrasta com a corrupção que caracteriza a corta da Dinamarca e que, no fundo, destrói as referidas pureza e inocência, esmagadas pelo mundo em que vive, prenhe de violência, traição e manipulação. Por outro lado, ela é vítima de uma sociedade patriarcal que controla e oprime as mulheres, determinando o seu comportamento e escolhas. Além disso, a sua loucura simboliza o modo como aquela sociedade marginaliza aqueles que se desviam do caminho esperado, bem como a fragilidade da mente humana perante a vivência de traumas e de pressões insuportáveis.
    Em vários momentos da peça, Ofélia canta canções sobre flores e a própria morte ocorre no contexto do afogamento num rio, no meio de grinaldas de flores que tinha juntado, o que representa a sua ligação à natureza. Note-se que várias das flores a que está associada representam as suas emoções e as relações com outras personagens. Por exemplo, o alecrim remete para a lembrança, enquanto a violeta, a fidelidade.
    A sua morte, para a qual parece fadada desde o início da obra, é ambígua, pois é sugerido que ela se afogou num rio de forma acidental, mas também existem indícios de que se trata de suicídio. De facto, a rainha narra a morte de forma poética, porém a imagem de que ela era uma jovem desesperada, incapaz de suportar o seu infortúnio, que se deixou levar pela água indicia que, no seu estado de insanidade, desistiu de lutar. Por outro lado, tratando-se efetivamente de um suicídio, tal pode significar que, nos seus derradeiros momentos, Ofélia ganhou uma espécie de autonomia de que nunca usufruiu ao longo da vida.

Caracterização de Gertrudes

    Gertrudes é a rainha da Dinamarca, esposa de Cláudio, que desposou recentemente, e viúva do seu irmão, o rei Hamlet, com quem teve um filho, o protagonista da peça, homónimo do pai.
    Gertrudes é uma personagem complexa e intrigante, pois são mais as perguntas que o texto levanta sobre ela do que as respostas. A rainha amava o primeiro marido? Ama o segundo? Por que razão desposou Cláudio: por amor ou apenas para conservar o seu status e a sua posição social e política? Estava envolvida amorosamente com Cláudio ainda em vida do primeiro marido? Sabia, ou pelo menos, suspeitava das ações de Cláudio? Acredita em Hamlet quando este afirma que está louco ou finge acreditar simplesmente para se proteger? Trai a confiança do filho intencionalmente para agradar ao marido ou crê estar a proteger o segredo do jovem?
    Fisicamente, não há grandes dados sobre Gertrudes. Dada a idade de Hamlet, tratar-se-á de uma mulher de meia-idade, provavelmente na faixa dos 40, 50 anos, certamente com uma aparência majestosa, nobre, elegante, graciosa e nobre. Ou seja, a sua fisionomia refletirá a sua condição de rainha e a sua posição de poder, envergando trajes luxuosos e joias de acordo com o seu estatuto social.
    Psicologicamente, a rainha é uma mulher vulnerável, superficial, frágil e dependente que procura afeto, estabilidade e proteção num ambiente corrupto e instável. Além disso, evidencia uma certa tendência para usar os homens para satisfazer o seu instinto de autopreservação, o que, naturalmente, a coloca na dependência das figuras femininas da sua vida. De facto, enquanto rainha da Dinamarca, a sua segurança a todos os níveis e a sua posição social dependem da ligação a um homem poderoso, uma realidade que poderá explicar o seu casamento célere com Cláudio, após a morte do primeiro marido. Outra hipótese poderá ter a ver com o seu receio de ficar sozinha. Em simultâneo, é alguém que parece procurar evitar os conflitos e manter uma imagem (aparente) de normalidade na corte. Além disso, mostra-se sempre incapaz de compreender plenamente os sentimentos de Hamlet, o que traduz uma certa falta de empatia relativamente aos que a rodeiam, ou então uma negação consciente para manter a sua paz interior.
    Algumas ações e a sua morte no final da peça aproximam-na do estatuto de vilã. Por exemplo, o facto de se casar com Cláudio, o irmão do falecido marido, pouco depois da morte deste, põe em causa a sua lealdade e a sua moralidade. Esta perspetiva parece ganhar sustentação através da acusação do filho, segundo o qual padece de luxúria e fraqueza moral, sugerindo que cedeu às pressões e à tentação de Cláudio. Assim sendo, porque age ela dessa forma? Quase certamente, porque deseja manter a sua posição social e política e assegurar uma vida protegida e confortável, mesmo que para tal tenha de descurar questões como a justiça e a verdade.
    Por outro lado, enquanto rainha, Gertrudes encontra-se no olho do furacão, no centro do poder político e das maquinações e jogadas políticas que o seu exercício implica. Essa sua posição obriga-o a sustentar uma fachada de felicidade e dignidade, sobretudo nos tempos de mudança e incerteza que se vivem na Dinamarca. Em contrapartida, a sua postura coloca-a numa circunstância que a expõe e torna vulnerável às críticas e à desconfiança, especialmente no que respeita à sua lealdade ao rei Hamlet.
    A sua relação com Cláudio constitui, de facto, uma das facetas controversas da peça, desde logo porque ele é o irmão do falecido monarca e tio do príncipe Hamlet. Depois, o antigo soberano morreu em circunstâncias suspeitas e, por último, o matrimónio é célere. O filho considera essa decisão cruel e calculista, porém há que considerar que uma mulher na sua posição, naquela sociedade, não dispõe de grandes alternativas. Quando Hamlet a confronta sobre o passo que deu, Gertrudes admite que refletir sobre a sua decisão de casar com Cláudio, ex-cunhado, é algo demasiado doloroso para pensar. Deste modo, não se sabendo se ela tem consciência do papel do atual marido na morte do anterior, parece preferir não pensar e não aprofundar o assunto. Receito das consequências que daí poderão advir? Medo da descoberta de uma verdade dolorosa? No fundo, de acordo com uma certa perspetiva, o segundo enlace de Gertrudes terá sido uma opção pragmática. Seja como for, a ambiguidade rodeia este relacionamento, pois efetiva-se por amor, por conveniência ou por uma conjugação de ambos.
    Em suma, Gertrudes é uma personagem controversa e ambígua e alguém que não quer ou não é capaz de refletir criticamente sobre si e sobre o contexto em que se insere, parecendo antes atuar de forma instintiva, como é o caso do momento em que corre para Cláudio após o seu diálogo tumultuoso com Hamlet.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Caracterização de Cláudio

    Cláudio é o atual rei da Dinamarca, casado com Gertrudes, anteriormente sua cunhada, após o falecimento do sei primeiro marido, o rei Hamlet, tendo-se tornado, depois do matrimónio, padrasto do jovem príncipe Hamlet, além de tio. No contexto da peça, representa o antagonista, o vilão, do sobrinho.
    Quando a obra tem início, Cláudio tinha acabado de ascender ao trono, ocupando o posto que pertencera ao seu falecido irmão, que morrera recentemente. Para grande constrangimento do jovem Hamlet, ele também desposou a viúva do mano, sua mãe. O aparecimento do fantasma do velho rei ao próprio filho, revelando que Cláudio o assassinou para obter o trono e incitando-o a vingá-lo, faz disparar a desconfiança e o ódio do sobrinho pelo tio e estabelece definitivamente o antagonismo entre ambos.
    Por outro lado, Cláudio é um político calculista, ambicioso, lascivo e dominado pela luxúria, mas, em simultâneo, astuto e inteligente, contrastando com a maioria das outras personagens masculinas da peça. De facto, as demais figuras preocupam-se com questões como a justiça, a moralidade ou a vingança, ao passo que o rei tem como única preocupação a conservação do poder que alcançou por meio do crime, tornando-se um assassino ao envenenar o irmão. De facto, movido pela ambição e pela ganância desmedidas, o soberano visa unicamente manter o que conquistou por todos os meios necessários, não importando o custo. Assim, fica extremamente preocupado quando as suas suspeitas de que o sobrinho conhece os seus crimes se conformam, após a encenação de uma peça de teatro que espelha o modo como assassinou o irmão. A partir daí, o seu único objetivo passa por se livrar de Hamlet. Primeiro, envia-o para Inglaterra, dando instruções a quem o acompanha que o assassine. Como o plano não funciona, cria um duelo entre Laertes e Hamlet, envenenando a espada do primeiro, de modo a que, quando atingir o adversário, o fira mortalmente. Prevendo a possibilidade de o plano não se concretizar como imagina, engendra uma alternativa: envenena vinho que pretende oferecer a Hamlet, caso este derrote Laertes. Tudo isto permite caracterizá-lo como um homem falso, maquiavélico, moralmente corrupto, não obstante no início da obra se apresentar como alguém cordial, educado e preocupado com o sobrinho, mas esta postura é forçada, é fingida. Gradualmente, à medida que a ação se vai desenrolando, a sua verdadeira natureza revela-se como o algodão: frio, implacável, calculista, egoísta, etc. Para atingir o seu desiderato, usa habilmente a linguagem para manipular outras personagens, bem exemplificado pelo diálogo, já no final da peça, que trava com Laertes. Curiosamente – ou não –, Shakespeare compara o seu discurso a veneno a ser derramado nos ouvidos dos seus interlocutores – o método que ele usou para se livrar do irmão.
    A relação matrimonial com Gertrudes parece ser sincera, mas, tendo em conta as características já elencadas, é cabível que se tenha casado com a cunhada como forma estratégica para o auxiliar a obter o trono da Dinamarca após a morte do anterior monarca. O medo crescente que tem do sobrinho faz com que se preocupe apenas consigo, daí, por exemplo, que, quando Gertrudes o informa de que o filho assassinou Polónio, Cláudio não questiona se a esposa poderia ter corrido perigo, mas apenas comenta que ele teria estado em perigo se estivesse na sala.
    Na cena 2 do quinto ato, insiste num terceiro método para liquidar Hamlet (o cálice de vinho envenenado), além dos dois já estabelecidos: a espada afiada e o veneno na sua lâmina, a acrescentar à tentativa falhada de o enviar para Inglaterra para o matar. Os seus planos fracassam graças a um acidente – a troca das espadas por parte de Hamlet e Laertes – tudo corre mal a partir daí: Gertrudes bebe inadvertidamente o vinho envenenado e morre; Laertes e Hamlet morrem também, mas antes o segundo fere o tio mortalmente e obriga-o a beber o resto do vinho envenenado. Deste modo, é lícito concluir que Cláudio é derrubado pela sua própria ambição, maquinação assassina e cobardia.

Caracterização de Hamlet

    Hamlet é o protagonista, a personagem que dá título à peça. No início da obra, conta cerca de 30 anos; é filho da rainha Gertrudes e do falecido rei Hamlet e sobrinho do atual monarca, Cláudio.
    Hamlet é uma figura melancólica, amarga e cínica, dominado pelo ódio, motivado pelas ações e desconfianças relativamente ao tio e pelo casamento da mãe com o homem que suspeita ser o assassino do seu pai. Por outro lado, é alguém reflexivo, sendo dominado sobretudo por questões existenciais, e pensativo que estudou na Universidade de Wittenberg, tendo esses estudos sido interrompidos pela morte do pai. Mostra-se frequentemente indeciso e hesitante, o que alterna com momentos em que age impulsiva e precipitadamente. Todos estes dados estão em consonância com a sua imaturidade e com a luta interior para distinguir entre o que a sociedade espera dele e aquilo em que acredita.
    O fantasma do seu pai aparece-lhe e ordena-lhe que se vingue de Cláudio por o ter assassinado, porém questiona se a vingança é algo correto e fica obcecado em provar a culpa do tio antes de agir. Ele tem de ter a certeza de que foi efetivamente Cláudio quem assassinou o rei Hamlet. É ainda atormentado por inúmeras questões, como, por exemplo, a vida depois da morte, o suicídio, o que sucede aos corpos após a morte, etc. O seu caráter hesitante leva à inação, à reflexão sobre o significado da vida e da morte, bem como à dificuldade em distinguir o que é real do que não é. Como foi referido anteriormente, os momentos de reflexão e hesitação alternam com outros em que age de forma precipitada e impulsiva. Quando age, fá-lo com grande rapidez e escassa ou nenhuma precipitação, como é exemplificado pelo assassinato de Polónio, que ele esfaqueia através de uma cortina, sem verificar previamente quem se esconde atrás dela. Por outro lado, parece ser-lhe fácil adotar comportamentos indiciadores de loucura, comportando-se de forma errática e perturbando as outras personagens com o seu discurso agressivo, irónico e pleno de insinuações.
    O seu caráter indeciso tem consequências funestas: os maus-tratos dirigidos a Ofélia contribuem para a sua loucura progressiva e a sua morte; os que visam a mãe fazem-na sofrer e afastam-nos; até o assassinato de Polónio se relaciona de alguma forma com as suas hesitações e indecisões. Além disso, à medida que adia a concretização da vingança e a reivindicação do trono, o reino da Dinamarca torna-se progressivamente mais instável e exposto a ameaças externas.
    O estado do seu país (“Algo está podre no reino da Dinamarca”) e da família deixa-o triste e melancólico. Por exemplo, a sua deceção com o casamento rápido da mãe com o tio é enorme; por outro lado, repudia Ofélia, uma jovem que anteriormente declarou amar, de forma bastante dura. Alguns dos seus discursos indiciam o seu desgosto e a sua desconfiança relativamente à generalidade das mulheres, exemplificadas pela mãe e por Ofélia. Em diversos momentos da peça, reflete sobre a sua própria morte e até o suicídio. Seja como for, a sua preocupação com a Dinamarca é sentida meramente em termos pessoais e filosóficos, visto que as ameaças exteriores à segurança nacional e os interiores à sua estabilidade ocupam muito pouco o seu pensamento. Mais: algumas dessas ameaças nascem do seu próprio descuido.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Caracterização de Laertes

    Laertes é filho de Polónio e irmão de Ofélia. O seu nome pode ser encontrado na Odisseia: Laertes era o pai de Ulisses, um dos protagonistas dos designados poemas homéricos, uma figura que simboliza a sabedoria, a experiência e a tradição. Na obra de Homero, ele é um homem idoso e sábio que se afasta do centro do poder após a partida do filho pra a guerra de Troia. Por outro lado, ele representa a dor e o sofrimento dos pais que veem os descendentes partir para a batalha e aguardam o seu regresso, sãos e salvos.
    O Laertes de Shakespeare é um filho e cidadão leal, demonstrando um profundo afeto e sentimento protetor por Ofélia, sua irmã, aconselhando-a a manter distância de Hamlet, pois acredita que este não tem intenções sérias relativamente a ela, mostrando-se gentil e amoroso.
    Laertes, no início da peça, mora em França, onde é estudante universitário, ansiando iniciar a sua vida ativa o mais rápido possível. A vida numa grande metrópole mostra-o como uma pessoa cosmopolita e galante, mas também impulsiva, impetuosa, agindo por vezes movido pela emoção, mostrando-se rápido a agir, o que o faz contrastar com Hamlet. De facto, o filho de Polónio é alguém ativo e físico, enquanto o segundo se mostra reflexivo, hesitante, passivo e verbal. Ambos partilham algo (os pais assassinados e o desejo de vingar as suas mortes violentas), porém Laertes é decidido e ativo na obtenção da vingança, não perdendo tempo com reflexões ou hesitações, nem com a certificação da pessoa responsável pela morte do progenitor e da irmã. Ao tomar conhecimento da morte de Polónio, regressa imediatamente à Dinamarca e, furioso, invade o castelo de Elsinore com a intenção de vingar a morte do pai. A sua paixão e impulsividade são claras na maneira rápida e decidida como busca justiça, sem pensar ou ter em conta todas as circunstâncias e consequências. Não obstante essas diferenças entre as duas personagens não impede que o final de ambos seja o mesmo: a morte. Por trás de tudo isso está outro traço semelhante entre os dois: a obsessão pela honra da família.
    No entanto, a sua forma de ser e agir acabam por se voltar contra ele. Com efeito, o seu caráter impulsivo e irrefletido fazem de si uma presa fácil para Cláudio manipular, no sentido de atingir os seus objetivos, ou seja, de eliminar Hamlet. Assim, o rei, compreendendo que Laertes está furioso com a morte do pai e devastado com a da irmã, canaliza esses sentimentos na direção do sobrinho/ enteado, o grande obstáculo à conservação do seu poder, aproveitando astutamente a vulnerabilidade emocional para o atiçar contra o inimigo comum. Para isso, instila no jovem a noção da culpabilidade de Hamlet, alimentando e direcionando dessa forma o desejo de vingança. E nada o detém: insinua que o príncipe tem de ser punido e joga com a honra pessoal e familiar, sugerindo que, se nada fizer para repor a justiça, tal ausência de ação seria profundamente desonroso para Laertes. Depois de manipular o filho de Polónio de maneira hábil e astuta, propõe-lhe um plano para vingar a morte do pai num duelo contra Hamlet, sugerindo que use uma espada afiada e envenenada para garantir que o adversário morra durante o confronto ao ser atingido. Além disso, envenena uma taça de vinho que seria oferecida a Hamlet caso ele vencesse o duelo, estabelecendo, assim, um plano duplo para garantir a sua morte. Porém, a astúcia cruel de Cláudio não se esgota aí: ele manipula o orgulho, a vaidade e a honra de Laertes, sugerindo que prove a sua habilidade na esgrima ao mesmo tempo que vinga o pai de modo digno e público, apelando, desta forma, ao sentido de honra do jovem e à necessidade de demonstrar publicamente o seu valor.
    O filho de Polónio serve a sua coroa, mas antes de tudo situa-se a família, claramente a sua prioridade e a instituição pela qual está sempre disposto a lutar. Essa lealdade para com a família, que inicialmente parece ser uma qualidade sem mácula, cega-o, orientando-o para um único curso de ação: a violência. Nesse contexto, os seus métodos são simples e práticos: encontrar Hamlet e assassina-lo assim que o vir. Só após a insistência de Cláudio se convence a agir de outro modo, isto é, a fazer com que a morte de Hamlet pareça um acidente.
    Instantes antes de morrer, Laertes percebe o seu erro em toda a trama e revela a Hamlet a traição de Cláudio, imediatamente antes de perdoar o príncipe pela sua atuação na morte de Polónio.
    Em suma, Laertes é claramente uma figura trágica que cai por causa das suas próprias ações. Durante o duelo final, ele é mortalmente ferido pela própria espada envenenada que havia preparado, em conluio com Cláudio, num gesto traiçoeiro, para liquidar Hamlet. Compreendendo, nos momentos finais, que foi vítima da manipulação do rei e que a sua obsessão por vingança resultou na sua própria morte, mostra-se arrependido e pede também perdão a Hamlet, revelando, assim, um lado mais nobre e consciente das suas próprias falhas.

Jornalismo de esgoto, penso eu que...


    Esta apareceu na SIC Notícias. A Educação atual e a geração «mais melhor bem» formada de sempre, dito de forma genérica, é uma fraude, uma mentira, um embuste.
    Esta gente não sabe ler, falar e escrever, e o ensino superior não é uma peneira, com certeza. Pior ainda é ver professores a proferir pérolas como «Tu vistes...»...

Caracterização de Polónio, de Hamlet

    Polónio é conselheiro de Cláudio e pai de Laertes e Ofélia.
    No que diz respeito à família, ama os filhos, de quem sente grande orgulho e com quem se preocupa, no entanto pontualmente fica-se com a sensação deque pode sacrificar os seus melhores interesses pelo que considera a decisão política mais correta ou conveniente. Por exemplo, manda espiar o próprio filho e usa a filha como engodo para enganar Hamlet. Quando o filho se prepara para ir para França, hesita em autorizar a sua ida e chega mesmo a prolongar o último encontro entre ambos porque reluta em o ver partir. A mesma preocupação revela com Ofélia, como se pode constatar quando a aconselha a evitar Hamlet, pois inquieta-o o comportamento e a postura do príncipe.
    A família de Polónio contrasta com o núcleo familiar de Cláudio: a primeira pauta-se pelo amor e pela felicidade, enquanto a segunda é disfuncional, marcada pela inimizade e até pelo ódio, pela desconfiança e pelo crime. Os fortes laços que unem o conselheiro do rei aos filhos são exemplificados pela sua reação à morte do pai: Laertes deseja vingar o progenitor e Ofélia é atingida de tal forma pela dor que enlouquece.
    Politicamente, estamos na presença de uma figura pomposa, prolixa, convencional e conivente com o poder político, nomeadamente com o rei, a quem se mostra submisso e subserviente, o que atrai sobre si a desconfiança de Hamlet, que o olha como alguém cobarde e falso. Ao longo de toda a peça, Polónio mostra a necessidade de permanecer nas boas graças do casal real e, para lhe agradar, procura espiar Hamlet. Esta postura leva-o a comportar-se de forma mesquinha, hipócrita, dissimulada e intrometida, mas, em última análise, condu-lo à morte. De facto, procurando mais uma vez servir os interesses de Cláudio, na tentativa de escutar uma conversa entre Gertrudes e Hamlet, esconde-se nos aposentos da rainha atrás de uma tapeçaria e, quando faz ruído, é morto pelo príncipe, julgando tratar-se de Cláudio.
    Por outro lado, Polónio concentra em si momentos de comicidade, sendo fonte de cómico. Por exemplo, pretende ser uma pessoa inteligente, no entanto, ao longo da peça, mostra-se bem menos sábio do que julga. De facto, não possui consciência daquilo que é e das suas insuficiências. Além disso, é uma das figuras da obra que remete para a temática do contraste entre a aparência e a realidade, já que as suas maquinações e subserviência nunca permitem compreender cabalmente o seu «eu» autêntico.

A escola do século XIX em imagens - XIII


Ludwig Passini – Aula de latim (1869)

    Nesta aguarela do pintor austríaco Ludwig Passini, ainda uma sala de aula do século XIX, embora diferente das que tenho apresentado: trata-se de uma aula de latim, certamente num seminário ou outra escola religiosa. Percebemos isso pelas vestes do professor e dos alunos, pois curiosamente não vemos crucifixos ou outros símbolos religiosos na decoração das paredes. O ambiente e a organização do espaço, com os estudantes dispostos em filas laterais e o professor ao centro e ao fundo, num plano mais elevado, são reminiscências das escolas e universidades da Idade Média e do Antigo Regime.
    Nestas escolas, o estudo do latim assumia um papel preponderante. Apesar de ser já então uma língua morta, continuava a ser uma disciplina estruturante, como hoje se diz do Português ou da Matemática. Língua de cultura por excelência, era em latim que se celebravam os ofícios católicos, realidade que persistiu até à segunda metade do século XX, só alterada com o Concílio Vaticano II. Embora escrita originariamente noutras línguas, era na sua versão latina que a Bíblia era estudada e comentada. Um bom domínio da língua dos antigos Romanos era assim requisito indispensável na formação do clero.

    Nos países católicos, os seminários, obrigatoriamente existentes em todas as sedes de diocese, tiveram um papel importante na formação académica dos jovens, permitindo-lhes um percurso que nem sempre desembocava na vida religiosa. Em Portugal, ainda durante a maior parte do século XX, os seminários permitiram a milhares de jovens, estudiosos mas de parcos recursos, realizar estudos secundários. Movida pela necessidade de formar sacerdotes, a Igreja Católica proporcionava ensino gratuito, alojamento e alimentação aos estudantes que acolhia, na esperança de que um bom número deles viesse a enveredar pelo sacerdócio. De quase duas dezenas de crianças e adolescentes que vemos na pintura, quantos lá terão chegado?…

Fonte: Escola Portuguesa.

domingo, 18 de agosto de 2024

Breve História da Escrita


(c) A Vida Screta das Línguas

Análise do poema "Meu ser evaporei na lida insana", de Bocage

    Este soneto e o texto “Já Bocage não sou” têm um denominador comum: o contrito arrependimento perante a vida passada. A uma existência intensa e desregradamente vivida, sucede uma fase de resignação e esperança cristãs. No balanço da existência, o homem contrito, escravo dos vícios e das paixões que o arrebatam, mostra consciência do pecado e abertura ao transcendente. Esta composição é, precisamente, uma das várias onde o sujeito poético expõe um profundo sentimento de religiosidade e contrição.

 
n Tema: o arrependimento do passado por parte do sujeito poético.
 
 
n Estrutura interna

    Nos primeiros 6 versos, o sujeito poético descreve a ilusão da vida passada, utilizando para tal o pretérito perfeito e imperfeito. Através de repetidas frases exclamativas (vv. 3 e 6), expressa o seu arrependimento, visto que, durante quase uma vida inteira, acreditou na sedutora demanda do prazer, dissipando a existência em sucessivas e ruidosas paixões, que apenas lhe trouxeram uma felicidade ilusória (vv. 5-6), representada na metáfora “inúmeros sóis”. As ilusões foram sóis que ofuscaram a natureza instintiva do homem que se deixou aprisionar pelos prazeres.
    Alterando a cadência anterior, a acentuação sáfica introduzida no final da segunda quadra sublinha o contraste passado/presente. Continuando a evocação do passado, o sujeito poético retira uma conclusão vital sobre a sua existência: a busca do prazer foi uma perdição, que conduziu a sua vida para o abismo e para o amargo sentimento do desengano. A felicidade verdadeira não estava na miragem enganadora em que acreditava.


2.ª parte (vv. 12-14) – Presente (tempo da razão): súplica a Deus – acto de contrição e arrependimento do sujeito poético:
 
    Já no presente (conjuntivo optativo: ganhe, saiba) e até com projecção para o futuro (roube), com a iminência da morte, eufemisticamente referida (v. 12), o sujeito poético formula uma sentida prece. De facto, no segundo terceto, , na reforçada invocação a Deus, expressa um manifesto e lapidar desejo de arrependimento: “Saiba morrer o que viver não soube” (v. 14). De notar ainda o paralelismo antitético dos dois últimos versos, expressos pelas formas verbais (ganhar/perder e morrer/viver), a salientar o contraste entre o passado de dissipação e o presente de arrependimento. Mas esta afirmação contrita do arrependimento perante as faltas passadas é formulada com uma indesmentível teatralidade, a demonstrar a vocação dramatúrgica de Bocage.
    Esta divisão do texto remete para dois estados de espírito do sujeito poético: um, referente ao passado e constituído por sentimentos como o entusiasmo, a paixão, o orgulho; o outro, o presente, caracterizado pela decepção, tristeza, arrependimento e esperança de encontrar a paz na morte.

 
n Recursos poético-estilísticos
 
1. Nível fónico
 
    O poema é constituído por duas quadras e dois tercetos, num total de 14 versos (soneto) decassílabos heróicos e sáficos (vv. 13-14). Os versos sáficos, além de um ritmo ternário, são normalmente mais melancólicos. O ritmo ternário põe em destaque três elementos importantes: momento/perderam/anos, morrer/viver/soube.
    A rima obedece ao esquema ABBBA/ABBA/CDC/DCD, sendo portanto interpolada e emparelhada nas quadras e cruzada nos tercetos. Toda a rima é consoante (“insana”/”humana”), grave ou feminina (“arrastava”/”sonhava”), rica (“insana”/”humana”) e pobre (“arrastava”/”sonhava”).
    O ritmo é predominantemente binário e sugere a correria louca do sujeito poético em busca das paixões. As aliterações dos fonemas /s/ e /p/ sugerem, a primeira, dissipação e, a segunda, o movimento agitado das paixões. A repetição das vogais abertas /á, é/ sugere a sedução que as paixões exerciam sobre ele. Por último, nota para o transporte existente nos versos 1-2, 3-4, 5-6 e 7-8.


2. Nível morfossintático

    As formas verbais, na 1.ª parte, distribuem-se pelo pretérito perfeito, que exprime o que o sujeito poético fez, e pelo pretérito imperfeito, que subentende uma reflexão, marca o contraponto entre o que é o sujeito actualmente e o que já foi. Estas formas verbais ligadas ao passado são acompanhadas pela primeira pessoa porque estão directamente ligadas aos passos que ele deu. A forma evaporei pressupõe a proximidade da morte, pois o que já se evaporou já desapareceu; a forma acreditava sugere afastamento da realidade. Na 2.ª parte, predomina o presente do conjuntivo em tom de imperativo marcando uma ideia de futuridade, sugerindo a formulação de um desejo, como se o sujeito poético quisesse dar uma lição àqueles que levam uma vida como a dele. Estas formas verbais de presente/futuro aparecem na terceira pessoa porque exprimem o arrependimento no momento da reflexão; o sujeito poético evita referir a primeira pessoa por causa do seu desalento; é uma espécie de aniquilamento do EU para que obtenha a salvação.
    Os nomes (tropel, ruído, prazeres, sócios) e os adjectivos (insana, cego, mísero, falaz, escrava, sedenta) apontam para um certo desgaste do sujeito poético, derivado da sua vida de conflitos.
    As interjeições sugerem decepção, enquanto os pronomes pessoais e possessivos exprimem o tom confessional do poema.


3. Nível semântico
 
    As exclamações traduzem a decepção e o desengano do sujeito poético. A apóstrofe do verso 9 identifica a causa dos seus males: os prazeres, enquanto a do verso 12 exprime o desejo/lição que pretende formular: um desejo de arrependimento e de morrer com dignidade.
    Por outro lado, o poema assenta em duas antíteses. A primeira assenta no contraste luz/sombra, sendo que a luz simboliza a vida, neste caso vivida ao sabor das paixões, enquanto a sombra está ligada à morte, pois, no fim da vida, reflectindo sobre a mesma, dá-se conta de que essa luz que o seduziu era falsa. Daí o desejo da morte. A segunda antítese decorre desta primeira: vida/morte, e atinge a máxima intensidade no verso 14: “Saiba morrer o que viver não soube.”, onde claramente afirma o desejo de morrer com dignidade, já que em vida, moralmente, se enganou e desviou do caminho recto.
    A repetição “Ah!, cego eu cria, ah!, mísero eu sonhava” (v. 3) enfatiza o estado de alma do sujeito poético, a falsidade e o engano em que vivia, enquanto a metáfora “inúmeros sóis” (v. 5) representa a felicidade ilusória que as paixões lhe trouxeram, ou seja, as ilusões foram sóis que ofuscaram a natureza instintiva do homem que se deixou aprisionar pelos prazeres. A iminência da morte é eufemisticamente referida no verso 12: “Quando a morte à luz me roube...”.


n Características
 
 
 
n Conclusão
 
    Estamos perante um soneto egocêntrico, centrado em torno do poeta, onde se verifica uma dicotomia entre passado e presente, que permite evidenciar a temática do arrependimento, perante o tropel de paixões e o seu orgulho, que parecem ser os seus maiores pecados e dos quais o poeta pretende redimir-se à beira da morte, ao desejar uma boa morte. Daí falar-se em tom de contrição e arrependimento. As suas faltas foram cometidas insanamente, chegando ao ponto de querer divinizar-se, ao querer ser imortal.

Análise do poema "Ó retrato da Morte! Ó Noite amiga”, de Bocage

n Assunto: evocação da noite e de uma paisagem horrenda, consolo do sujeito poético.
 
 
n Tema: a obsessão da morte.
 
 
n Estrutura interna

1.ª parte (2 quadras) – O sujeito poético dirige-se à noite (personificada – vê, ouve, sente):

            O primeiro verso assume grande importância dentro da mensagem, pois revela a presença de uma entidade abstracta (“Noite”) que adquire uma força concreta e humana, tendo papel de destaque dentro das relações do sujeito (“amiga”) – note-se a personificação – e fazendo a maiúscula inicial adivinhar o seu protagonismo. Conduz a uma identificação da noite com a morte – note-se a metáfora – o que deixa antever uma situação de sofrimento e desespero por parte do sujeito poético, pela invocação de duas entidades ligadas à escuridão, à solidão, à fuga; sugere o estado de pessimismo, dramatismo em que o EU se encontra. No desenrolar do poema, conclui-se ser a noite o momento mais ansiado pelo sujeito lírico, em quem deposita a esperança de encontrar algum consolo, alguma compreensão – daí o lamento através da interjeição Oh, que imprime um tom de tristeza, de lamento, de desabafo ao poema, encontrando-se reiterada no verso 9.
            O sujeito, num apelo que dirige à Noite, sua confidente e amiga, pede-lhe protecção, conforto e amparo para suportar o seu sofrimento (“Dá-lhes [aos desgostos] pio agasalho no teu manto”) na sua companhia, pois a noite, pelo sossego e possibilidade de fuga que permite, é ideal para conviver com alguém que não quer espalhar a sua dor, mas que quer a paz e a tranquilidade necessárias à introspecção, à reflexão, ao desabafo (com ninguém).


















            Esta relação positiva entre o sujeito poético e a Noite deve-se ao estado de espírito daquele: desiludido e desesperado. Neste estado, só a Noite constitui o ambiente que se coaduna com a sua sensibilidade. Porém, a nível humano, o grande responsável pelo estado de espírito do sujeito lírico é a mulher, que não lhe corresponde amorosamente.
 
            A Noite assume papel de grande destaque, o que até a própria maiúscula inicial faz supor. Trata-se da confidente e amiga do sujeito poético [“Noite amiga”, v. 1; “(...) testemunha do meu pranto”, v. 3; “De meus desgostos secretária antiga”, v. 4; “(...) manda Amor, que a ti somente os diga”, v. 5], em cuja companhia ele deseja estar (“Por cuja escuridão suspiro há tanto!”, v. 2). A Noite, por ser a ausência de luz, representa o medo, o abandono, a solidão; por ser o período oposto ao dia, simboliza o descanso, o sossego, é o momento dedicado aos sonhos, pesadelos, à reflexão, à introspecção; sendo ainda sinónimo de trevas, corresponde à ausência de conhecimento, à ignorância; conotando-a com os sentimentos, vêmo-la relacionada com sofrimento, dor, angústia, mágoa, bem diferente do entusiasmo, alegria, conforto, prazer que o dia proporciona.
            Assim, conclui-se que o facto de o sujeito poético ansiar por tal momento se deve à sua vontade de estar só, isolado e afastado daquela que perturba o seu estado de espírito [“(...) a cruel que a delirar me obriga”, v. 8], à necessidade de encontrar a tranquilidade e a acalmia próprias da Noite, propícias à introspecção, à intenção de pretender reflectir e analisar os seus sentimentos [“(...) meu pranto”, v. 3; “(...) meus desgostos”, v. 4] e de desejar conviver com elementos nocturnos (“Fantasmas vagos, mochos piadores”, v. 10) que, pelo seu aspecto assustador e sombrio, não convivem com elementos diurnos, o que os torna bons receptores para quem não deseja ver os seus sentimentos divulgados (v. 3).

 
n Estado de espírito do sujeito poético
 
            O sujeito poético mostra-se abalado, angustiado, desesperado, procurando a companhia de realidades (“Noite”, fantasmas”, “mochos”) que, tal como ele, vivem ou correspondem à penumbra, às trevas; que, tal como ele, se refugiam no seu próprio ser, sem procurarem/desejarem convívio, relação com outros seres. O sujeito poético procura encontrar maior conforto nestes do que na realidade do dia, da luz, da vida, que para si é como um pesadelo (“Inimigos como eu da claridade!”, v. 11) devido a ressentimentos com base no amor que sente/sentiu por uma mulher que o faz sofrer, sem que sequer sinta culpa [“(...) enquanto / Dorme a cruel que a delirar me obriga”, v. 8]. A sua angústia ocorre em simultâneo com a tranquilidade, despreocupação da amada (“delirar” vs. “dorme”). Note-se a ambiguidade existente no verbo dormir que é sinónimo de sossego para um e desassossego para outro, surgindo reforçado pela expressão “me obriga” – não é voluntário, não é pacífico, não é indolor. Note-se, ainda, que a forma verbal dorme pode referir-se também à própria morte ou ausência da amada.
            Por outro lado, dos últimos dois versos do poema ressalta um certo narcisismo e masoquismo do sujeito poético, que manifesta o desejo de se encontrar no meio de fantasmas e mochos apesar de ter consciência do carácter horrível e mórbido que lhes é inerente: “Quero a vossa medonha sociedade” (v. 13). Na base deste masoquismo está o desejo de se flagelar, talvez numa tentativa de exteriorizar a sua revolta, a sua angústia ou até de acabar com o seu sofrimento (“Quero fartar meu coração de horrores”, v. 14). O sujeito poético deseja castigar o seu coração, provavelmente por se ter deixado envolver numa relação que o desiludiu e arruinou psicologicamente ou que abruptamente foi quebrada.
            De referir, por último, que este estado de espírito do sujeito lírico tem raízes no passado. Ele anseia há muito por se encontrar na companhia das trevas, tal como explicita no verso 2: “Por cuja escuridão suspiro há tanto!”, pois vive um estado de dor, de sofrimento há já algum tempo, como se deduz pelos versos 4 e 7: “De meus desgostos secretária antiga!”, “Ouve-os, como costumas, ouve...”.

 
n Visão da Natureza – “locus horrendus® presença da noite como retrato da morte e associada a um cenário de horror: escuridão, fantasmas, mochos piadores, cortesãos da escuridade, horrores.
 
 
n Características




n Recursos poético-estilísticos
 
1. Nível fónico

            Trata-se de um poema composto por duas quadras e dois tercetos, que se denomina soneto. Os versos são isométricos, sendo todos decassílabos heróicos, excepto os versos 4, 8 e 14, que são sáficos. O esquema rimático é o seguinte: ABBA/ABBA/CDC/DCD, havendo rima interpolada e emparelhada nas quadras e cruzada nos tercetos; consoante (“amiga”/”antiga”), grave (“tanto”/”pranto”), pobre (“amiga”/”antiga”) e rica (“tanto”/”pranto”). Por outro lado, as palavras que rimam partilham o seu sentido ou por semelhança ou por oposição. A rima não é apenas uma questão de ouvido, gera sentidos. Assim, a rima entre “amiga” e “antiga” serve para salientar a relação existente entre o sujeito poético e a Noite: uma relação prolongada no tempo. A rima entre “tanto” e “pranto” serve igualmente para realçar o prolongado sofrimento do sujeito.
            Várias são as aliterações: do fonema /m/ (em todo o poema) a sugerir tristeza e angústia, do fonema /t/, do fonema /s/ (“... de meus desgostos secretária...”). Outro elemento importante é a alternância entre vogais abertas e vogais fechadas (ó, á, e, ô, an, ão) que pode sugerir, por um lado, a vontade de conviver com a Noite e, por outro, o desespero.
            O ritmo do soneto é dominantemente binário, quer porque alguns versos estão partidos em dois hemistíquios, quer porque há dois acentos dominantes na maior parte dos versos (decassílabos heróicos). O predomínio do ritmo binário está de acordo com a presença de duas “personagens”: o sujeito poético e a Noite. É mais lento nas quadras e mais rápido nos tercetos, de acordo com a intensidade dos apelos, menos forte nas primeiras e mais fortes nos segundos.
            Por último, realce para o transporte existente nos versos 7 e 8.


2. Nível morfossintáctico

            Existe no poema grande quantidade de vocabulário de teor negativo: morte, Noite, escuridão, pranto, desgostos, cruel, delirar, escuridade, fantasmas, mochos, piadores, inimigos, clamores, medonha, horrores. Estes vocábulos, de que fazem parte muitos nomes abstractos, referem-se e reflectem o estado de espírito do sujeito poético, na medida em que, estando este numa situação de sofrimento e solidão, recorre a conceitos de cariz negativo que se aproximam da forma como se sente.
            Dentre os adjectivos, destacam-se amiga (caracterizando a Noite como a única que pode compreender e consolar os desgostos do sujeito) e cruel, que se refere à mulher amada, apontando-a como a causadora do estado sentimental do sujeito poético, porque não lhe corresponde amorosamente, e servindo de contraste entre a sua tranquilidade a dormir e o seu desespero.
            Das funções da linguagem, predominam a poética (selecção de vocabulário; conotação de certos vocábulos – secretária, agasalho, manto, cortesãos da escuridade; originalidade de algumas palavras – escuridade; recursos estilísticos; rima; métrica; sonoridade de alguns sons), a expressiva (o estado emocional do sujeito poético expresso através duma linguagem subjectiva e dum discurso de 1.ª pessoa do singular e de frases de tipo exclamativo) e a apelativa (o sujeito lírico apela à Noite para que o ampare e aos elementos da Noite, pedindo-lhes que o deixem fazer parte do seu grupo para com ele exteriorizar a sua mágoa – estes apelos são feitos através dum discurso apelativo, cujas formas verbais estão no modo imperativo; o discurso é de 2.ª pessoa, visto que é direccionado para o destinatário das palavras proferidas).
            A nível verbal, predominam o presente do indicativo e o imperativo. O presente traduz o estado de espírito (que se arrasta desde “há tanto” e se mantém) e vontade presentes, assim como as determinações de outrem sobre o sujeito poético (manda, costumas, dorme, obriga). O imperativo representa o apelo/pedido desesperado do sujeito no sentido de obter protecção, companhia junto das realidades nocturnas. O imperativo existe em função do presente do indicativo, sendo a consequência e a causa, respectivamente; o primeiro pretende atenuar a dor do segundo, ou seja, o facto de o sujeito se encontrar deprimido e desesperado faz com que se refugie na noite, para minimizar ou, pelo menos, não fazer avolumar a sua angústia.
            Os pronomes pessoais de primeira pessoa traduzem o egotismo romântico e os de segunda referem o destinatário do pretenso diálogo encetado pelo sujeito poético.
            A interjeição oh, repetida três vezes, expressa a dor e o desespero do sujeito que o levam a apelar à Morte e à Noite.
            Sendo um soneto formalmente clássico, não é de estranhar a presença do hipérbato: “De meus desgostos secretária antiga!”.
            Nos versos 13 e 14 temos a repetição anafórica da forma verbal Quero, que determina a real intenção do sujeito poético que, num discurso eu/vós, apela para que o deixem tornar-se um elemento da noite, reforçando-se, assim, o seu carácter de fraqueza e falta de persistência ao deixar-se vencer pelos desgostos sofridos. Deste modo, o lado sentimental e emocional do sujeito – desilusão, mágoa, desgosto, dor, sofrimento, angústia, derrota – influencia o seu lado racional, conferindo-lhe o pessimismo e dramatismo evidenciados, ou seja, o coração sobrepõe-se à razão.


3. Nível semântico

            As exclamações traduzem o estado de alma do sujeito poético, carregado de dor, ansiedade, desespero, consideração/estima e respeito (v. 4) pela Noite, bem como o apelo que dirige aos seus elementos (vv. 9-11). As exclamações são reforçadas pelo uso das interjeições, que conferem um misto de apelo e lamento às palavras do sujeito poético; das personificações e das apóstrofes da Morte e a Noite, as destinatárias do discurso do sujeito, a quem este se dirige e por cuja companhia e compreensão “suspira há tanto”, afinal a solução para os seus males de amor. Ambas as figuras de estilo são retomadas no verso 9 com idêntico significado. Ao bom estilo clássico, encontramos no verso 5 a personificação do Amor e, nos tercetos, a dos fantasmas e dos mochos, que se tornam também destinatários do sujeito poético.
            Logo no primeiro verso do poema encontramos a metáfora da Noite como retrato da Morte. Outras metáforas encontram-se nos versos 3 (“Calada testemunha de meu pranto...”), 4 (“De meus desgostos secretária antiga!”), 6 (“... pio agasalho no teu manto...”).
            A comparação do verso 11 (“... como eu...”) aponta os mochos como inimigos da luz, assim como o sujeito poético no estado em que se encontra.
            Na última estrofe, sobretudo no último verso (“Quero fartar meu coração de horrores”), encontramos a hipérbole, a traduzir o desejo masoquista do sujeito a fim de aplacar o seu desespero, desejando uma Natureza que reflicta e sirva de enquadramento ao seu estado de alma. A estes recursos se acrescenta a enumeração dos versos 9 e 10 (“... cortesãos da escuridade / Fantasmas vagos, mochos piadores...”). Por último, realce para a gradação na expressão do estado de espírito do sujeito poético.


n O Amor em Bocage

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