Português: Caracterização de Gertrudes

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Caracterização de Gertrudes

    Gertrudes é a rainha da Dinamarca, esposa de Cláudio, que desposou recentemente, e viúva do seu irmão, o rei Hamlet, com quem teve um filho, o protagonista da peça, homónimo do pai.
    Gertrudes é uma personagem complexa e intrigante, pois são mais as perguntas que o texto levanta sobre ela do que as respostas. A rainha amava o primeiro marido? Ama o segundo? Por que razão desposou Cláudio: por amor ou apenas para conservar o seu status e a sua posição social e política? Estava envolvida amorosamente com Cláudio ainda em vida do primeiro marido? Sabia, ou pelo menos, suspeitava das ações de Cláudio? Acredita em Hamlet quando este afirma que está louco ou finge acreditar simplesmente para se proteger? Trai a confiança do filho intencionalmente para agradar ao marido ou crê estar a proteger o segredo do jovem?
    Fisicamente, não há grandes dados sobre Gertrudes. Dada a idade de Hamlet, tratar-se-á de uma mulher de meia-idade, provavelmente na faixa dos 40, 50 anos, certamente com uma aparência majestosa, nobre, elegante, graciosa e nobre. Ou seja, a sua fisionomia refletirá a sua condição de rainha e a sua posição de poder, envergando trajes luxuosos e joias de acordo com o seu estatuto social.
    Psicologicamente, a rainha é uma mulher vulnerável, superficial, frágil e dependente que procura afeto, estabilidade e proteção num ambiente corrupto e instável. Além disso, evidencia uma certa tendência para usar os homens para satisfazer o seu instinto de autopreservação, o que, naturalmente, a coloca na dependência das figuras femininas da sua vida. De facto, enquanto rainha da Dinamarca, a sua segurança a todos os níveis e a sua posição social dependem da ligação a um homem poderoso, uma realidade que poderá explicar o seu casamento célere com Cláudio, após a morte do primeiro marido. Outra hipótese poderá ter a ver com o seu receio de ficar sozinha. Em simultâneo, é alguém que parece procurar evitar os conflitos e manter uma imagem (aparente) de normalidade na corte. Além disso, mostra-se sempre incapaz de compreender plenamente os sentimentos de Hamlet, o que traduz uma certa falta de empatia relativamente aos que a rodeiam, ou então uma negação consciente para manter a sua paz interior.
    Algumas ações e a sua morte no final da peça aproximam-na do estatuto de vilã. Por exemplo, o facto de se casar com Cláudio, o irmão do falecido marido, pouco depois da morte deste, põe em causa a sua lealdade e a sua moralidade. Esta perspetiva parece ganhar sustentação através da acusação do filho, segundo o qual padece de luxúria e fraqueza moral, sugerindo que cedeu às pressões e à tentação de Cláudio. Assim sendo, porque age ela dessa forma? Quase certamente, porque deseja manter a sua posição social e política e assegurar uma vida protegida e confortável, mesmo que para tal tenha de descurar questões como a justiça e a verdade.
    Por outro lado, enquanto rainha, Gertrudes encontra-se no olho do furacão, no centro do poder político e das maquinações e jogadas políticas que o seu exercício implica. Essa sua posição obriga-o a sustentar uma fachada de felicidade e dignidade, sobretudo nos tempos de mudança e incerteza que se vivem na Dinamarca. Em contrapartida, a sua postura coloca-a numa circunstância que a expõe e torna vulnerável às críticas e à desconfiança, especialmente no que respeita à sua lealdade ao rei Hamlet.
    A sua relação com Cláudio constitui, de facto, uma das facetas controversas da peça, desde logo porque ele é o irmão do falecido monarca e tio do príncipe Hamlet. Depois, o antigo soberano morreu em circunstâncias suspeitas e, por último, o matrimónio é célere. O filho considera essa decisão cruel e calculista, porém há que considerar que uma mulher na sua posição, naquela sociedade, não dispõe de grandes alternativas. Quando Hamlet a confronta sobre o passo que deu, Gertrudes admite que refletir sobre a sua decisão de casar com Cláudio, ex-cunhado, é algo demasiado doloroso para pensar. Deste modo, não se sabendo se ela tem consciência do papel do atual marido na morte do anterior, parece preferir não pensar e não aprofundar o assunto. Receito das consequências que daí poderão advir? Medo da descoberta de uma verdade dolorosa? No fundo, de acordo com uma certa perspetiva, o segundo enlace de Gertrudes terá sido uma opção pragmática. Seja como for, a ambiguidade rodeia este relacionamento, pois efetiva-se por amor, por conveniência ou por uma conjugação de ambos.
    Em suma, Gertrudes é uma personagem controversa e ambígua e alguém que não quer ou não é capaz de refletir criticamente sobre si e sobre o contexto em que se insere, parecendo antes atuar de forma instintiva, como é o caso do momento em que corre para Cláudio após o seu diálogo tumultuoso com Hamlet.

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