Português

sexta-feira, 2 de maio de 2025

"Amor, co'a esperança já perdida", análise do poema de Camões

Este soneto, com rima interpolada e emparelhada nas quadras e interpolada nos tercetos, segundo o esquema rimático ABBA / ABBA / CDE / CDE, e versos decassilábicos sáficos (vv. 8 e 10) e heroicos (os restantes), aborda o tópico navigium amoris, herdado dos poetas gregos e latinos, ou seja, o amor – personificado enquanto divindade – é como um mar tempestuoso, o mar das paixões amorosas, em que se debate o barco que simboliza o amante.

    O «eu» poético dirige uma apóstrofe ao Amor personificado, comunicando-lhe ter visitado o seu templo depois de ter perdido a esperança por ter ficado sem o seu amor. Segundo Faria e Sousa, Camões cantou as esperanças de duas formas: “la primera por las finezas de sus amores que dulcemente cantava; la segunda la de sus cantos celebrando la Patria y los Heroes della”. Neste soneto, o poeta recorre à renuntiatio amoris como motivo principal, construída sobre a metáfora do naufrágio amoroso. A primeira quadra versa precisamente sobre a representação do motivo do ex-voto,isto é, o sofrimento amoroso é comparado a uma tempestade da qual o marinheiro foi salvo e, por isso, leva as suas oferendas ao templo como agradecimento à divindade que o salvou. A fonte de inspiração de Camões foi a ode 5 do livro I de Horácio. Por outro lado, além deste soneto, ele aborda o mesmo tópico noutros poemas, como, por exemplo, “Como quando do mar tempestuoso”. Camões, neste soneto, apresenta a oferta do ex-voto não no formato de roupas, mas sim a própria vida. Por outro lado, se Horácio e Garcilaso, nos seus poemas, agradecem por ainda estarem vivos e livres desse amor, o poeta português doa a sua “alma, vida e esperança”, lamentando o facto de ainda estar vivo, e queixando-se da privação desse amor.

    Apesar do texto fixado por Costa Pimpão apresentar o termo «soberano» no segundo verso, as fontes manuscritas trazem «sagrado», divergência que é entendida por alguns estudiosos como uma correção imposta pela censura, desde logo porque não é o único caso em que aquela modificou o texto de um poema camoniano. De facto, a censura foi uma prática tradicional da Igreja, que, na luta contra a heresia, proibia a publicação de termos pouco ortodoxos, como, por exemplo, tratar como «sagrado» o templo do Amor. Sendo exclusivamente reservado ao uso religioso, esta palavra pertence à lista de vocábulos que foram objeto de censura.

    O «eu» poético – aquele que ama – deposita a alma, a vida e a esperança mo templo do Amor, em vez das oferendas comumente dadas aos deuses pelos náufragos como forma de agradecimento. Regra geral, os náufragos seguiam até ao templo dos deuses para agradecer o facto de ainda estarem vivos, porém Camões atua de forma inversa, isto é, coloca o sujeito poético a deslocar-se ao templo para protestar o facto de ainda estar vivo e questiona o desejo de vingança do próprio Amor, que é percebido como entidade hostil, chegando mesmo a afirmar que a maior vingança seria deixá-lo vivo a chorar do que tirar-lhe a vida: “nelas podes tomar de mim vingança; / e se inda não estás de mim vingado, / contenta-te com as lágrimas que choro.” (vv. 12-14).

    O sujeito lírico põe a sua vida em vez das oferendas habitualmente feitas, porque já se considerava morto para as pretensões do mundo, em particular as amorosas, ou porque desejava morrer. O nome «vestidos» (v. 4) alude ao facto de o náufrago, depois de escapar ao perigo, pendurar as vestes e outros despojos do naufrágio, como ex-voto, na parede do tempo do deus invocado durante a tempestade em alto mar. Os «vestidos» eram os principais testemunhos de um naufrágio, que eram colocados no templo. Esta passagem do soneto forma uma imagética associada ao tópico do naufrágio amoroso.

    A imagem do templo do Amor, presente na primeira quadra, pode assumir três formas diferentes. A mais simples é o templo como igreja, que encontramos, por exemplo, em Malatesta Malatesi. Noutra, templo é usado como metáfora do corpo, nomeadamente da pessoa amada, como sucede com Pietro Bembo ou Bernardo Capello, que assinala as semelhanças entre o templo do Amor e o rosto da mulher amada: as portas são os lábios; o teto é o cabelo louro, que cobre paredes de mármore brancas e vermelhas, isto é, a face; o grande tesouro são as próprias tranças de ouro. Por vezes, o templo refere-se ao coração do amante, dado que guarda o culto e a memória da imagem amada.

    Nos dois versos iniciais da segunda quadra, o «eu» poético questiona Amor, perguntando-lhe que mais poderá querer dele, depois de ter destruído toda a glória que alcançara, isto é, o privilégio de ter vivido um amor sublime. O facto de poder desfrutar, ou não, deste amor está no poder da divindade. No momento em que decide retirá-lo, é considerado pelo que ama como um tirano. Os dois versos seguintes, por meio da metáfora e do oximoro, apresentam a recusa do sujeito lírico em “tornar a entrar onde não há saída”, ou seja, num caminho sem saída.

    O verso 9 apresenta uma enumeração de três nomes: «alma», «vida» e «esperança», dois dos quais se encontram no primeiro («esperança») e no quarto («vida») da primeira quadra. Esses três nomes designam os «despojos», os restos ou fragmentos do passado. Na prática, os versos 9 e 10 patenteiam o jogo dialético, bem característico de Camões, entre o bem passado (“de meu bem passado”) e o mal presente. Esse bem durou “enquanto quis aquela que eu adoro.” (v. 11), ou seja, enquanto lhe correspondeu amorosamente?

    O segundo terceto constitui o clímax do soneto. O sujeito poético, depois de ter oferecido a sua alma, vida e esperança, acaba oferecendo as suas próprias lágrimas – o seu sofrimento, a sua mágoa, a sua dor –, que são para ele mais dolorosas do que a própria morte. Atente-se no recurso ao poliptoto (figura de estilo que faz a alteração flexional de uma parte do corpo da palavra) de “mim vingança” / “de mim vingado”. Note-se que o Amor é representado, nesta composição poética, como uma entidade mítica caracterizada como omnipresente e possuidora de uma natureza vingativa (“destruída / me tens a glória toda que alcancei.” – vv. 5-6; “podes tomar de mim vingança” – v. 12; “não estás de mim vingado” – v. 13). Por outro lado, o texto desenvolve-se num crescendo: nas duas quadras, os verbos encontram-se maioritariamente no passado (pretérito perfeito: «visitei», «passei», «pus»), enquanto os tercetos começam e terminam com os verbos no presente («Vês» e «choro»), o que significa que o futuro está excluído, pois o sujeito poético não consegue libertar-se dessa prisão do Amor, prefere a morte e, portanto, não é capaz de se projetar num futuro.

    Ainda relativamente ao segundo terceto, nomeadamente o verso 12, focado no tema da vingança não é caso único na obra camoniana, onde aquele que ama, tendo perdido a esperança, afirma preferir morrer a viver no seu tormento de amor. É o que sucede, por exemplo, no soneto “Se algu’hora em vós a piedade”, no qual Camões declara o seguinte: “tomarão tristes lágrimas vingança / nos olhos de quem fostes mantimento. // E assim darei vida a meu tormento; / que, enfim, cá me achará minha lembrança / sepultado no vosso esquecimento.” Note-se que Camões, além de usar nomes como «vingança», culmina o soneto com o termo «sepultado», indiciando novamente que a morte é a única fonte de liberdade.

 
Bibliografia:
. VITALI, Marimilda, “As cadeias da esperança”

terça-feira, 29 de abril de 2025

"O vencedor vencido": análise do poema, de Isabel Gouveia

 
Não é fácil amar o que venceu,
o que leva alguns passos de avançada,
que o amor só se oferece ao que perdeu,
muito embora com culpa declarada.
Todavia, o que vence multiplica
sobre si as angústias de perder:
interroga, analisa e só complica
aquilo que não pode perceber;
e quando, em esgotamento prematuro,
ele aceita uma calma provisória,
vêm os homens que o lançam contra o muro
e lhe atiram ao rosto essa vitória.
 
    O sujeito poético inicia o poema com uma constatação amarga: o vencedor não é facilmente amado (“Não é fácil amar o que venceu”). De certa forma, esta ideia de que o amor não se dirige ao vencedor contraria o senso comum. Pelo contrário, o amor é destinado ao derrotado (“ao que perdeu”), à figura fragilizada, mesmo que seja culpado de algo (da própria derrota?). Ou seja, ao invés do que é comum, afirma-se a preferência por amar o que falha e é derrotado, em vez daquele que triunfa. Deste modo, o vencedor, em lugar de ser celebrado, é marginalizado no que toca ao amor, pelo que a vitória, o triunfo, em vez de atrair o sentimento amoroso, repele-o.

    O quinto verso introduz uma ideia contrária, traduzida pelo recurso à conjunção coordenativa adversativa «todavia»: aquele que vence, mesmo tendo triunfado, não encontra paz, pelo contrário, “multiplica / sobre si as angústias de perder. Ele carrega uma angústia: sente o peso da derrota, não por ter perdido, mas por recear perder o que ganhou. A sequência de formas verbais presentes no verso 7 – “interroga, analisa e só complica” – denuncia o seu estado de inquietação natural. Assim sendo, pode concluir-se que a vitória não traz segurança e tranquilidade, mas fragilidade, dúvida, e ele carrega um conflito interno, dado que procura encontrar um sentido, mas não o consegue: “aquilo que não perceber”.
    Toda esta situação conduz o vencedor a um “esgotamento prematuro”, proveniente da dúvida, da incerteza e da solidão que acompanha o triunfo, cuja consequência é a aceitação não de uma paz real, mas meramente provisória. No entanto, esse momento não dura, não é respeitado, em virtude “os homens” agirem violentamente contra ele, lançando-o contra o muro “e lhe atiram ao rosto essa vitória”, isto é, aquilo que foi uma conquista sua é usada como arma contra ele. A vitória é-lhe atirada ao rosto como uma acusação, não como glória. Aquilo que permitiria que se destacasse acaba por se tornar motivo de punição. Os homens, que representarão a sociedade, não toleram ou não perdoam o êxito.

    O poema desconstrói a ideia da vitória como glória e clarifica os seus efeitos colaterais ou consequências: solidão, incerteza, dúvida, desgaste, angústia e até rejeição social. Deste modo, o vencedor constitui uma figura que, ao invés de herói, se revela mártir da própria vitória. O título do texto ilustra esta noção: a vitória externa esconde uma derrota interior (e social).
    
    O triunfador alcançou o triunfo, porém, em simultâneo, passou a carregar o fardo das expectativas: dos outros, de si mesmo, dos “homens”. A vitória, assim, não é um momento de glória e de libertação, mas de angústia e aprisionamento. Ao longo do poema, ele revela angústia existencial (“multiplica sobre si as angústias de perder”), autoquestionamento constante (“interroga, analisa e só complica”) e culpa por ter superado os outros. Tudo isto leva-o a viver num estado de vigilância e de desgaste mental e, quando procura a paz, mesmo que provisória, é castigado.

    Do ponto de vista simbólico, o vencedor é visto como alguém que faz uma afronta ao coletivo – os “homens” –, uma figura mítica que quebra a harmonia do grupo por se destacar, o que o transforma num alvo. Deste modo, podemos concluir que a sociedade não tolera o que escapa à norma, a uma certa mediania, nem mesmo o sucesso individual.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

"Paz": análise do poema de Tomaz Kim

 
PAZ
 

Aqui foi a casa:

Alva a toalha e o pão,

O berço além.

 

Breve a canção:

Bater de asa

O sorriso de mãe.

 

Veloz a hora:

Agora,

Só o coaxar noturno e certo

Das rãs,

Enche o campo deserto.

 
    Tomaz Kim foi um poeta, tradutor e ensaísta literário angolano, de nome completo Joaquim Fernandes Tomaz Monteiro-Grillo. Nasceu no Lobito, Angola, em 2 de fevereiro de 1915, e faleceu em Lisboa, a 24 de janeiro de 1967.

    Neste poema, constituído por dois tercetos e uma quintilha, de versos livres, curtos e sem pontuação, aborda a temática da passagem do tempo e da efemeridade da vida. O verso inicial remete para o passado, como se pode comprovar pela presença da forma verbal «foi», no pretérito perfeito do indicativo, situado num espaço, indiciado pelo advérbio de lugar «aqui» e pelo grupo nominal «a casa». Ou seja, o «eu» poético exprime a lembrança de um lar que existiu, mas já não existe, ou, pelo menos, já não existe como antes. Agora, resta apenas uma lembrança. A toalha, o pão e o berço remetem para o universo doméstico: é uma imagem de simplicidade, segurança e acolhimento – trata-se de elementos do quotidiano que representam a vida familiar, acentuado pela referência ao “berço além”, sinónimo da existência de crianças, de filhos, naquela casa, o que constitui uma referência à infância, um tempo de inocência e ternura.

    A segunda estrofe é constituída por imagens que sugerem o domínio do passageiro, como o exemplifica a alusão à canção breve, símbolo da transitoriedade. Essa ideia é reforçada pela imagem do “Bater de asa”, que indicia o efémero, o fugaz, como o tempo e a infância que passam. Também o sorriso da mãe constitui uma imagem forte que transmite s noções de calor humano, carinho, afeto, proteção, bem como um sentimento quase sagrado, ligado ao cuidado e à memória afetiva. Esse sorriso e tudo o que ele simbolizava foi um bater de asa, não foi duradouro; pelo contrário, foi passageiro – pelo menos, é essa a sensação do sujeito lírico – e já não existe mais, pois pertence a um passado que já passou e não voltará. Tudo passou muito rápido, como o bater de asas de uma ave.

    A terceira e última estrofe abre com um verso que retoma o tema central do texto: a passagem do tempo e a brevidade da vida – “Veloz a hora”. O passado a que se referiu anteriormente passou depressa. De seguida, através do advérbio de tempo «agora», salta para o presente, que é um tempo que contrasta com o passado. De facto, atualmente, não há mais risos, alegria, carinho, proteção, nem vida doméstica e familiar, que foram substituídos pelo “coaxar noturno e certo das rãs”. A noite é uma parte do dia propícia à solidão e à reflexão. Essa solidão, agora, é preenchida apenas pelo som do coaxar das rãs. O ambiente, que outrora era pautado pela presença humana, hoje é ocupado unicamente pelo elemento animal. Por outro lado, a alusão ao coaxar dos batráquios remete para um som constante, repetitivo, monótono, que preenche o silêncio, mas não traz alegria ou felicidade ao sujeito poético. Em suma, do passado restam apenas as lembranças, pois agora tudo é solidão, tristeza, monotonia e melancolia.

    O poema fecha com a imagem do “campo deserto”, o que remete para uma imagem de solidão. Agora, o tempo passou e só resta o som das rãs, num lugar vazio, apenas preenchido pelas lembranças. Deste modo, o “campo deserto” constituirá uma metáfora da ausência, do presente esvaziado da presença humana e do afeto, carinho e amor que antes caracterizava aquele espaço, o que contrasta intensamente com a imagem da casa evocada nos versos anteriores. Note-se que um campo pode ser associado a um lugar fértil, aberto à vida, à natureza, porém, quando é adjetivado como «deserto», passa a significar abandono, silêncio e solidão. O campo, que antes era habitado, sinónimo de família, amor e intimidade, preenchido por sons humanos, agora é dominado pelo silêncio humano. O tempo passou, a vida desapareceu daquela casa, e, presentemente, sobra unicamente o eco da memória. O adjetivo «noturno», além do já referido, remete para a noite, para o fim do dia, o que, simbolicamente, simboliza o fim de um ciclo, a morte e o esquecimento. O adjetivo «certo» significa que o som das rãs é constante, inaceitável, repetido – ele substitui os sons humanos do passado, como a voz da música, o som da canção, o riso.

    Nesse contexto, as imagens da “toalha alva”, do “pão”, do “berço” e do “sorriso de mãe” contrastam com o “coaxar noturno e certo / Das rãs” e o “campo deserto”, desde logo porque as imagens dos dois tercetos carregam valores simbólicos de acolhimento, alegria, calor humano, afeto, memória afetiva e pureza. A “toalha alva” simboliza as ideias de limpeza, ordem, cuidado, enquanto o “pão” remete para a nutrição, a vida e a comunhão familiares. O “berço” associa-se claramente ao tempo da infância, da origem da vida e do amor protetor. Por seu turno, o “sorriso de mãe” representa ternura, proteção, ideias sugeridas pela figura materna. Tudo isto trabalha para construir uma imagem de aconchego, proteção e vida familiar e íntima, onde há afeto e relações humanas. Pelo contrário, o “coaxar noturno e certo das rãs” e o “campo deserto” associam-se a outro universo simbólico. De facto, esses elementos representam a natureza impessoal, que continua o seu percurso após a partida dos seres humanos, levados pela morte. O som das rãs é repetitivo, monótono, quase mecânico, opondo-se ao da canção, alegre, e à espontaneidade do sorriso materno. Por sua vez, o campo deserto é um espaço aberto, sem limites e sem proteção, silencioso e solitário, contrastando com o lar fechado, íntimo, familiar e seguro que constituía a casa da infância. Este contraste traduz a passagem do tempo – desde logo sugerida pela estrutura fragmentada do poema (os versos curtos e a ausência de pontuação) – que tem como consequência a perda de uma presença afetiva e a transformação do espaço vivido em espaço de memória.

    O título do poema, tendo em conta que o texto evoca tanto a memória de um passado alegre e afetuoso quanto o vazio e a desolação do presente, pode parecer curioso. Por um lado, pode representar a paz que surge como a solidão e o silêncio após as mudanças ocorridas por efeito da passagem do tempo, ou seja, o presente é desolador, mas, ao mesmo tempo, é silencioso, calmo. Tratar-se-á da paz de um espaço desabitado, hoje de contemplação após a passagem do tempo, ou a paz num sentido fúnebre ou espiritual, quer dizer, a que surge com a morte, com o fim de um tempo, de um ciclo. Por outro lado, o título pode ser entendido com a memória de um passado bom. Neste sentido, a casa do passado simboliza uma forma de paz vivida: havia comida, amor, segurança e proteção. Esta paz vem associada à simplicidade da vida familiar e quotidiana, ao pequeno e singelo gesto que perdura na memória. Em suma, o título constitui uma espécie de síntese do poema: um trajeto do afeto ao silêncio, da vida à lembrança, da presença à ausência.

Análise do poema "De Amor", de Francisco José Viegas

 
DE AMOR

 

despede-te de mim, bate devagar à porta:

tenho vontade de recomeçar, reerguer escombros,

ruínas, tarefas de pão e linho, não dar

nome às coisas senão o de um vago esquecimento

 

abandono. despede-te de mim como se a vida

recomeçasse agora, não me procures onde

a memória arde e o destino se ausenta.

 

tudo são banalidades, afinal, quando assim

se recomeça e a vida falha como um material

solar e ilhéu. levamos poucas coisas, basta

um pouco de ar, os objetos fixos, em repouso,

 

os muros brancos de uma casa, o espaço

de uma mão. arrumo as malas e os sinais,

aquilo que nos adormece em plena tempestade.

 
    O poema abre com um tom de despedida íntima (atente-se no uso da segunda pessoa do singular quer de formas verbais, quer do pronome pessoal). Por outro lado, o recurso ao advérbio de modo «devagar», a caracterizar a forma como o «tu» bate à porta sugere delicadeza, quase como se a separação fosse feita com cautela e cuidado. A suavidade contrasta com a dor implícita no adeus.

    Os versos seguintes sugerem a ideia de recomeço e de reconstrução de algo que foi destruído, num desejo de recomeço a partir de escombros e ruínas. O nome «escombros» remete para um passado destruído – talvez uma relação amorosa, como indicia o título – que agora necessita de uma reconstrução.
    As “tarefas de pão e linho” parecem apontar para o quotidiano, gestos da vida doméstica, simples. Estamos perante atos que remetem para a nutrição e o vestuário, os quais fazem parte da vida, sendo que, no primeiro caso, sustenta até a existência.
    A primeira estrofe termina com a intenção de não nomear as coisas, antes as esquecer. Parece haver um desejo de apagar, de esquecer, de deixar para trás o peso / as coisas do passado, porém não se trata de um esquecimento violento, traumatizante, mas suave, como o dá a entender o adjetivo «vago», a qualificar o esquecimento.

    A segunda estrofe retoma a ideia do abandono e da partida, introduzindo a noção da despedida entre o sujeito poético e o «tu», através de uma comparação que a associa a um recomeço: “despede-te de mim como se a vida / recomeçasse agora”. Segue-se novamente a recusa do passado, traduzida pelo pedido do «eu» ao interlocutor no sentido de não o procurar onde a memória ainda vive, onde arde (metáfora hiperbólica). A memória arde, queima, causa, portanto, dor. Por sua vez, o destino ausenta-se, ou seja, não se faz sentir, perdeu a direção.

    A terceira estrofe – novamente uma quadra, à semelhança da primeira – retoma a dor, o sofrimento e os acontecimentos das anteriores: “tudo são banalidades”. Diante do recomeço, tudo se torna banal. Por outro lado, a vida é falha, frágil, visto que “falha como um material / solar e ilhéu”. A comparação quase torna a vida algo físico, tangível, e os adjetivos «solar» e «ilhéu» traduzem as ideias de luz e isolamento, solidão, sugerindo que a vida, embora sendo bela, comporta esses sentimentos. Afinal, quando uma relação termina, se desfaz, e os intervenientes se afastam, entram num mundo de solidão, de isolamento, mesmo que temporário. Perante este cenário, o importante é levar poucas coisas desse passado, dessa relação que terminou: “levamos poucas coisas”. São suficientes “um pouco de ar, os objetos fixos, em repouso”, metáforas que indiciam que, no processo de recomeço, o essencial é o respirar, encontrar a estabilidade e o equilíbrio.

    A última estrofe – um terceto, tal como a segunda – abre com uma série de metáforas que prosseguem a enumeração daquilo que o sujeito poético leva do passado: a do muro branco evoca paz, pureza, ao passo que os muros e a casa traduzem uma imagem de produção e refúgio; a da mão pode simbolizar o afeto; o ato de arrumar as malas associa-se à partida, mas também à preparação para algo novo, enquanto os sinais remetem para memórias, vestígios de algo que existiu, todavia entretanto terminou, no fundo, “aquilo que nos adormece em plena tempestade”, isto é, que nos acalma durante momentos conturbados. Pode tratar-se do amor na sua forma mais serena ou da aceitação da perda.

    Em síntese, estamos na presença de um poema que reflete sobre o fim de uma relação amorosa e a resiliência necessária para enfrentar, bem como o processo de recomeço.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Análise da obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo

 I. Biografia de Aluísio de Azevedo


II. Obras de Aluísio de Azevedo


III. Período literário


IV. Ação

        . Resumo

        . Capítulos

            . Capítulo I

            . Capítulo II

            . Capítulo III

            . Capítulo IV

            . Capítulo V

            . Capítulo VI

            . Capítulo VII

            . Capítulo VIII

            . Capítulo IX

            . Capítulo X

            . Capítulo XI

            . Capítulo XII

            . Capítulo XIII

            . Capítulo XIV

            . Capítulo XV

            . Capítulo XVI

            . Capítulo XVII

            . Capítulo XVIII

            . Capítulo XIX

            . Capítulo XX

            . Capítulo XXI

            . Capítulo XXII

            . Capítulo XXIII


V. Personagens

    V.1. Caracterização

        1. João Romão

        2. Bertoleza

        3. Miranda

        4. Rita Baiana

        5. Estela

        6. Léonie

        7. Pombinha

        8. Jerónimo

        9. Piedade

        10. Leandra

        11. Ana das Dores

        12. Dona Isabel

        13. Leocádia

        14. Zulmirinha

        15. Augusta Carne-Mole

        16. Neném

        17. Velho Botelho

        18. Henrique

        19. Agostinho

        20. Alexandre

        21. Paula

        22. Albino

        23. Firmo

        24. Senhorinha

    V.2. O percurso existencial das personagens femininas

    V.3. Os tipos sociais e as forças naturais instintivas.


VI. Conclusões

        a) Forma

        b) Conteúdo


Os tipos sociais e as forças naturais instintivas em O Cortiço

    Um dos valores maiores de Aluísio Azevedo retratados em O cortiço é a sua facilidade em fixar conjuntos humanos, em fazer uma análise de tipos sociais. As personagens são moldadas de acordo com a realidade observada de fora pelo narrador sem idealizações, pois são pessoas comuns com todos os seus contrastes (beleza/feiura, rudeza/requinte, etc.). Por isso, o comportamento das personagens decorre de causas biológicas e sociais que determinam suas ações. Para os naturalistas, a personagem e condicionada pelo meio físico e social em que vive, nada podendo fazer contra o peso das influências externas, tornando-se vítima das leis naturais. O homem passa a não ter privilégio diante do animal, visto que todos estão sujeitos às mesmas leis, enfatizando-se a dimensão animal e a satisfação de necessidades materiais instintivas, assim como os condicionamentos hereditários, que induzem a personagem a ser desta ou daquela maneira. No trecho já citado do capítulo III, p. 37, o narrador relata o despertar do cortiço, no qual acentua um processo em que não se diferenciam "objetos, homens, animais e vegetais". Há uma identificação dos seres humanos com os animais, conferindo-lhes apelidos. Leandra, com "ancas de animal do campo"; Bertoleza "trabalha como um burro de carga". Seguindo o modelo naturalista, o narrador vê todos, homens, mulheres, brancos e negros como animais, valorizando os instintos naturais, para relacionar o trabalho, o esforço do homem com a condi9ao animal. Um dos sentidos da palavra cortiço é "casa onde as abelhas se criam e fabricam o mel e a cera" (FERREIRA, 2000, p. 190). Assim, dando sentido metafórico, tais quais as abelhas, que zumbindo se agrupam em torno do mel, homens e mulheres aglomeram-se em torno das bicas de água. Veja um trecho do capítulo III: Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, apos outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos [...]. O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. (AZEVEDO, 2004, p.37-8). As pessoas vivem coletivamente, sem privacidade, como bichos, realizando suas necessidades físicas sem se ocultar, configurando-se situações de degradação humana, em que as personagens levam uma vida difícil, miserável. A "Estalagem de São Romão", isto é, o cortiço onde se desenvolve a narrativa, formado pelos grupos desprivilegiados, e transformado num lugar, onde vida e morte nao valem muito, pois as personagens se deixam guiar pelos instintos, e sao relacionadas como animais irracionais. Assim, o meio se revela como fator de conformação social. O que predomina e a intenção de mostrar, como o homem age sobre o meio e vice-versa. Deste modo, no ambiente do cortiço o indivíduo vive em função do meio e pode ser modificado pelo mesmo. O jogo de interesses e o conflito social marcam a trajetória dessa trama e define como são estabelecidas as redes entre os grupos. A personagem João Romão é o mais autêntico representante da exploração alheia. Protótipo do português ganancioso, sua preocupação em fazer fortuna é tão grande que leva ao relaxamento da própria aparência, a sujeição ao desconforto e a autoimposição de um regime de trabalho que ultrapassam muitas vezes o limite físico. Associa-se a escrava Bertoleza, "crioula trintona", quando esta fica visiva. Ela também deseja "subir na vida" e, desta forma, chega a fazer economias para a sua liberdade, contando ao vendeiro sobre o dinheiro que juntou: [...] E segredou-lhe então o que já tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos. Daí em diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro  (op. cit., 2004, p. 16) da crioula. [...]. O vendeiro transforma Bertoleza em "animal de carga", explora seu corpo e seu trabalho. Ela passa agora a ser sua amante, uma "mulher-objeto" que desperta no dono do cortiço o interesse sexual e também material. Ele lhe prepara uma carta falsa de alforria: [...] a tal carta de liberdade era obra do próprio João Romão, e nem mesmo o selo, que ele entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar a burla maior formalidade, representava despesa, porque o esperto aproveitara uma estampilha já servida. O senhor de Bertoleza não teve sequer conhecimento do fato; [...]. (op. cit., 2004, p. 17). A ajuda à negra só tem fins egoístas. Além de ser enganada, continuava escrava. Enriquecer era o principal objetivo do vendeiro e para isso não media esforços, explorando a todos, sem nenhum escrúpulo. Juntamente com Bertoleza, João Romão dá início à construção do cortiço. Não foi fácil essa trajetória que se fez por meio de furtos, de muitas privações e da exploração tanto da crioula quanto dos inquilinos do cortiço, dos fregueses da venda e dos empregados da pedreira, através da má remuneração de salários, da obrigação de fazer com que eles morassem na sua estalagem e até comprassem na sua venda. Durante toda a narrativa, Bertoleza permanece fiel a Joao Romao, o qual pouco a pouco galga posicao social. Sua ambicao desperta o desejo de crescer tambem culturalmente, influenciado pelo sucesso do vizinho nobre, o Miranda (negociante portugues, que mora no sobrado ao lado do cortico). Começa a partir daí a operar-se uma transformação no vendeiro devido ao convívio que ele havia estabelecido com a família do outro. Foi graças a essa proximidade que João Romão pode vencer as barreiras culturais e ambientais, visto que ele pertencia a uma classe considerada superior – o branco. A posterior "aristocratização" de João Romão, atingida após uma profunda modificação em seu comportamento e em sua aparência física, embora revele a Acão do meio sobre o comportamento humano e se apresente como consequência do evolucionismo, não deixa de se apoiar no pragmatismo da personagem que, após enriquecer, passa a alimentar o sonho de ganhar títulos nobiliárquicos. À medida que Romão vai evoluindo tanto na vida económica quanto social, seu cortiço sofre modificações qualitativas. A ascensão do cortiço também é a mesma do seu dono. Mas precisava livrar-se de Bertoleza que para ele representava a miseria. Resolve o problema entregando-a ao filho do seu antigo dono. Ela o reconhece e percebe toda a trama, entende que o seu amante, nao tendo coragem para matá-la, restitui-a ao cativeiro e que a sua carta de alforria era mentira. Ela, que estava certa de que tinha conseguido sua liberdade, percebe que fora enganada. O racismo na obra é bastante pronunciado. Bertoleza chega a se desprezar por ser negra e se envergonha, sentindo-se como uma "mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade brilhante e clara" (op. cit., 2004, p. 188) na vida de João Romão. Suicida-se ao perceber que não há, para sua vida, uma outra saída: [...] Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recua de um salto, e antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado. E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.(op. cit., 2004, p. 225). Por meio de intrigas, explorações e mentiras, o vendeiro ascende socialmente e casa-se com Zulmira, a "doce existência dos ricos", filha do Miranda. João Romão vence o meio e torna-se "quase um nobre carioca", consegue o título de "sócio benemérito" abrindo, assim, as portas para a sociedade, um objetivo que queria alcançar. Constata-se o evolucionismo nessa narrativa, segundo o qual o forte vence o mais fraco. Tomando como base os modelos científicos, característica do Naturalismo, no sentido de que o homem era marcado pelo determinismo biológico e social, procurando comprovar essas teses, os naturalistas preferiam personagens mórbidas, adúlteras, psiquicamente desequilibradas, assassinas, bêbadas, miseráveis, doentes, prostitutas, homossexuais, etc. Os tópicos proibidos são descritos com detalhes: - Sim! Sim! insistiu Leonie, fechando-a entre os braços, como entre duas colunas; e pondo em contato com o dela todo o seu corpo nu. Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas pomas irrequietas sobre o seu mesquinho peito de donzela impúbere [...]. (op. cit, 2004, p. 130) É apresentada aqui uma descrição minuciosa do homossexualismo feminino, no caso, entre Leonie, uma prostituta, e Pombinha, "a flor do cortiço". Leonie a seduz com presentes e iniciativa homossexuais. O homossexualismo masculino também é retratado na narrativa: Fechava a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado, fraco, cor de espargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caía, numa só linha, até ao pescocinho mole e fino. Era lavadeiro e vivia sempre entre as mulheres, com quem já estava tao familiarizado que elas o tratavam como a uma pessoa do mesmo sexo;  [...].(op. cit., 2004, p.42) Tentando "focalizar de perto as distorções morais que se geram no âmbito das comunicações promíscuas" (MOISES, 2002, p. 254), no caso de O cortiço é que o narrador descreve personagens que para "crescer na vida" se prostituem. Gera-se, portanto, uma dúvida: personagens como Leonie e Pombinha tinham certas "tendências", que se inclinavam para uma herança biológica, levando-as à prostituição, ou foram influenciadas pelo meio em que vivem? Para ascender socialmente, Leonie deixou o cortiço e teve que prostituir-se, alcançando um certo "status", o que lhe permitia "desfilar com os amantes pelas ruas e teatros com a mesma leveza como regressa ao cortiço para ver sua afilhada" (AZEVEDO, 2004, p.. 102). Ela saíra do cortiço e enriquecera "vendendo seu corpo", mas nem por isso deixa de visitar seus antigos amigos, pois conservou o "trânsito livre" e, nas suas visitas ao cortiço, ela era recebida com cochichos e admiração diante de tanto luxo que a envolvia. Logo ficava cercada de gente e na presença de todos chegava a louvar os preceitos morais. O narrador cria uma situação irónica, uma vez que Leonie era "prostituta de casa cheia", mas pregava os "bons costumes": E, enquanto Juju percorria a estalagem, conduzida em triunfo, Leonie na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crianças, discreteava sobre assuntos sérios, falando compassadamente, cheia de inflexões de pessoa prática e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo a moral e a virtude. O interesse de Leonie em visitar o cortiço era ver sua afilhada Pombinha, tida como "a flor do cortiço", que, apesar do meio em que vive, teve uma educação que a colocava em destaque, visto que tinha estudado. Mesmo depois que seu pai morreu, sua mãe, Dona Isabel, crucificou-se para educar a filha: "não permitia lavar, nem engomar mesmo porque o médico o proibira expressamente" ( op. cit., p. 41). Muito querida pelo povo do cortiço, era ela quem escrevia as cartas e lia jornais para quem quisesse ouvir. Se a encontrassem na missa não perceberiam que ela morava no cortiço, pela maneira de se vestir e se comportar. Era protegida por uma redoma. Entretanto, a proteção da mãe, a consideração da comunidade onde mora, ou a sua formação religiosa - apesar da sua fé sincera, como se fosse uma guardiã contra o mal; não conseguiram fazê-la enxergar a manifestação de sedução do comportamento de Leonie, "com extremas solicitudes de namorado" (op. cit, 2004, p. 129). Pombinha foi pelo próprio pé, meter-se na casa da cocote, um local ideal que ajudaria a desencadear os elementos da natureza da personagem: a força do meio desperta-lhe os recursos genéticos que Hipolite Taine apregoa como determinantes do comportamento humano, junto com o mesmo meio e o momento (circunstância). No início da narrativa, Pombinha era impedida de se casar porque "não tinha pago a natureza o cruento tributo da puberdade". Mas, Leonie seduz a moça e, após a iniciação sexual, sai de suas entranhas "o primeiro grito de sangue". Depois que se tornou mulher, ela compartilha do desejo sensual de Jerónimo em relação a Rita Baiana, do momento de intimidade entre Leocádia e o rapaz do sobrado ao lado do cortiço, o Henriquinho, da concupiscência animalesca do Miranda, etc.: Uma aluvião de cenas, que ela jamais tentara explicar e que até aí jaziam esquecidas nos meandros do seu passado, apresentavam-se agora nítidas e transparentes. [...] Num só lance de vista, [...] sentiu diante dos olhos aquela massa informe de machos e fêmeas, a comichar, a fremir concupiscente, sufocando-se uns aos outros. E viu o Firmo e o Jerónimo atassalharem-se como dois cães que disputam uma cadela da rua; e viu Miranda, lá defronte, subalterno ao lado da esposa infiel, que se divertia a fazê-lo dançar a seus pés seguro pelos chifres. (op. cit., p.140-141). A moça vivenciou factos que condicionaram a sua transformação. Nela despertou um outro valor: a mulher pode mais do que o homem, como se lê nas passagens: [...] Pombinha pousou os cotovelos na mesa e tolinou as mãos contra o rosto, a cismar nos homens. Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal ponto, que os infelizes, carregados de desonra e de ludíbrio, ainda vinham covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela Ihes fizera?... [...] E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que no entanto fora posto no mundo simplesmente para servir ao feminino; [...] ao passo que a mulher, a senhora, a dona dele, ia tranquilamente desfrutando o seu império, endeusada e querida, prodigalizando martírios, que os miseráveis contritos, a beijar os pés que os deprimiam e as implacáveis mãos que os estranguláveis. – Ah, homens! homens!... sussurrou ela de envolta com um suspiro. (op. cit., 2004, p. 140- 141) Pombinha casa-se e sente-se incapaz de submeter-se a uma vida familiar; torna-se adúltera, sendo entregue pelo marido à mãe. Desde já, prostitui-se, passando a sustentar sua mãe "com os ganhos da prostituição": [...] Pombinha, só com três meses de cama franca, fizera-se tao perita no ofício como a outra: a sua infeliz inteligência nascida e criada no modesto lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo fôlego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela vida; seus lábios não tocavam em ninguém sem tirar sangue; sabia beber, gota a gota, pela boca do homem mais avarento, todo o dinheiro que a vítima pudesse dar de si. (op. cit., 2004, p. 218). Aqui, o narrador trabalha a ideologia naturalista, segundo a qual o homem é produto do meio e Pombinha foi influenciada pelo ambiente, pois o cortiço e logo depois a casa de Leonie tiveram "inspiração" para a sua vida de prostituição. A moça deixa seu lado angelical para assumir a imagem da serpente, a serviço do determinismo social que conduz o destino de Pombinha. O Naturalismo "acentua a supremacia do feminino sobre o masculino, da fêmea sobre o macho" (SANTANNA, 1984, p. 113). Para Leonie, os homens existem para "servir ao feminino" e Pombinha, de agora em diante, passa a acreditar nisto: "Agora, as duas cocotes, amigas inseparáveis [...] tornaram-se uma só cobra de duas cabeças" ...] (AZEVEDO, 2004, p. 218). Para infundir mais a ideia de que o homem é produto do meio, o caso se repetirá com Senhorinha, filha de Jerónimo e Piedade. Haverá então um círculo vicioso no qual a cadeia continuava interminavelmente: "o cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria" (op. cit., 2004, p. 219), pois sua mãe, ao ser abandonada e trocada por Rita Baiana, havia se relaxado. Pombinha tomou Senhorinha como "sua protegida predileta, votava agora, por sua vez, uma simpatia toda especial, idêntica a que em outro tempo inspirara ela própria a Leonie". Ao escrever sobre a prostituição, Aluísio Azevedo acaba endossando valores ideológicos, segundo os quais o homem é produto do meio, sem dar importância as desigualdades socioeconómicas porque passa uma sociedade mesmo porque a obra cumpre as posturas naturalistas seguindo o modelo europeu.

(c) Iracema Duarte Filha, in A Relação Personagem, Ambiente e Raça em O Cortiço de Aluísio de Azevedo

terça-feira, 8 de abril de 2025

Análise do poema "Eu quero", de Adília Lopes

Eu quero
um par de luvas
de que cor não sei
para desvestir as mãos
não pense que é para esconder as mãos
que quero desvestir as mãos
não tenho medo das impressões digitais
é para desvestir as mãos
é isso mesmo só isso
não vale a pena abrir os dedos das luvas
dedo a dedo
com a espátula de madeira
não vale apena deitar pó
de talco dentro dos dedos
essas luvas servem
para desvestir as mãos?
deixe-me ver a sua mão
I
como tem a mão
como é que fez isso?
podia responder-lhe assim
Me gusta ver la sangre!
 
    Este poema pertence à obra Dama de Espadas, publicada em 1988, quando a autora contava 28 anos.

    Nele, deparamos com um «eu» poético bastante sofrido que desenvolve o seu pensamento de forma paradoxal. O sujeito entra numa luvaria à procura de um par de luvas não para as usar, mas para mostrar a sua identidade mais essencial e que melhor  distingue, aquele que as impressões digitais representam e tornam singular. De facto, ele declara, sem pejo, que quer o par de luvas (os pormenores, como a cor, não interessam) para «desvestir» as mãos, não para as esconder.
    
    As mãos estão em ferida, e as luvas (cujos dedos não vale a pena sequer a pena abrir nem polvilhar com pó de talco, visto que não serão calçadas) servem efetivamente “para desvestir as mãos”, ou seja, deverão mostrar as mãos feridas e as respetivas impressões digitais, aquilo que é autêntico, que representa a identidade do «eu».

    O vendedor estranha as mãos magoadas do sujeito lírico: “I / como tem a mão / como é que fez isso?” A palavra inicial é extremamente ambígua de ler, pois tanto pode remeter para a interjeição «ih!», traduzindo o espanto do vendedor, como equivaler ao pronome pessoal inglês de primeira pessoa, que simultaneamente fosse um «ai!» interjetivo da língua portuguesa. De facto, a maiúscula pode sugerir que o «I» remete para  pronome inglês, misturando-o com um grito.

    Por outro lado, justificando o recurso a luvas que desvestem as mãos, o sujeito poético afirma o seu gosto masoquista por ver o próprio sangue. Por último, atente-se no facto de o talco ser usado apenas para abrir as luvas de pelica, o que sugere que o uso das luvas corresponde à adoção de uma espécie de segunda pele, na qual se inscrevem as mais autênticas impressões digitais.

Rosa Maria Martelo, in “A luva e a mão (uma história de salvação)”

terça-feira, 1 de abril de 2025

"Lúcia no Saldanha em Pulgas", de Adília Lopes: análise e interpretação do poema

1. Transcrição do poema

1
De um amante
uma vez
faço mil amantes
 
2
Porque o meu amante
tão pobre, Juan Yepes
foi o pão o peixe a água
das minhas bodas de Caná
 
3
Ó mulher inspirada
que desperdiças o caríssimo
unguento de Bethânia,
ensinas-me a gerir
a escassez de recursos
 
4
Os amantes não se contam, Don Juan
ó contabilista dos contabilistas
 
5
Sangue que foi vinho que foi água
onde nadam mil peixes
que foram um peixe só
alimentado por pão partido em pequeninos
o amor não se conta, ó escritoras de escritos
 
6
Não contem comigo para usar
o jargão da Marie Claire
e a jaqueta de Courrèges
 
7
O mártir pede o pano da Verónica emprestado
autorretrato dos autorretratos alta-costura
e assim misturo Cristo com isto
 
8
De que me serve que esse homem
tenha sofrido se eu sofro agora?
 
9
Marta & Maria acopladas fundam
uma firma no firmamento
 
10
Eu louvo o meu tempo de santos
Computadores, ó 70! X 7!
(o meu martírio branco consiste em louvar
o que não interessa nem ao Menino Jesus)

2. Análise e interpretação do poema

 
    Este poema pertence ao livro Clube da Poetisa Morta, datado de 1997. O título do texto (tal como a nona estrofe) alude ao tema musical “Lucy in the Sky with Diamonds”, dos Beatles, o qual se crê fazer referência à sigla LSD e aos efeitos alucinogénios do ácido lisérgico e que faz parte do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band.
    Na composição poética, Adília Lopes, aparentemente, estabelece um diálogo inspirado entre experiências pessoais e acontecimentos bíblicos. O Saldanha refere-se à Praça Duque de Saldanha, em Lisboa, usada sobretudo como ponto de passagem, intercâmbio ou encontro. Por seu turno, a expressão “estar em pulgas” indica expectativa, mas também pode ser lida em sentido literal (há pulgas na praça).
    A primeira estrofe parece apontar para a multiplicação do amor ou dos amantes, o que pode querer dizer que o sentimento amoroso, uma vez experimentado, pode expandir-se e desdobrar-se em múltiplas experiências.
    Por sua vez, a segunda estrofe alude ao episódio bíblico da multiplicação dos alimentos, concretamente a dos pães e dos peixes. O amante do «eu» poético era pobre, Juan Yepes. Trata-se de Juan Yepes Álvarez (1542-1591), nome de nascimento, que depois ficou conhecido como San Juan de la Cruz, um religioso e poeta místico do Renascimento espanhol e um dos grandes nomes da literatura mística cristã, conhecido pela sua poesia espiritual e pela ideia do amor divino. Juan Yepes foi ainda reformador da Ordem dos Carmelitas e cofundador da Ordem das Carmelitas Descalças de Santa Teresa de Jesus. Desde 1952, tornou-se o patrono dos poetas em língua espanhola. Os nomes comuns «pão», «peixe» e «água» remetem para o episódio bíblico da multiplicação dos pães e dos peixes e da transformação da água em vinho nas Bodas de Caná. De facto, trata-se do primeiro milagre de Jesus: de acordo com o Evangelho de S. João, ele estava, juntamente com Maria, sua mãe, presente num casamento quando o vinho acabou. A Virgem, mal se apercebeu da situação, informou o filho, que ordena aos servos que encham seis talhas com água e, ao servi-la, os convidados percebem que a água foi transformada no melhor vinho da festa. Deste modo, no contexto do poema, a menção às Bodas de Caná parece indiciar um amor que se multiplica ou que possui um fundo milagroso. Por outro lado, o amor do «eu» pelo amante não era material, mas espiritual e essencial como os elementos básicos da vida. Note-se, ainda, que o vinho, na tradição cristã, representa a alegria, a comunhão, tendo acabado por se tornar um símbolo eucarístico.
    A terceira estrofe remete novamente para a Bíblia, especificamente a receção de Jesus por Maria e Marta. Ela abre com uma apóstrofe dirigida a uma “mulher inspirada”, chamada Maria, que ungiu Jesus Cristo. Perante as críticas dirigidas a esse comportamento perdulário dessa figura feminina, que poderia ter vendido o perfume e dado o dinheiro aos pobres, Jesus recorda que esta será a preparação para o dia do seu sepultamento. Ainda de acordo com o texto bíblico, a mulher derramou o dito unguento muito caro nos pés de Jesus, enxaguando-os depois com os seus cabelos. O adjetivo «inspirada», presente no verso inicial da estrofe, pode ser entendido como um elogio à ação da mulher por ter agido movida por um impulso nobre, ou, em alternativa, como uma ironia, sugerindo que a inspiração pode ser mal interpretada ou desperdiçada. Por sua vez, a forma verbal «desperdiças» traduz a crítica presente na Bíblia e feita pelos discípulos, nomeadamente Judas Iscariotes, que questionaram a razão de o perfume não ter sido vendido para ajudar os pobres. Os dois versos finais parecem possuir uma contradição irónica, dado que a mulher referenciada desperdiçou um recurso valioso (o unguento), mas o «eu» declara que a ensina a lidar com a escassez de recursos, num jogo claro entre generosidade e escassez.
    Na quarta estrofe, o sujeito lírico defende a singularidade da experiência num registo imprecativo, dirigido a Don Juan, tratado, de forma irónica, como o “contabilista dos contabilistas”, referindo-se aos inúmeros amores que a tradição lhe aponta. D. Juan é uma personagem mítica do teatro espanhole, por extensão, da literatura universal, que constitui o protótipo do libertino impenitente. Da autoria discutida, atribui-se tradicionalmente a sua criação a Tirso de Molina, na sua obra El Burlador de Sevilla y Convidado de Piedra, de 1630. D. Juan personificaria uma lenda sevilhana que inspirou vários autores, como, por exemplo, Molière, Lorenzo da Ponte, Lord Byron, etc. No fundo, não passa de um libertino que crê na justiça divina, mas acredita igualmente que poderá arrepender-se e ser perdoado antes de comparecer perante Deus.
    Na estrofe seguinte, o «eu» poético recupera os símbolos já referidos: na Última Ceia, o vinho foi transformado em sangue de Cristo (símbolo da redenção); nas bodas de Caná, a água foi transformada em vinho (símbolo da alegria e da celebração, água essa em que, metaforicamente, “nadam mil peixes / que foram um peixe só”, metáfora essa que reivindica um amante que vale por muitos. Há aqui a ideia da continuidade nos processos de transformação: algo muda ao longo do tempo, mas mantém conexões com as suas «versões» anteriores. No caso do poema, estamos perante algo que se transforma em qualquer coisa maior, mais significativa, quase uma ascensão simbólica: o que hoje é sangue (símbolo da vida) já foi antes vinho (alegria, celebração, comunhão) e, previamente, água (a matéria-prima básica, a origem de tudo). A progressão sugerida por Adília Lopes parece apontar para o percurso da vida e da espiritualidade: primeiro, há a origem e a simplicidade (a água, elemento primário associado à pureza, ao batismo); depois, dá-se a transformação e a celebração (o vinho; no fim, chega a consagração e o sacrifício (o sangue, o sacrifício máximo, a redenção, como no sacrifício de Cristo). Ou seja, o amor tem início como água (algo puro, básico, essencial), transforma-se, de seguida, em vinho (algo mais intenso, que dá prazer, é embriagante, como a paixão), para se tornar, no final, sangue (um estado extremo, talvez de sacrifício, dor e/ou entrega total). O amor não se mede, não se quantifica, mas cresce e intensifica-se com o tempo, ainda que implique também sofrimento ou sacrifício. Por sua vez, a imagem do pão partido remete tanto para o milagre da multiplicação dos pães quanto para a Eucaristia, na qual Cristo se oferece em pedaços – a hóstia – aos fiéis. No verso final, o «eu» dirige-se às “escritoras de escritos”, parecendo criticá-las por procurarem definir o amor, alertando-as que o mesmo não pode ser medido, calculado ou explicado por meio de palavras, lembrando o célebre soneto de Camões (“Amor é um fogo que arde sem se ver”), no qual o poeta procura definir o amor, para concluir que, afinal, é indefinível e contraditório.
    A sexta estrofe contém referências ao mundo contemporâneo da moda. “Marie Claire” é uma revista feminina de caráter mensal, iniciada em França em 1937, que posteriormente começou a ser publicada também noutros países, nos respetivos idiomas. O seu lema era “Mais do que uma cara bonita”. Por seu turno, André Courrèges foi um estilista francês nascido em 1923, reconhecido sobretudo pelos seus desenhos ultramodernos. Courrèges associou à indumentária feminina uma maior simplicidade, com traços que permitiam uma maior liberdade e comodidade. Os seus desenhos caracterizavam-se por formas geométricas, baseando-se em quadrados, trapézios e triângulos. Em 1965, lançou uma campanha chamada “Era espacial”, a qual revolucionou o mundo da moda, sendo considerado um visionário, criador de um universo radical, pessoal e polimorfo no universo da moda. O verso inicial contém uma negação categórica (“Não contem comigo”), deixando claro que não faz parte de um determinado grupo ou estilo, numa espécie de posicionamento pessoal contra algo que parece imposto ou esperado. Neste caso, trata-se da negação do «jargão» da referida revista de moda, beleza e comportamento feminino. Poderemos estar, neste passo, perante uma crítica ao discurso comercial e superficial, a recusa de modas, bem como a rejeição de um tipo de imagem e empoderamento feminino, ligado ao consumismo e à estética, numa visão superficial da mulher. Por outro lado, o «jargão» indicia uma maneira de falar comum a uma atividade ou grupo específico, comumente usada em grupos profissionais ou socioculturais. Quanto à «jaqueta», pode simbolizar o consumismo e a moda como imposição que o «eu» poético recusa enquanto algo que representa um padrão estético pré-definido. Além disso, o mundo da moda, nomeadamente de grifes famosas, frequentemente dita como as mulheres se devem apresentar socialmente, algo que o sujeito lírico recusa seguir. Deste modo, Adília Lopes estaria a colocar-se fora do discurso da moda e das revistas femininas, por não se encaixar nesse universo de futilidade e convenções sociais.
    A sétima estrofe mistura referências religiosas, arte e moda, com ironia e em tom provocatório. O verso inicial faz alusão à lenda do véu de Verónica, um dos episódios inscritos na Via Sacra. Assim, de acordo com a tradição cristã, Verónica enxugou o suor e o sangue do rosto de Cristo quando ia a caminho do Calvário, tendo o seu rosto ficado impresso no pano (esta cena não consta da Bíblia). Note-se que o complexo verbal «pede emprestado» quebra o tom sagrado da referência bíblica. Por outro lado, quem é o «mártir»? Um narcisista? O autorretrato dos autorretratos constituirá uma denúncia da obsessão pela autoimagem, do culto da imagem? O conceito do autorretrato surge associado à moda, ao luxo e ao consumismo. A alta costura remete para a sofisticação, mas, no caso do poema, parece apontar para uma certa artificialidade. O último verso reconhece claramente a associação irreverente entre o sagrado (Cristo) e o profano, o mundano («isto»). Cristo é o símbolo da espiritualidade, do sacrifício, do sofrimento em prol da humanidade, enquanto o pronome demonstrativo invariável «isto» parece apontar para o que foi citado antes: a moda (o próprio poema?). De acordo com uma interpretação livre, a estrofe parece questionar o modo como a dor e a imagem são manipuladas na sociedade atual. Deste modo, a figura do mártir moderno que pede o pano de Verónica emprestado pode indiciar a imagem de alguém obcecado pela exibição do sofrimento ou da busca de validação através dele.
    A oitava estrofe reproduz os versos finais do poema “Cristo na cruz”, inscrito na derradeira obra poética de Jorge Luís Borges, intitulada Os conjurados. São perguntas sem resposta de um Borges cego, perto do final da sua vida. O sofrimento de Jesus (ou do mártir) não tem qualquer valor real para o «eu» poético, que sofre no presente. De acordo com o cristianismo, a paixão de Cristo é vista como redentora, como um sacrifício que dá sentido à dor do ser humano. No entanto, o sujeito poético rejeita essa ideia: o sofrimento de Cristo no passado não alivia a dor no presente, ou seja, o sofrimento não possui um sentido transcendente. O sofrimento do «outro» (de Cristo ou de qualquer outro mártir) pertence ao passado, mas “eu sofro agora” – o que importa, para quem sofre, é o momento presente. O sofrimento não é transferível, não é algo que pode ser substituído ou compensado por uma dor anterior. Deste modo, o «eu» poético rejeita a ideia de consolo religioso, de que o refúgio na religião traz conforto, alivia a dor.
    Tendo em conta que o poema contém diversas referências a Cristo e ao pano de Verónica, descrito como “autorretrato dos autorretratos alta costura”, Marta e Maria podem ser identificadas como as duas irmãs de Lázaro. Deste modo, os nomes «firma» e «firmamento» remetem também para a origem bíblica das duas figuras. Por outro lado, esta estrofe exemplifica o gosto de Adília Lopes pelas dualidades. De acordo com a professora Rosa Maria Martelo, a poetisa reúne as identidades diferenciadas da diligente Marta e da contemplativa Maria; a dualidade Marta e Maria é equivalente à dupla que reúne Adília e Maria José, que, também graças à máquina de coser, fundaram juntas uma firma no firmamento (in poema “Op-Art”) – no caso, entre as estrelas da escrita contemporânea. Note-se que o verbo «ligar» significa, neste caso, ligar, combinar, unir tessituras, pedaços de discurso, fazer roupas novas com vestidos velhos.
    A estrofe final – uma quadra – mistura elementos religiosos («santos») com elementos modernos, do domínio da tecnologia («computadores»), indiciando um contraste entre o domínio do espiritual e o do profano. O sujeito poético afirma louvar o tempo atual, o da tecnologia, da modernidade, representado(a) pelos computadores, o que parece constituir uma crítica irónica sobre o que é venerado hoje em dia. O segundo verso contém uma referência bíblica, nomeadamente ao Evangelho de S. Mateus (18, 21-19, 1), onde Jesus responde a uma pergunta feita pelo apóstolo Pedro (“Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes tenho de o perdoar? Até sete vezes?”. Jesus responde-lhe: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete.”). Ora, esta resposta sublinha a necessidade de perdoar verdadeiramente.
    O dístico derradeiro surge entre parênteses e traduz o sarcasmo do «eu» lírico, ao demonstrar que se sente martirizado por dar valor a coisas que ele próprio considera sem valor. O que louva (ou escreve ou pensa) não tem qualquer importância nem para o Menino Jesus. Trata-se de uma expressão idiomática que aponta para algo desinteressante, maçador, banal. O que o sujeito poético louva não tem interesse, é fútil ou irrelevante.

sábado, 29 de março de 2025

Benfica é tetracampeão de andebol feminino

Tetracampeonato

 

Análise da cantiga "Bem sabedes, senhor rei", de Gil Peres Conde

    Esta cantiga de refrão em cobras singulares, composta por Gil Peres Conde, é constituída por três sétimas de rima cruzada e interpolada (ABABCAC) de versos em redondilha maior. Ela faz parte de um conjunto de oito cantigas alusivas à sua má estrela em terras de Castela, sendo muitas delas dirigidas diretamente ao rei e que têm evidentes ligações entre si e que, no seu conjunto, formam uma sequência biográfica.

    Na Idade Média, o poder estava centrado, respetivamente, na Igreja, nos reis e na nobreza. Comandada pelo Papa e pelos seus representantes (cardeais, arcebispos e bispos espalhados pela Europa), a Igreja tentava manipular os reinos a seu favor através da censura, regulações e excomunhões. Os reis e nobres, por sua vez, exerciam o poder local arregimentado pelas relações de vassalagem entre suserano e vassalo. Neste contexto, surgiram os chamados escárnios e chufas, ou seja, críticas direcionadas a uma pessoa ou a grupos de pessoas, seja de forma velada, como nas cantigas de escárnio, seja de forma aberta, como nas cantigas de maldizer.

    Gil Peres Conde é natural de Portugal, tendo estado ativo nas cortes de Afonso X e de Sancho IV de Castela na década de central e finais do século XIII. O trovador tornou-se célebre por ser um dos mais, senão o mais mordaz, nas suas críticas sobre o rei de Castela, que o exilou entre cerca de 1269 e 1286, talvez o ano da sua morte. Quase de certeza, pertencia à alta nobreza, no entanto perdeu o estatuto de «ricomem», ou rico-homem, quando foi exilado em Castela, devido à sua discordância relativamente à deposição de D. Sancho II, tornando-se um mero infanção (antigo título de nobreza inferior ao de rico-homem; escudeiro fidalgo). Gozava, contudo, de algum prestígio, ratificado pelas mercês recebidas do rei, o que mostra uma certa proximidade ao monarca, ainda que crítica. A discordância entre o trovador e o rei é intensificada por dois motivos principais: o poeta ter raízes portuguesas e servir um rei castelhano; e o trovador não receber do rei de Castela os soldos e doações devidas pelos serviços de guerra. As seis composições de Gil Peres Conde presentes no Cancioneiro da Biblioteca Nacional documentam o tema e exemplificam essa tensão entre suserano e vassalo.

    O trovador dirige-se ao rei por meio de uma apóstrofe (“senhor rei”) – provavelmente tratar-se-á de D. Afonso de Castela, que ele servia desde 1249 e que buscou exílio nesse reino, saindo de Portugal depois de Afonso III regressar de Bolonha, com o aval do belicoso Papa Inocêncio IV, para depor seu irmão, então monarca de Portugal, correspondendo ao facto histórico de muitos partidários de D. Sancho II terem sido forçados a refugiar-se noutros reinos depois da sua derrota – para mostrar o seu descontentamento em relação à ingratidão do rei. Qual a razão desse descontentamento? O trovador sempre foi leal ao rei (“que sempre vos guardei”) e sempre o serviu “quer a pé quer de cavalo”, porém jamais foi recompensado por isso (“sen voss’haver e sem dõa”). Porém, ele admite, de imediato, uma falha: não esteve com o monarca em boa hora (“mais atanto vos errei: / nom fui vosco em hora bõa”). Ou seja, no refrão, continuando a dirigir-se ao rei diretamente, conclui, de forma irónica, que se tinha colocado ao seu serviço numa hora menos feliz.

    No início da segunda cobla, o «eu» enumera os locais em que serviu o soberano: em Campou (provavelmente Aguilar de Campoo, localidade situada a norte de Carrión de los Condes, entre a Meseta e o mar Cantábrico), em Olmedo (cidade do sul da província de Valladolid), em Badalhou (Badajoz, cidade da Extremadura espanhola, próxima da fronteira portuguesa de Elvas) e Toledo (cidade e província de Castela – La Mancha, na margem direita do Tejo, capital da Hispânia visigótica e uma das primeiras cidades medievais da Península Ibérica, na qual o rei a quem se dirige foi coroado – “e outrossi em Toledo, / quand[o] i filhaste corõa”). A referência à coroação do monarca em Toledo, cidade onde D. Sandro IV foi coroado, na opinião de Graça Videira Lopes, implica que é a este soberano que o trovador se dirige nesta cantiga (já que o seu pai, Afonso X, foi coroado em Sevilha).

    Na terceira e última estrofe, o «eu» poético afirma que sempre protegeu muito bem o rei em todos os lugares onde andou: “Fostes mui ben aguardado / de mim sempre u vós andastes”. Note-se que a forma verbal «aguardar» é ambígua, pois pode significar «guardar» (proteger, no caso do rei) e «aguardar» (esperar). Quer isto dizer que o trovador guarda (o rei) e aguarda (o pagamento). Além disso, reforça a ideia da sua lealdade ao declarar que nunca recusou servir o rei e que este, por sua vez, nunca recusou os seus serviços. Vocábulos como «sempre», «mui», «nunca», «tanto» enfatizam a servidão leal do sujeito poético. E termina com um “mea culpa”, servil, como se estivesse pedindo uma recompensa pelos serviços prestados, mas não merecesse o favor (ironia), já que “non fui vosco em hora bõa”.

    Nesta cantiga, o trovador relata os serviços prestados ao rei, enfatiza a sua lealdade, a sua servidão, mas finalizando sempre com o reconhecimento da sua culpa, da sua falha. Este estratagema permite que a crítica ao rei seja subtil: ao mesmo tempo que não ameaça a face do monarca, reconhecendo a sua falha, exprime a sua crítica à ingratidão real. Por outro lado, a presente composição poética mostra que a crítica ao poder real se fazia de modo implícito, provavelmente só compreendida pelos recetores da época, graças ao contexto situacional.

segunda-feira, 24 de março de 2025

Análise da cantiga "A donzela de Biscaia", de Rui Pais de Ribela

    Esta cantiga de cariz satírico, da autoria de Rui Pais de Ribela, é constituída por três coblas, formadas por um dístico seguido de refrão, com rima emparelhada e versos heptassílabos alternando com pentassílabos (no refrão).

    A composição poética, de escárnio, visa uma jovem mulher, uma donzela, natural de Biscaia, um senhorio asturiano, cuja capital era Bilbao, da qual o trovador se queixa por se recusar a encontrar-se consigo: “ainda mi a preito saia / de noit’ou luar”, isto é, nunca saía ao encontro dele de noite, ao luar. Apesar disso, embora desprezado pela donzela, o trovador tenta encontrar estratégias para a possuir, recorrendo a jogos de linguagem.

    Assim, no segundo terceto, volta a enfatizar a ideia de que ela o rejeita ou despreza, o que é recente, como se pode observar pela presença do advérbio de lugar «agora», por isso afirma esperar que nunca o procure, ou seja, a mulher pode acabar por se lhe render ou necessitar dele de alguma forma.

    A terceira estrofe abre com uma anáfora com o verso inicial da anterior que reafirma o seu sentimento de amesquinhamento pelo facto de a donzela o rejeitar constantemente, no entanto mantém a expectativa de a encontrar, de noite, ao luar. Note-se que essa expectativa, por parte do trovador, de se encontrar com a mulher é expressa no refrão, especificamente da segunda e da terceira coblas.

    As referências à noite e ao luar importam para a cantiga um tom malicioso, pois o encontro desejado entre ambos teria lugar nessa altura do dia, propícia a encontros amorosos mais íntimos e recatados, afastados dos olhares alheios. Ou seja, o «eu» poético desdenha da “donzela de Biscaia” por não o querer e confessa o seu desejo de a encontrar de noite ou ao luar.

domingo, 23 de março de 2025

Análise da cantiga "A Dona Maria há soidade"

    Desta cantiga de maldizer, de Lopo Lias, apenas nos chegou uma estrofe, constituída por uma rubrica e uma sextilha. De acordo com a referida epígrafe, a composição poética debruça-se sobre uma mulher casada adúltera, pois “havia preço” com um homem chamado Franco.

    Os dois versos iniciais, exatamente iguais entre si, facto que evidencia a dificuldade de arrumação dos que sobreviveram, que é meramente conjetural, identificam, nomeando-a, o alvo da sátira: Dona Maria, que está cheia de saudade porque perdeu um jogral. A mulher elogiava-o (“dizendo del bem”), porém ele não correspondeu (“e el nom achou / que nenhu preito del fosse mover”), mantendo-se indiferente aos avanços dela. Deste modo, D. Maria nada obteve do jogral – “nem bem nem mal” –, o que acentua essa noção da indiferença masculina e, por outro lado, a deixa profundamente triste.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...