O Escudeiro, de nome Brás da Mata,
entra em cena com o seu Moço, que traz uma viola (símbolo do lado cortesão do
seu amo e da vida de diversão, mas também da sua pelintrice).
1.
Considerações de Brás da Mata sobre Inês
● Começa por considerar que, se Inês for como
os Judeus casamenteiros a pintaram, não existe melhor partido para ele (“Se
esta senhora é tal / como os judeus ma gabaram / certo os anjos a pintaram”).
Por outro lado, isto significa que Latão e Vidal são bastante eficientes no seu
ofício, dado que encareceram bastante Inês junto do Escudeiro, tal como tinham
feito com Brás da Mata relativamente a Inês.
● De facto, os dois judeus compararam os
olhos da jovem com Santa Luzia, a advogada da visão, e os cabelos com os de
Santa Maria Madalena.
● No entanto, tamanha «perfeição» suscita
nele alguma desconfiança (“e nam pode ser i al”)
1.º) Se é assim tão bela, como é
que ainda não casou (“Se fosse moça tão bela, / como donzela seria?”)?
2.º) Desconfia que é uma jovem de
mau porte (“Moça de vila”), pouco asseada (“sarnosa”), muito feia e provinciana
(“e sarnosa no toutiço / como burra de Castela.” – comparação) e não está
seguro da sua castidade (“Se ela fosse donzela / tudo essoutro passaria”, ou
seja, fosse ela donzela e o resto não teria importância.
● Assim, imaginando que os judeus o
enganaram, vai procurar certificar-se se Inês é como aqueles a descreveram, nomeadamente
se é honesta, contida e discreta.
● A sua postura relativamente a Inês é muito
semelhante à que esta adotou relativamente a Pero Marques. De facto, Brás da
Mata refere-se à jovem de forma depreciativa e desdenhosa, mesmo antes de a
conhecer, tal como ela se manifestara com desprezo e arrogância acerca do
primeiro pretendente. E tal acontece por razões semelhantes.
2. Conselhos da Mãe
De acordo com a Mãe, o comportamento
que a filha deve adotar perante o Escudeiro deverá caracterizar-se pela
passividade e pela submissão:
▪ falar pouco e não rir demasiado, isto é,
ser discreto e recatada;
▪ não encarar o Escudeiro.
Ou seja, Inês deverá mostrar-se uma
mulher sensata e subserviente face ao Escudeiro, que é de condição superior,
pois a moça discreta é uma pérola para amar (metáfora). Ou seja, a Mãe
aconselha a filha a representar um papel para agradar ao pretendente, ocultando
o seu verdadeiro ser (o mesmo acontece com Brás da Mata), o que indicia o seu
verdadeiro ser.
3.
Modelo da mulher ideal da época
A fala da Mãe permite-nos colher
mais alguns traços daquilo que seria o modelo de mulher da época em que a farsa
foi composta: trabalhadora (entregue às tarefas domésticas), recatada e
discreta (deveria passar despercebida).
4. Diálogo entre o Escudeiro e o Moço
Qual é a funcionalidade deste
diálogo?
Na conversa que entabula com o Moço,
o Escudeiro mostra o seu verdadeiro caráter, ao combinar com aquele a
estratégia para seduzir Inês, que é o mesmo que dizer as mentiras para a
enganar:
1.ª) Aconselha Fernando a tirar
o «barrete» em sinal de respeito, sempre que estiver na sua presença.
2.ª) Se cuspir no chão, o Moço
deverá disfarçar com o pé.
3.ª) Se mentir, gabando-se de
ser íntimo do Rei, o Moço deverá conter o riso ou sair, isto é, não o deverá
contradizer/desmentir.
O Escudeiro orienta o Moço para agir
de forma coincidente com a sua vontade, para manter as aparências e
impressionar Inês.
Quando Moço reclama que não tem
sapatos e calças para se apresentar dignamente em casa de Inês, Brás da Mata
começa por mentir, dizendo-lhe que o sapateiro não tem solas nem pela para lhos
consertar, e depois promete-lhe que em breve terá dinheiro para lhe pagar.
E como pensa o Escudeiro obter esse
dinheiro? Através do casamento com Inês, dado que pensa que esta o terá e o irá
sustentar: “Eu o haverei agora”.
5.
Por que razões o Escudeiro quer casar com Inês?
O Escudeiro, como é um homem
pelintra, pretende casar com Inês por interesse económico: “Deixa-me casar a mi
/ depois eu te farei bem.”
Por outro lado, deseja desposá-la,
porque se trata de uma jovem provinciana e, provavelmente, ingénua, sendo-lhe,
portanto, mais fácil dominá-la: “Moça de vila será ela”; “como burra de Castela”.
6.
Caracterização do Escudeiro
O diálogo entre Brás da Mata e
Fernando mostra-nos o verdadeiro caráter do Escudeiro e a sua real situação
económica. A sua caracterização pode ser feita a partir de duas situações.
•
Forma como se refere e retrata Inês antes de a conhecer:
- desconfiado / cético: duvida do que os
Judeus lhe disseram sobre Inês;
- é hipócrita e dissimulado: troça de Inês
quando não é ouvido por ela, mas elogia-a quando fala com ela;
- astuto, trocista e desdenhoso: “cumpre-me
bem atentar / se é garrida, se honesta”; “Moça de vila será ela / com
sinalzinho postiço”.
•
Relação com o Moço:
- é falso e mentiroso: “E se me vires mentir
/ gabando-me de privado”;
- é cínico, pretensioso e dissimulado
(pretende ser íntimo do rei);
- é arrogante e autoritário: “Aviso-te que
hás de estar / sem barrete onde eu estou”;
- é pobre: o estado do calçado e do vestuário
do criado evidenciam-no (“Que farei, que o sapateiro / não tem solas nem tem
pele?”);
- é calculista, oportunista e ambicioso:
pretende viver à custa da mulher;
- é manipulador (“faze-o por amor de mi”).
7.
Figura do Moço
• Papel: desmistificar a personagem do
Escudeiro através dos seus apartes, nomeadamente a pobreza, bem patente no seu
próprio calçado e vestuário.
• Qual é a sua reação às falas do Escudeiro?
1. Submete-se às ordens de
Brás da Mata e cala-se.
2. Critica, de forma irónica,
as atitudes do dono, através dos apartes.
3. Denuncia a pobreza do
Escudeiro.
• Caracterização
Nesta sua aparição inicial, o Moço
revela-se crítico e irónico nos apartes que vai produzindo, denunciando, assim,
a pelintrice do seu amo. Por outro lado, mostra-se sensato, visto que não se
deixa impressionar pelas promessas do Escudeiro [“(Homem que não tem nem preto,
/ casa muito na má hora.)”].
8. Cómico
1.
De caráter: a figura do Escudeiro, mentiroso, falso,
dissimulado, pelintra.
2.
De linguagem:
- a ironia do Moço, desmascarando a
pelintrice e o caráter do Escudeiro;
- as falas trocistas do Escudeiro sobre Inês:
“Moça de vila será ela / com sinalzinho postiço, / e sarnosa no toutiço, / como
burra de Castela.”
9. Crítica
Neste diálogo, Gil Vicente inicia o
processo de crítica que recai sobre Brás da Mata, o tipo do escudeiro pelintra,
mentiroso, dissimulado e oportunista que procura no casamento uma forma de
sobrevivência e subsistência.
Atentemos nas palavras de Maria
Leonor da Cruz (in Gil Vicente e a sociedade portuguesa de quinhentos.
1990. Lisboa. Gradiva, p. 135): «Se o culto das aparências domina em particular
aquele estrato social que, devido às mutações socioeconómicas que a sociedade
portuguesa atravessa e à sua incapacidade de adaptação, a novos moldes, se
encontra em decadência económica, mas procura manter um modo de vida faustoso,
de acordo com o prestígio que granjeia na sociedade, ele estende-se também […]
a camadas de escalão social inferior que com a fidalguia se pretendem identificar,
embora quantas vezes não tenham nem sangue nobre nem disponibilidades
financeiras para tanto.
O prestígio e o título de nobre
continuam a ter, de facto, um peso preponderante na sociedade da época, a que
se alia um modus vivendi de sumptuária, real ou fictício, para obtenção
do qual muitos se mobilizam.»
Já nas palavras de António José
Saraiva e Óscar Lopes (in História da Literatura Portuguesa. Porto
Editora), o escudeiro «É tipo insistente nos autos vicentinos […], género de
parasita ocioso e vadio […]. O Escudeiro imita os padrões da nobreza, toca
guitarra, verseja, faz serenatas às filhas dos “oficiais mecânicos”,
pavoneia-se de bravo e cavaleiro, espera o seu “acrescentamento”, que o
instalará de vez na nobreza. Mas não trabalha, passa fome estreme, tem medo, é
corrido sob a chuva de insultos da mãe da pretendida, que o aconselha a
aprender um ofício para não morrer à míngua.”
De facto, no tempo de Gil Vicente,
os escudeiros eram uma classe social desprestigiada, embora com ideias de grandeza.
De facto, Brás da Mata apresenta-se como alguém importante, conhecido do rei,
mas, na realidade, é um pobretanas cujo Moço usa calçado roto que ele não pode
reparar, que não tem dinheiro e espera obtê-lo por meio do casamento.
Deste modo, a sátira que Gil Vicente
constrói a partir da figura deste escudeiro centra-se no contraste entre o que
ele presumia e queria aparentar ser e o que era na realidade.
10.
Linguagem
. Comparação: “Como
burra de Castela” (sugere a ingenuidade o provincianismo de Inês, que, na
cabeça do Escudeiro, seria fácil de dominar).
. Provérbio: “Homem
que não tem nem preto, / Casa muito na má hora.” (= quem não tem dinheiro não
devia casar.)