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quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Análise do capítulo II de O Cortiço

     Apresentação de Miranda e sua família, caracterizados sempre pela negativa.

         Miranda: referência à sua relação com a mulher e com Romão. Sente inveja de Romão, porque o vê crescer à força do trabalho, enquanto ele enriquecera à custa de um casamento de uma mulher que o trai. No final do capítulo, mostra que tem ambições diferentes de Romão e que são o fulcro da sua vida: ascensão ao baronato.

        D. Estela: caracterização explícita e implícita, quando é encontrada no jardim com Henrique.

        Henrique: hóspede da família.

        Criados: Valentim, Isaura, Leonor.

        Zulmira: filha de Miranda e de D. Estela.

        Botelho: é visto como um parasita que não pertence à família, mas que se integra na sordidez resultante da caracterização das personagens. São importantes as metáforas, que visam a sua caracterização. É importante a relação que estabelece com as outras personagens. Miranda vê-o como amigo e a ele confia as suas misérias e o mesmo acontece com os outros. Ele conhece as fraquezas de todos. O seu retrato é ainda mais negativo, pois partilha a sordidez de todas as outras personagens. Tem, por isso, um papel importante no romance.

Análise do capítulo I de O Cortiço

     Apresentação de três personagens importantes:

        => João Romão: é a esta personagem que se deve o aparecimento do cortiço. Descreve-se a sua ascensão, que se pauta pela ambição com vista a uma situação futura. Todas as suas privações visam o seu enriquecimento futuro. Mas a sua atitude é dinâmica e evolutiva, porque o conduz a uma produção acelerada de riqueza.
    A descrição do espaço e suas ações visam a sua caracterização, surgindo assim um retrato bastante completo e individualizado.
    Ele leva Bertoleza a confinar em si e a sua ligação intensifica-se, sobretudo a partir da cena da alforria. Mas a ajuda à escrava não é desinteressada; ele faz uma burla, cujo objetivo é sacar-lhe o dinheiro. Este facto vai ser fundamental no final. Todos os factos referidos, por mais insignificante que pareçam, têm sempre uma função.
    A economia, o trabalho e a esperteza são aspetos positivos, mas que em Romão são negativos e fundamentais na sua caracterização. Este primeiro capítulo é uma iniciação à sua caracterização, que irá ser constante ao longo da obra.

        => Bertoleza: tem uma caracterização mais positiva, pois foi enganada e tem atitudes mais altruístas.
    É típico de Aluísio de Azevedo o recurso a um certo tipo de vocabulário e comparações com animais, o que dá a ideia de sordidez.
    Mesmo antes de se ligar a João Romão, era muito trabalhadeira, pois tinha que pagar a renda ao seu senhor e queria pagar a sua liberdade. Mas o seu trabalho forçado vai continuar após se ligar a Romão: "Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada e de amante." Agora trabalha por dedicação e em função do homem a quem se sente agradecida e ligada. Este par (Romão e Bertoleza), em que o trabalho sem descanso é a marca fundamental, é bem o exemplo desse mundo sórdido. Mas o caráter de Bertoleza é diferente do de Romão, que faz tudo por interesse económico, enquanto ela age por dedicação.
    Esta caracterização positiva de Bertoleza mantém-se inalterada. Ainda em relação a Bertoleza, há um outro elemento fundamental e que abrange quase todas as mulatas e negras do romance: veem o branco como forma de ascensão social; o negro ainda era sinónimo de escravo: "Ele propôs-lhe morarem juntos e ela concordou de braços abertos, feliz em meter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua."

        => Miranda e D. Estela: embora pertençam a um estatuto diferente de João Romão, a personalidade básica é a mesma. Romão ascende pelo trabalho; Miranda ascende através do casamento.
    Toda a caracterização deste par passa por aspetos do foro íntimo, de caráter sexual, onde se manifesta a sordidez de caráter, pelo desvio à norma.
    Há um dado novo que aparece na literatura brasileira e que não é comum em Machado de Assis (onde aparece o adultério de modo subtil): o comportamento sexual e o adultério são expostos de modo explícito e de forma sórdida. Daí a frequente comparação com animais.
    Temos, assim, de um lado Romão e Bertoleza e, do outro, Miranda e D. Estela, que pertencem a classes diferentes, mas com a mesma caracterização sórdida.
    A caracterização individual é acompanhada por uma caracterização de relação. Por exemplo, o modo como Romão se relaciona com Bertoleza pauta-se pelo desvio. Temos também a relação entre Miranda e Romão e a relação de Romão com as pessoas que habitam o cortiço e de quem ele se aproveita e explora. São relações que se pautam sempre pela negatividade.
    A visão do cortiço, além de provocar uma relação de causa-efeito, é uma visão sórdida. Todos os elementos têm uma função explícita. A descrição é um processo usado para a caracterização dos espaços e dos ambientes.

Contexto literário de O Cortiço

     O Cortiço é uma obra que se insere já no Naturalismo, que é uma corrente que procura cultivar a cientificidade.
    Machado de Assis fugia já ao Realismo, por causa da sua personalidade e referências ao leitor. Mas mais se afasta do Naturalismo, que tinha objetivos ainda mais científicos. O Naturalismo acaba por mostrar uma vertente diferente do Realismo. Os seus princípios não eram muito digferentes; ambos procuravam a objetividade. Mas tirando isto, há vários aspetos que os separam. O Naturalismo é como que uma mutação do Realismo:
        => O Realismo mostra uma visão neutra do homem; o Naturalismo traz consigo o romance experimental, que mostra o homem como o resultado de três elementos fundamentais: raça, meio e momento (Taine).
            => O alto grau de perfeição da ficção em Machado de Assis, vai ser substituído no Naturalismo por outros aspetos, como a necessidade de provar as teses apresentadas. Temos, assim, o drama de tese que aparece no Naturalismo devido à necessidade de explicar as causas e os porquês de determinadas atitudes e comportamentos.
    Paul Alexis, em relação ao Naturalismo, diz: "O Naturalismo é um método de pensar, ver, refletir, estudar, experimentar; uma necessidade de analisar para saber, mas não uma maneira especial de escrever."
    A qualidade ficcional é sacrificada a outros elementos fundamentais no Naturalismo.
            => O Realismo pautava-se por uma escrita económica, onde a personalidade das personagens estava implícita, insinuava-se; no romance experimental, não há essa economia. Há uma explicação explícita dos comportamentos, que se tornam mais evidentes quanto menor é o freio da educação, o condicionamento.
            => Personagens e sua classe social:
                    * O Realismo trata personagens da classe bueguesa.
                    * No Romantismo, privilegiam-se personagens da alta burguesia e da 
                        aristocracia.
                    * No Naturalismo, temos a escolha das classes mais baixas, porque estas
                        estão mais sujeitas às influências da raça, do meio e do momento. Há,
                        ainda, personagens pertencentes à burguesia, sobretudo mulheres, a
                        respeito das quais se fala em casamento por conveniência e adultério. A
                        sujeição ao casamento e à religião conduze-as à traição. Já em Machado
                        de Assis temos esta temática, mas aqui com maior incidência.
    Dentro das características do drama de tese, do romance experimental, temos O Cortiço, onde as personagens passam por um processo de transformação.

Obras de Aluísio de Azevedo

 
  • Uma Lágrima de Mulher, romance, 1879
  • Os Doidos, teatro, 1879
  • O Mulato, romance, 1881
  • Memórias de um Condenado, romance, 1882
  • Mistérios da Tijuca, romance, 1882
  • A Flor de Lis, teatro, 1882
  • A Casa de Orates, teatro, 1882
  • Casa de Pensão, romance, 1884
  • Filomena Borges, romance, 1884
  • O Coruja, romance, 1885
  • Venenos Que Curam, teatro, 1886
  • O Caboclo, teatro, 1886
  • O Homem, romance, 1887
  • O Cortiço, romance, 1890
  • A República, teatro, 1890
  • Um Caso de Adultério, teatro, 1891
  • Em Flagrante, teatro, 1891
  • Demónios, contos, 1893
  • A Mortalha de Alzira, romance, 1894
  • O Livro de uma Sogra, romance, 1895
  • Pegadas, contos, 1897
  • O Touro Negro, teatro, 1898

Biografia de Aluísio de Azevedo

    Aluísio de Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís do Maranhão, a 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
    Aluísio de Azevedo era filho do vice-cônsul português, David Gonçalves de Azevedo, e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e o irmão mais novo do comediógrafo Artur Azevedo. A sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português, porém o temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. A seguir à separação, D. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo pela sociedade maranhense.
    Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo, revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar as personagens dos seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur, e matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Passou a ganhar a vida fazendo caricaturas para os jornais da época, como, por exemplo, O FígaroO MequetrefeZig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
    A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Aí, começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajudou a lançar e colaborou com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres se mostravam contrários a ela. Em 1881, Aluísio lançou O mulato, um romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. Todavia, a obra teve grande sucesso, foi bem recebida na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde regressar ao Rio de Janeiro, para onde embarcou em 7 de setembro de 1881, decidido a triunfar como escritor.
    Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar os seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu uma nova preocupação no universo do escritor: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e a sua exploração pelos imigrantes, principalmente os portugueses. Dessa preocupação resultariam duas das suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895, escreveu, sem interrupção, romances, contos e crónicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
    Em 1895, ingressou na carreira diplomática, momento em que praticamente encerra a sua atividade literária. Inicialmente, foi colocado em Vigo, na Espanha, seguindo-se o Japão, a Argentina, a Inglaterra e, por último, a Itália. Nesse período de tempo, passou a coabitar com D. Pastora Luquez, uma senhora de nacionalidade argentina, juntamente com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1. classe, sendo transferido para Assunção. A capital da Argentina, Buenos Aires, foi o seu último posto, e nela faleceu aos 56 anos, tendo sido aí sepultado. Seis anos depois, graças a uma iniciativa de Coelho Neto, o seu corpo foi transferido para S. Luís do Maranhão, onde lhe foi dada a sua última morada.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Análise do conto «Missa do Galo», de Machado de Assis

     Este conto foi escrito cerca de dez anos depois de «Noite de Almirante» e «A Cartomante», daí que a técnica deescrita seja diferente. O discurso de Machado de Assis ganha maior perfeição.
    Este conto tem características específicas que resultam da quase inexistência de ação; relata apenas as impressões de um momento, sentidas pelo narrador, que é também personagem. Por isso,é homodiegético e autodiegético e tem uma relação mais estreita com a gistória do que nos contos anteriores.
    Aquilo que o narrador conta passou-se em 1861-62, numa noite de Natal, quando ele tinha 17 anos. Não nos é dado o tempo que medeia entre o facto acontecido e a sua narração. Mas em 1861, o «eu» personagem era um estudante vindo da província para continuar os seus estudos na grande cidade. Era ingénuo e sem qualquer experiência de vida. O «eu-narrador», pelo contrário, é mais maduro e experiente. É esta oposição que marca o conto e torna difícil para nós percebermos se estamos a ver as coisas pela visão dapersonagem ou do narrador. Fica-nos a dúvida de saber se esta visão é uma visão ingénua da personagem de 17 anos ou umavisão irónica do narrador. Isto resulta sobretudo da sobreposição de dois tempos ao mesmo narrador. A duplicidade nunca é resolvida e o conto oscila sempre entre a ingenuidade e a ironia. Muitas vezes, o lembrar-se do que se passou é do narrador, mas a forma como se lembra é da personagem de 17 anos.

    Linguagem

    Machado de Assis é muito influenciado pelo Impressionismo: nunca nos dá os contornos muito claros daquilo que escreve e da linguagem que usa.
    O Impressionismo, no seu início, tendia para um certo cientificismo e racionalismo. Depois é que se começou a tornar mais subjetivista.
    Assis, ao não dar os contornos nítidos do que narra, é fiel à sensação que tem das coisas. O próprio tempo surge-nos como impressão e, por isso, os factos e as personagens não nos aparecem muito nítidos, tal como a impressão não é clara.
    O Impressionismo tinha um objetivo realista e hoje estamos muito longe do que era esse Impressionismo nas suas origens, quando era uma técnica usada na literatura, pintura e escultura.
    Alguns aspetos que resultam desse Impressionismo são:
  • relação texto-tempo-narrador;
  • o foco / núcleo não está no objeto, mas na forma como o objeto é recebido (ex.: descrição de Conceição é feita a partir da forma como foi apreciada naquela noite);
  • relação objeto-sujeito;
  • caracterização do narrador.
    Estes são os elementos que concorrem para o Impressionismo no discurso de Machado de Assis.

    Tempo

    O tempo é uma categoria muito importante. Temos vários tipos de tempo:
  • tempo histórico: muito curto (cerca de 30 minutos);
  • tempo narrativo: ocupado pelo diálogo entre Conceição e o eu-personagem, que é o núcleo do conto. É muito alongado, porque é movido pela dimensão psicológica, pelo ritmo da vida interior das personagens.
    O final do conto é rápido e frio. O contraste é importante, porque corresponde ao objetivo do narrador: alongar a cena que, para ele, é mais importante e referir o resto apenas de passagem. O diálogo é também muito importante e leva-nos a tirar algumas conclusões sobre Conceição, que desaparecem no dia seguinte.

    Personagens

        => Nogueira: veio do interior para o Rio de Janeiro; é um provinciano ingénuo, o que podemos deduzir do seu comportamento e discurso. Era ainda muito jovem, pois ainda lia Dumas, e romântico, pois gostava de romances como Moreninha.
    A atitude para com Conceição é de respeito, mas o que principalmente o caracteriza é a sua forte sugestibilidade, ou seja, tem uma personalidade facilmente impressionável.
    Há uma constante dualidade entre o narrador e o eu-personagem e esta manifesta-se quando se levantam hipóteses em relação a Conceição. É difícil saber se são do narrador ou do eu-personagem. Estas hipóteses são geralmente seguidas de refutação.
    A ligação entre as atitudes de Conceição e o estado de Nogueira é fundamental no conto. Ele vai passar por uma evolução gradativa em relação a Conceição:
  • "Sendo magra, tinha um ar de visão romântica...";
  • "Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular.";
  • "... naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande.";
  • "E não saía daquela posição que me enchia de gosto...";
  • "... em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima.";
  • "Concordei... para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos".
    As atitudes de Conceição surgem como elemento que vai causar a modificação psicológica de Nogueira. Mas a personalidade desta figura acaba por se apagar perante Conceição.
    
        => Conceição: há um contraste entre uma situação e um comportamento inicial de Conceição e o seu comportamento naquela noite. Sofre uma total reviravolta.
    O seu aparecimento passa por algumas fases: rumor, passos e aparecimento. Dela são focados os comportamentos e atitudes que surpreendem, pelo hábito que Conceição tinha imposto. São também focados os elementos que intensificam a impressão que Nogueira tinha dela.
    O discurso dileto livre é um processo realista que Machado de Assis explorou ao máximo.
    No ambiente criado por ambos, o Impressionismo é fundamental. Só nos são dadas as impressões e daí da ideia de vazio que fica do diálogo de ambos. Ao momento de exaltação, segue-se um ambiente calmo, de "sono magnético", que é significativo.
    O que se passa na manhã seguinte mostra que o comportamento dele fora condicionado pelas atitudes dela. O final é contrastante, quer pelo tempo que ocupa, quer pela situação. O tempo psicológico que alongou a narrativa é encurtado no final.
    O próprio narrador não consegue explicar o que se passou naquela noite. São narrados de modo minucioso o diálogo e as impressões, mas as causas e as consequências nunca são explícitas.
    Em relação a Conceição, mostra-se que a sua passividade é diferente de incapacidade. Durante uma escassa meia hora, ela revelou a capacidade de sedução que uma mulher tem quando quer. Há, nesta personagem, o contraste entre um íntimo sedutor e insinuante e um exterior passivo.
    O conto pode resumir-se a isto: instante de intimidade entre duas pessoas, onde o comportamento novo de uma tem reflexos na atitude da outra.

        => Conclusões:

            1. Ironia e desconcerto: processos muito usados por Machado de Assis.

            2. Possibilidade de mutabilidade da pessoa humana (ex.: Genoveva).

            3. Sobreposição de personalidades.

            4. Insegurança moral e angústia que dela resultam (ex.: Cartomante, Camilo).

            5. Falsa sensação de perenidade em relação ao amor: o amor é tratado não na fase da
                 paixão, nem na fase calma, mas no meio termo. Para ele, a paixão é muito negativa.

            6. Gosto do que resta, da cinza. O próprio Impressionismo mostra o gosto por tudo o
                que fica: o amor passa, ficando apenas a angústia de quem foi magoado.

            7. Redução de valores: não há o jogo ou a exceção, mas aquilo que existe de facto. O
                diálogo, algo tão banal no conto "Missa do Galo", é bem aproveitado e nele se
                chega a encontrar uma certa singularidade. É a procura da valorização do que é 
                mínimo, que caracteriza Machado de Assis e o seu microrrealismo, que é precisa-
                mente o gosto pelo mínimo, pelo que está escondido. É a busca de essências no
                comum. Machado de Assis tirou o maior partido estético deste processo. O tempo psi-
                cológico, tão importante no conto, resulta precisamente da associação tempo-micro-
                realismo.

            8. Maleabilidade do tempo (tempo psicológico). As próprias reflexões sobre o tempo são
                o leit-motiv da sua obra; o tratamento do tempo influi de forma decisiva na estrutura
                dos seus contos.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Análise do conto «A Cartomante»

     Tema: traição / adultério, temas comuns em Machado de Assis e preferidos do Realismo.

    Espaço: Machado de Assis é um autor essencialmente urbano e a referência às ruas do Rio de Janeiro é importante, pela relação que se estabelece entre o espaço e as personagens:
        => Bota-Fogo, bairro rico onde habitam Vilela e Rita;
        => Largo da Carioca, onde ficam as repartições públicas;
        => Rua dos Barbonos, onde se davam os encontros de Camilo e Rita;
        => Outras ruas com altos índices de prostituição. As ruas e os ambientes ajudam a definir
              as personagens.

    Tempo: é uma categoria que tem grande importância. O tempo da narrativa apresenta-se em fragmentos.
    Quando o conto começa, estamos "numa sexta-feira de novembro de 1869", temos depois uma analepse rápida e a seguir retoma-se a história, que tem como centro o desfecho, importante pelo inesperado e pelo contraste que se estabelece, sobretudo em relação a Camilo: ao sair da casa da cartomante, ele vai confiante e esperançoso de que tudo acabará bem, mas o final é bem diferente e trágico:
            "Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror, ao fundo sobre o canapé,
            estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola e, com dos tiros de
            revólver estoirou-o morto no chão."
    O tempo pode ser cronológico: sucessão de eventos, que é possível inserir num tempo real e datar; ou psicológico, tempo filtrado pela vivência subjetiva das personagens.O tempo psicológico acaba por alongar o tempo narrativo. De facto, o tempo da história será mais longo se for condicionado por um tempo psicológico, quando os eventos são filtrados pela subjetividade das personagens. O tempo do discurso pode estar sujeito a mecanismos de analepses ou prolepses, escolhidos pelo autor, de acordo com as suas intenções.

    Ação: esta é uma categoria fundamental nos contos de Machado de Assis. Neste conto, a ação é mínima e muito simples; resume-se a pequenos passos:
                    - encontros de Camilo e Rita;
                    - ida de Camilo à cartomante;
                    - morte de Rita e Camilo.

    Personagens:
        => Rita: caracterizada indiretamente ou diretamente, de foma sintética. A descrição física não e muito pormenorizada: "dama formosa e tonta"; "era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa" (caracterização direta sintética).
    A caracterização é dada pelos comentários do narrador ou através de factos e atitudes:
  • é supersticiosa e talvez não muito culta;
  • comparada a uma serpente que envolve e não deixa escapar a presa. Isto coloca-a numa situação ambígua e podemos perguntar se não será ela a culpada de tudo que perdeu Camilo.
        => Camilo: a sua caracterização é feita ao longo do conto, envolvido por uma longa ironia: é uma pessoa sem crenças, ingénua que se deixa envolver e acomodar e não acredita em nada. Todas as características são enunciadas com grande ironia e é este facto que o leva a seguir as pisadas de Rita, consultando também a cartomante. É o medo que o leva a isto e depois sente o sossego. Há uma contradição só possível no espírito fraco e ingénuo de Camilo.

        => Vilela: praticamente não é retratado, mas é da maior importância, pois é a sua ação que marca o final do conto. Resolve as coisas de modo prático e frio: mata os dois amantes.

        => Cartomante: é a personagem mais enigmática e nela está a maior ironia: Rita e Camilo não estavam sossegados em relação à sua ligação. Então, Rita resolve ir à cartomante e fica sossegada e segura. O mesmo se passa com Camilo, mas a sua segurança élogo confrontada com a morte de ambos. Tudo o que Machado de Assis pensa do amor está representado nesta mulher: oposição entre segurança e morte. Ela é a síntese da crençaque constitui a crítica do autor.

    Machado de Assis é muito cético em relação à religião e ao amor: o amor faz as pessoas perderem totalmente a razão. Assim se integram no Realismo. O seu realismo resulta ainda de:
  • uso de frases curtas e frias;
  • objetividade no uso do vocabulário;
  • linguagem filosófica e sentenciosa, sobretudo no campo amoroso;
  • linguagem também irónica: destrói todos os mitos do amor com a ironia, que se acentua no final do conto, marcado pelo inesperado e ironia, aspetos fundamentais em Machado de Assis.
    Há também crítica social à instituição das cartomantes, mas sobretudo crítica à segurança resultante da ida à cartomante. O objetivo mais eminente de Machado de Assis não parece ser a crítica, mas antes mostrar um sentimento pessoal perante as situações.

Análise do conto «Noite de Almirante»

     O discurso de Machado de Assis pauta-se pela ironia, pela coloquialidade na linguagem e, em relação ao enredo, há um clima de desconcerto. Este desconcerto vive de uma sucessão de contrastes. Deolindo e os colegas criam uma série de expectativas, que geram uma certa esperança, devido à jura de fidelidade. O clima de expectativa é aumentado pelo juramento.
    As expectativas criadas, o clima de segurança são radicalmente alterados. A primeira mudança revela-se com o anúncio que faz a velha Inácia, de que Genoveva tinha ido viver com José Diogo, logo todas as expectativas são goradas.
    Outro contraste apresenta-se no seguinte: quando recebe esta notícia, surge nele um desejo de vingança. Este desaba quando encontra Genoveva e ela o recebe, facto que cria de novo esperanças.
    O tema é a traição a um sentimento, a uma jura / um juramento, que aparece filtrada por um desconcerto. O tema da traição não é novo, mas torna-se invulgar pelos termos em que é abordado. Isto faz do conto um conto invulgar - aqui reside a sua especificidade.
    De que resulta o desencanto?
        = contraste
        = ironia
        = comentários do próprio narrador, que vêm do seu próprio estatuto.

    Qual o tipo de narrador?

    É difícil caracterizá-lo. Usa a primeira pessoa e participa do discurso, conhecendo a história. Mantém-se, no entanto, a um nível exterior, o que lhe confere uma certa objetividade perante aquilo que narra. Mas esta objetividade perde-se quando fala na primeira pessoa. Temos sempre dúvidas quanto ao tipo de narrador. Mas o tipo de narrador e o seu discurso são causas do desconcerto.
    A ironia é subtil, nomeadamente quanto ao comportamento de Genoveva: "Qualquer mestre de física lhe explicaria a queda das pedras." Ela não se apercebe de que está a provocar Deolindo. O seu comportamento é comparado às pedras.

    Estrutura do conto

    Grande parte do conto é ocupada com a criação de expectativas. De que modo se criam? Com o juramento, com os comentários dos colegas, com a esperança de Deolindo em relação à jura. Isto cria um clima de expectativas, que são ocupadas com uma analepse, que mostra como o relacionamento de Genoveva e Deolindo anteriormente era intenso. É de notar a distância que aparece entre convenções e atitudes e expectativas (agente: Deolindo) e quebras (agente: Genoveva).
    Há uma grande diferença entre Deolindo e Genoveva: um simboliza as convenções, outro as atitudes. O principal fator na criação de expectativas é o juramento, que dá uma certa dimensão em relação aos dois.
    A noção de juramento no contexto acaba por ser o núcleo do conto. Neste domínio, o juramento é o conjunto de convenções que se sobrepõem a sentimentos pré-existentes. Exige-se através do juramento algo que não existe.
    Será que se pode exigir o juramento de uma coisa como o amor? Existirá, em matéria afetiva, a exigência de cumprir algo?
    Esta questão provoca um certo clima de desconcerto entre uma pessoa que faz a jura e espera tudo (Deolindo) e outra que ignora totalmente (Genoveva). Há, pois, um desencontro de valores.
    O núcleo do conto é a validade do juramento num campo amoroso / afetivo.
    Machado de Assis é negativo em relação ao amor: não acredita em matéria afetiva, na relação amorosa entre duas pessoas.
    De certo modo, o conto acaba por ser uma alegoria. Recorre-se a convenções que, a todo o momento, são destituídas pela própria evolução e pela impossibilidade de exigências no campo afetivo. O conto representa uma história que tem como objetivo definir a inutilidade de recorrer a convenções num campo sujeito a modificações.
    Há, no conto, momentos determinados:
  1. Criação de expectativas, com as motivações de Deolindo.
  2. Quebra que começa com o diálogo de Deolindo com a velha Inácia. Daqui nasce o sentimento de vingança.
  3. No diálogo com Genoveva, há o reativar de esperanças que caem novamente por terra.
    Não há, em Machado de Assis, o amor-paixão: o que fica são cinzas, desilusão, indiferença, algo que não vale a nada.
    O conto vive quando há uma quebra de expectativas. O momento do conto em que há mais vivência é quando Deolindo recebe a notícia acerca de Genoveva por Inácia.

1.º momento:
    Deolindo surge confiante, facto que lhe confere uma caracterização positiva: na página 179, descreve-se Deolindo confiante; na página 185, Deolindo surge na praia cabisbaixo e triste.
    Há um contraste entre a imagem de Deolindo e Genoveva. Ela está inatingível: passa pelos acontecimentos e não os sente. Não há propriamente uma caracterização física, nem descrições, pois não são necessárias para a economia da história. A analepse é necessária à criação de expectativas. É o juramento que dá uma certa segurança e que justifica a atitude confiante de Deolindo.

2.º momento:
    Representa o primeiro desconcerto causado pela revelação da velha Inácia. Na sua descrição, há uma economia de meios. Inácia é importante, porque representa o bom senso (que Deolindo também partilha), a norma e a convenção.

3. º momento:
    Se o segundo momento representa o primeiro desconcerto, o 3.º é a totalidade do desconcerto. São as atitudes de Genoveva que funcionam como núcleo de desconcerto, opondo-se ao valor da convenção.
    Deolindo deixa a velha Inácia, que se sente culpada pela notícia que lhe deu. Apesar de tudo, o autor utiliza uma certa imagética romântica, com um objetivo irónico.
    Note-se a importância do acaso, que coloca Genoveva à janela no momento em que Deolindo passa e faz com que ela um dia acorde a gostar de outro. A calma e simplicidade de Genoveva desarmam Deolindo quando se encontram. Os comentários do narrador são objetivos. Há um crescer de esperança e emitir de raiva.

4.º momento:
    O último momento do conto corresponde ao crescer da esperança e ao diminuir da raiva. Mas cai novamente e o que fica é a desilusão. Isto advém da análise psicológica, característica fundamental de Machado de Assis. A análise psicológica é subtil, fundamental e não é explícita como na Senhora, de Alencar; é dada pelas atitudes e palavras das personagens. O desenvolvimento psicológico de Deolindo resulta da mistura do pensamento do narrador com os de Deolindo. Esta mistura é um processo inovador em Machado de Assis, constituindo o chamado discurso indireto livre (não se sabe quando são os pensamentos do narrador e da personagem). Este discurso está ao serviço da análise psicológica.
    A personagem que marca mais o desconcerto é Genoveva. A base de Deolindo é a convenção. A atitude frontal de Genoveva desarma Deolindo e o seu desejo de vingança.
    O narrador caracteriza Genoveva: pela simplicidade, pelo cinismo, insolência e pela leviandade. Estes são os seus predicados. É caracterizada de forma negativa. É realista em matéria de convenções e sentimentos; tem o valor verdadeiro das coisas: as coisas são o que são e não o que pensamos. Assume uma posição de descrédito em relação às convenções. Machado de Assis é um realista sobre as convenções.
    A única vitória que Deolindo tem é a sensação de ter dado um presente a Genoveva: os brincos. A outra verifica-se quando conta as suas histórias a Genoveva, que aos olhos da vizinha faz dele um pequeno herói. O seu último argumento é a chantagem emocional: matar-se. Pas perante a frontalidade de Genoveva nem isso tem efeito.

    Conclusões do conto:

    1. Inutilidade de convenções e palavras, perante um campo em que tudo é inconstante.

    2. Inocência de ambos: agem em coerência com o que sentem, com os valores que enformam a sua mentalidade. Deolindo acredita na convenção e espera que ela se cumpra. Genoveva não acredita na possibilidade de se exigir algo dessa convenção. Deolindo está mais próximo da convenção social, representada pelo juramento, pela mentira (final do conto). Genoveva representa a impossibilidade de obedecer a convenções. Ela não obedece a uma moral. Ela é amoral e não imoral, já que não reconhece a moral. Está perto da natureza, obedece a circunstâncias. Natureza opõe-se a convenção e não abdica dos seus sentimentos a favor das convenções.
    Uma característica de Machado de Assis em relação ao amor é a inutilidade de convenções e o tom cinza que fica.

Contexto social e político dos finais do século XIX e início do século XX no Brasil

Contexto social e político 

    Nos finais do século XIX e inícios do século XX, começa o Realismo no Brasil. O ambiente é de decadência social, de instabilidade política e social, em que surge um novo quadro: as classes médias urbanas, que se pautavam pela instabilidade e novos anseios.
    Tínhamos, por um lado, ideias liberais, abolicionistas e republicanas e ainda influências do pensamento europeu com o positivismo e evolucionismo.
    Todas as ideias vindas da Europa provocam uma alteração do quadro social e dos costumes. Começa a haver uma mescla de culturas no Brasil (característica da própria fundação), devido à densa emigração que se fazia para esse país.
    Em Portugal, vivia-se uma crise económica, por isso as pessoas emigravam para o Brasil, provocando uma alteração na sociedade e uma mescla de culturas. Daí o Brasil ter ainda hoje uma grande gama e diversidade de etnias.


Contexto literário

    O contexto social e político exerce grande influência no contexto literário. Os ideais liberais da classe média urbana, sobretudo os ideais políticos, as ideias positivistas e deterministas são importantes na conceção do romance realista.
    Assim, surgem características fundamentais no contexto literário:
  1. Oposição ao excesso sentimental do Romantismo.
  2. Aproximação do autor daquilo que narra, mas menos intensa no sentido da objetividade.
  3. Certo desencanto: todo o Realismo se pauta pelo desencanto, que já aparecia na obra Memórias.
    Na ficção, os romances de costumes impõem-se e, de certo modo, Memórias também era um romance de costumes, ao contrário de Senhora.
    O romance de costumes é típico do Realismo, logo há um aprofundamento dos costumes da época, em que o autor vivia. No Romantismo, tomavam-se temas distantes no tempo (ex.: Iracema).
    O Realismo pauta-se pelo estudo da realidade atual. No Realismo, os costumes são:
        - processo de ascensão da burguesia: surgem valores como a falsidade;
        - vida social e pública (aspetos negativos);
        - contraste da vida íntima, principalmente a aparência (o que se mostra e o que é na realidade).
    Estes são três tópicos importantes na análise de costumes da ficção realista. Para este estudo, procuram-se causas, quer naturais (clima e raça), quer culturais (educação). Grande parte dos processos têm origem na educação e no meio em que se insere a personagem. Passa-se de uma idealização típica do Romantismo para o domínio dos factos / factualidade tipicamente realista.
    A nível da estrutura, o romance realista tem características especiais:
  1. Diferente relação que se estabelece entre o escritor e a obra, que se pauta pela objetividade.
  2. Distanciamento do fulcro subjetivo.
  3. Aceitação da realidade tal como é percebida e não idealizada, como se observava no Romantismo.
  4. Recorrência ao tipo e à situação típica (já patente em Memórias). Bosi diz que o uso da situação típica é uma conquista do Realismo.
  5. Estruturação impessoal, que está relacionada com a aproximação do narrador à obra, apresentação de tipos, etc. Desta estruturação impessoal resulta um certo fatalismo e desencanto.
  6. Espera-se maior lógica na organização dos episódios. Se se pretende analisar o comportamento da personagem, ela tem que ser acompanhada continuamente. A situação de causa-efeito vai ser utilizada no Realismo de modo diferente: expõe-se uma tese e tenta comprovar-se. Mas o processo e os resultados são diferentes no Realismo. Há um certo determinismo no trabalhar das personagens. A causa-efeito que existe no Realismo é enformada pelo determinismo, que não aconteceria no Realismo.
  7. Maior rigor e objetividade na construção.
    Realismo e Naturalismo -» romance
    
    Parnasianismo -» poesia

    As características do realismo encontram-se também no Naturalismo. Este movimento separa-se do Realismo quando se submetem as personagens à lei natural, a um determinismo. Ambas as escolas literárias se ligam ao romance, enquanto o Parnasianismo se liga a uma poesia que cai na técnica de aperfeiçoamento técnico e estético. Há a procura da objetividade e rigor. De tal modo se procura a objetividade técnica e estética, que se cai no Parnasianismo.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

O Realismo na literatura brasileira

    Em Portugal, a ideologia subjacente é marcada pelo:
    => Irreligiosismo: agrada-lhes uma religião sem dogmas, de cunho panteísta. Assumem atitudes marcadamente anticlericais.
    => Inconformismo com a tradição: acreditam que a consciência humana não mais se importará com os entraves que lhe opunha outrora a sociedade absolutista, burguesa e feudal.
    => Supremacia da verdade física: as verdades metafísicas e morais são relegadas para o mundo das conjeturas.
    => Novas teorias filosóficas: a Geração de 70 estuda com avidez:
            - o idealismo de Hegel;
            - o socialismo de Proudhon;
            - o positivismo de Comte, etc.

    A estética literária tem as seguintes características:
    => Conteúdo ideológico profundo: a literatura devia inspirar-se nas correntes filosóficas e sociológicas modernas para exprimir a real problemática do homem da época.
    => Impassibilidade na análise do real: reage contra o idealismo e as atitudes emocionais enfáticas e hiperbólicas dos românticos e advoga a análise, síntese e exposição da realidade, com neutralidade de coração. Não dará nomes belos ao que é imoral e baixo, nem encobrirá as reais consequências do crime.
    => Crítica social e de costumes: olhavam o passado como estéril. Os realistas descobrem e atacam a imoralidade e os maus costumes. Esforçam-se por relacionar as causas (biológicas, sociais) do comportamento das personagens do romance com o tipo desse mesmo comportamento.
    => Técnica narrativa e descritiva perfeita: descrevem e narram de maneira que a obra literária não seja mais que um puro reflexo da realidade. Os escritores usam:
            - expressão simples
            - tom desafetado

    No caso do Brasil, no período do Romantismo, com José de Alencar e M. A. de Almeida, tínhamos a ficção: o romance fisiológico e de costumes. Esta narração dos costumes marcou o início do século XIX, porém, as coisas modificam-se e começa a notar-se a penetração de falsos valores.
    No Romantismo, havia um grande nível de idealização e com o Realismo esses véus idealizantes retomam tudo o que estava mal: na sociedade, na família, a nível político, económico e social.
    Para explicar o que estava mal, procuram causas: naturais (raça e clima) e sociais (meio e educação). O objetivo do Realismo era descobrir a verdade, através das causas que explicam um certo comportamento. Vão analisar os comportamentos, tentando descobrir as causas.
    Bosi (pg. 188) refere algumas afirmações de realistas franceses que mostram uma certa poética do Realismo:
  1. Flaubert: "Esforço-me por entrar no espartilho e seguir uma linha reta geométrica: nenhum lirismo, nada de reflexões, ausente a personalidade do autor."
  2. Jules e Edmond Concourt: "Hoje, quando o romance cresce e se amplia, quando começa a ser a grande forma séria, apaixonada, vida, do estudo literário e da pesquisa social, quando ele se torna pela análise e pela sondagem psicológica a história moral e contemporânea; hoje, quando o romance impôs a si mesmo os estudos e os deveres da ciência, ele pode reivindicar-lhes as liberdades e a franqueza."
    Estas afirmações são importantes para se observar como se entendia o Realismo na Europa.
    Tópicos principais destas citações:
        - conhecimento objetivo;
        - função do romance realista: este, mais que forma literária, é também histórica de costumes e análise social. Assim, as duas linhas de pensamento realista são:
                - procura da verdade;
                - análise de costumes.
    Muitos destes princípios vão ser mais desenvolvidos pelo movimento posterior: o Naturalismo, escola que se segue ao Realismo e leva certos aspetos ao exagero. Uma obra pertencente ao Realismo é O Cortiço, de Aluísio de Azevedo.

sábado, 21 de setembro de 2024

A escola do século XIX em imagens - XIX

André-Henri Dargelas, – A Volta do Mundo (c. 1860)

    André Henri Dargelas foi um pintor francês que se dedicou a representar, dentro dos cânones de um realismo académico avesso a rasgos vanguardistas, a infância. Aplicou-se a retratar com sensibilidade e mestria o quotidiano das crianças em casa, na escola ou na rua, em brincadeiras infantis. Mas o pendor realista da sua arte não o impediu de recorrer à subtileza, à ironia e à imaginação nas suas representações.
    É o caso desta pintura, que já foi apropriadamente descrita como uma feliz metáfora da infância cavalgando o mundo. Ela recorda-nos que a irrequietude e a irreverência das crianças não são, como muitas vezes se tenta crer, um mal desta ou daquela geração mas, pelo contrário, uma característica da própria humanidade. Aproveitando a ausência do professor na sala de aula, os miúdos dão azo à sua imaginação, inventando novas utilidades para instrumentos pedagógicos como este avantajado globo terrestre que, transformado em brinquedo, surge destacado no centro da pintura.
    É uma brincadeira, na verdade, prestes a ser interrompida pelo adulto, provavelmente o professor da turma, assomando à porta da sala. Mas brincar é, como dizem os psicólogos, das coisas mais sérias que as crianças fazem, pois é também, e acima de tudo, uma forma natural de aprendizagem. Há um fascínio infantil em fazer descobertas e inventar desafios. Em explorar o mundo com uma curiosidade insaciável, ainda que de forma simbólica, pois não se chega a sair da sala de aula. E é esse simbolismo que, de forma especialmente feliz, a pintura de Dargelas nos procura transmitir.

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Análise da cantiga "A lealdade da Bezerra, que pela Beira muit’anda"

    Esta cantiga satírica de mestria, da autoria de Aires Peres Vuitorom, é constituída por 42 versos, inicialmente ditados em versos curtos de sete sílabas, de acordo com a disposição dos manuscritos, no entanto Carolina Michaelis deu-lhe a forma de versos longos de quinze sílabas, mantendo, porém, um espaço ao meio do verso, correspondente à cesura, editando o poema duas colunas.
    A rubrica da composição poética classifica-a como uma cantiga de maldizer e contextualiza-a na época em que ocorreu a guerra civil (provavelmente foi composta na sua fase final) que opôs os irmãos D. Sancho II e D. Afonso, ou seja, cerca de 1247, ou talvez um pouco antes, provavelmente no círculo do Infante Afonso de Castela (o futuro Afonso X), que interveio no conflito em defesa de D. Sancho, tendo vindo em seu socorro, entrando com as suas tropas pela Beira. Concretamente, a rubrica identifica o objeto da sátira: um violento libelo contra os alcaides que entregaram os seus castelos ao Conde de Bolonha, o futuro Afonso II de Portugal, e a defesa do alcaide de Celorico, que se manteve fiel a D. Sancho II.
    O el-rei Dom Afonso referido na rubrica é o futuro Afonso III, segundo filho de Afonso II de Portugal e de D. Urraca de Castela, nascido entre 1211 e 1217. Como o legítimo herdeiro do trono era o seu irmão, D. Sancho, aquele decidiu viajar para França e colocar-se ao serviço de Luís IX (filho de Branca de Castela, sua tia) em 1234. Aí, Afonso destacou-se no campo militar, nomeadamente na batalha de Saintes, contra o rei inglês Henrique III. Ainda em França, casou com uma obre chamada Matilde, a viúva herdeira do condado de Bolonha (Boulogne-sur-Mer). Graças ao prestígio alcançado na corte francesa, para além da sua posição na linha sucessória, D. Afonso foi abordado por uma delegação de clérigos e nobres portugueses, após o seu irmão, o rei D. Sancho II, ter sido declarado rex inutilis, pelo papa Inocêncio IV, em 1245, tornando-se, nessa altura, «curador e defensor do reino», após jurar restituir a ordem pública e o respeito pelos direitos eclesiásticos. Deste modo, regressou a Portugal em 126 para travar uma guerra civil contra os partidários do irmão, que durou até 1248. A extensão do conflito ficou a dever-se ao facto de D. Sancho II manter apoios fortes entre setores da nobreza, bem como o do Infante Afonso de Castela.
    A guerra terminou definitivamente após a morte de D. Sancho II, em Toledo, onde se encontrava exilado, tendo Afonso III assumido o trono. Para pacificar a nação, depois da guerra civil a ter dividido de alguma forma, o novo rei liderou uma expedição contra o Algarve, concluindo a conquista do reino a Sul com a tomada de Faro em 1249, situação quês espoletará um conflito com Afonso X, que defendia ter direitos na região em virtude dos avanços castelhanos a oriente do rio Guadiana. A contenda terminou de forma favorável a Portugal, por meio da celebração de um tratado entre Afonso III e Afonso X, o qual previa o casamento do monarca português com Beatriz, filha bastarda do rei castelhano. Curiosamente, no momento em que foi celebrado o acordo, o soberano português ainda era casado com Matilde de Bolonha, facto que o Bolonhês terá descartado por causa dos seus interesses políticos, mas que só ficou solucionado alguns anos mais tarde, depois da morte da condessa. O reinado foi marcado por um reequilíbrio do reino e por algumas reformas administrativas, algumas das quais provocaram atritos com a alta nobreza. Morreu em, 1279, tendo-lhe sucedido D. Dinis, o seu primogénito.
    Exilado em Castela, um nobre português chamado Airas Vuitorom discordava do rumo político que Portugal tinha seguido após a deposição de D. Sancho II. De facto, o trovador fez parte de um grupo de nobres portugueses que se tinham exilado em Castela. Nesta cantiga, dirige-se, com fina ironia, contra os alcaides da Beira que haviam entregado os seus castelos ao Conde Bolonha, mais tarde D. Afonso III. Os nobres que se contavam entre os seus apoiantes, nomeadamente os alcaides, tinham-se rebelado conscientemente contra D. Sancho II, motivados unicamente pelos seus interesses. A rapidez com que Afonso III se assenhoreou desses castelos evidencia a cooperação dos alcaides, que não ofereceram qualquer resistência, até porque não era possível tomar um castelo de pedra a não ser através de um cerco prolongado. Toda a argumentação do trovador centra-se em mostrar que os alcaides traidores tinham quebrado os seus compromissos de fidelidade vassálica, traindo, assim, o ideal cavaleiresco da época, de nobreza. Deste modo, o trovador estrutura o poema na contraposição de modelos e contramodelos de vassalidade. Os contramodelos correspondem a Soeiro Bezerra e aos demais alcaides traidores, sendo cada um referido numa estrofe, indiretamente por meio da menção ao castelo que foi entregue (Leiria, Monsanto, etc.), ou nominalmente (Martins Dias, Airas Soga, etc.).
    Os dois versos iniciais do mote, profundamente irónicos, oferecem problemas de edição e interpretação. O primeiro faz referência à “lealdade da Bezerra”, isto é, ao alcaide Sueiro Bezerra e à sua família, que detinha a tenência de muitos dos castelos da Beira e que constituem as figuras centrais da cantiga, ou seja, os principais traidores. De acordo com esta interpretação, portanto, a expressão alude à linhagem dos Bezerras, por ser essa uma das famílias acusadas de traição que, neste caso, será mais a falta dela. Por outro lado, estará o trovador a enfatizar as nuances antroponímicas geradas pelo apelido Bezerra, como animal de caráter rebelde, arisco e simultaneamente inconsequente? Ou estará Airas Vuitorom a jogar com a figura bíblica da bezerra de ouro, símbolo da ganância? Por seu turno, José D’Assunção Barros (in A cantiga como armadura de guerra…) associa o nome «bezerra», no segundo sentido, à bezerra enquanto animal que simboliza a cobardia. E como ler a expressão “pela Beira muito anda”? Por um lado, estamos perante um topónimo que constitui uma referência geográfica – a Beira (atualmente, é uma região portuguesa do centro nordeste interior, cuja capital é Viseu; na época, porém, o termo designaria mais especificamente a zona portuguesa de fronteira com Leão e Castela) – à zona do país onde se sitiavam os castelos de resistência a tomar pelo Conde. Por outro lado, será sinónimo de «andar à beira de», «andar nos limites», ou seja, na marginalidade vassálica. Seja qual for a interpretação, a Beira era, de facto, a região de Portugal onde ocorreram as traições vassálicas.
    O segundo verso abre com o uso irónico do plural «nós»: “bem é que a mantenhamos». Na segunda parte do verso, o trovador introduz uma outra ideia central da composição poética: a crítica à interferência da Igreja, do Papado, em assuntos temporais: “A lealdade da Bezerra, que pela Beira muit’anda, / bem é que a mantenhamos, pois que no-lo Papa manda.”. Antes de prosseguir a análise, convém recordar que a edição e fixação destes dois versos levanta problemas, o que tem dado azo a leituras muito diversas. Neste texto, é seguida a edição presente no sítio https://cantigas.fcsh.unl.pt/: “A lealdade da Bezerra, que pela Beira muit’anda, / bem é que a mantenhamos, pois que no-lo Papa manda.”. Porém, existem outras: “À lealdade da Bezerra que pela Beira muito anda / ben é que a nostr’adenhamos, pois que no-lo Papa manda”; “A lealdade da Bezerra pela Beira muito anda: / bem é que a nostra vendamos, pois que no-lo Papa manda”.
    Regressando à análise da cantiga, o nome maiusculado «Papa», que surge no final do verso 2, refere-se a Inocêncio IV, o qual, em 1245, assinou a bula de deposição de D. Sancho II, intitulada Grandi non immerito, que o declarava rex inutilis. Com efeito, na guerra civil iniciada em 1245, a Igreja fora uma das responsáveis diretas pela ascensão de Afonso III ao trono, visto que, na esteira das determinações do Concílio de Trento, era permitido ao poder eclesiástico interferir no poder temporal, daí Inocêncio III ter nomeado o Conde de Bolonha «curador de Portugal». Os alcaides traidores que entregaram os seus castelos ao Bolonhês argumentavam precisamente que preferiam ser fiéis à Igreja do que ao rei deposto por receio de excomunhão, como o trovador explicita na oitava estrofe: “melhor é ser traidor, que morrer excomungado”. Por outro lado, esses alcaides traidores defendiam-se das acusações, aludindo à própria fundação de Portugal. De facto, aquando da constituição do reino, D. Afonso Henriques, para assegurar, com o beneplácito da Igreja, a autonomia, legitimidade e independência de Portugal, recém-formado, tinha prestado homenagem vassálica (homenagem lígia) ao papa Inocêncio II em 1143, acabando por ser reconhecido como rei português pelo papa Alexandre III em 1179, através da bula Manifestis probatum. Seguindo esta linha de raciocínio, o papa era o «senhor lígio» do reino, pelo que todos os portugueses deviam à Igreja uma fidelidade maior do que ao próprio rei. Sendo assim, aceitar a determinação do papa acerca de D. Sancho II e do Conde Bolonha não constituía qualquer traição ao código feudo-vassálico; pelo contrário, tratava-se de o respeitar no contexto da homenagem lígia. O argumento enunciado nas linhas anteriores está implícito nalguns versos da cantiga: “pois que no-lo Papa manda” – v. 1; “dade o castelo ao Conde, pois vo-lo manda o Papa”.
    No terceiro verso, o trovador nomeia diretamente Sueiro Bezerra, acusando-o de ser traidor (“que tort’é”) por “vender Monsanto”, uma metáfora que denuncia a entrega do castelo que lhe tinha sido confiado em Monsanto a D. Afonso III sem qualquer resistência. Sueiro Bezerra era filho de Gonçalo Viegas de Ribadouro e de uma senhora chamada Teresa, o que fazia dele descendente de uma das maiores linhagens portucalenses. Tinha quatro irmãos, entre eles, Gonçalo Bezerra, que D. Pedro define como “mui boo cavaleiro”. Sueiro Bezerra é citado nas Inquirições de 1258 e 1288, enquanto detentor de propriedades ligadas à quintã que possuía no termo de Tarouca. O verso está escrito em latim (é uma citação das palavras que, no Evangelho de S. Mateus, Jesus disse a Pedro): “Quen tu legares en terra erit ligatum in celo” (“O que tu ligares na terra será ligado no céu”). No entanto, na cantiga, essas palavras constituem uma alusão irónica aos laços que uniam um vassalo ao seu senhor. A afirmação de Sueiro Bezerra, em discurso direto, forma o argumento por si apresentado para negar que a entrega do castelo em Monsanto corresponda a um ato de traição: “por en diz ca nom é torto de vender hom’o castelo”.
    O uso de latim – por vezes macarrónico – na cantiga serve os propósitos bem definidos do trovador. De facto, a inserção da sentença latina dos versículos bíblicos, presente em todas as coplas, constitui a forma como a Igreja legitimaria os atos dos alcaides e a assunção do novo poder em conformidade com as determinações do Concílio de Lyon, que determinava a obediência ao «nobre conde de Bolonha». Os argumentos esgrimidos pela Igreja foram cuidadosamente moldados às suas intenções e assentes em premissas viciadas, o que os tornaria inválidos. Por outro lado, convém ter presente que o latim era a língua usada na escrita de textos eclesiásticos, pelo que o seu uso constituía uma forma de ironizar a Igreja e de questionar o monopólio da mesma quanto ao sagrado, além de dar nota da sua própria erudição. Além disso, o uso do discurso direto em latim isola a argumentação da alta hierarquia eclesiástica a favor dos atos de traição. Note-se, ainda, que toda a cantiga é um desfile irónico de situações e personagens, que se sucedem umas às outras, na defesa maliciosa das opções dos alcaides e das deliberações pontifícias sobre e entrega do governo ao futuro Afonso III. Dessa galeria, constam, como veremos, o Papa – personagem invocada no texto quatro vezes –, um arcebispo, um bispo e dois prelados, bem como os alcaides de Monsanto, Marialva, Leiria, Faria, Santarém, Covilhã, Sortelha e Sintra.
    O verso 7 (que forma uma anáfora com o anterior: “Por en”) refere a entrega de outro castelo, o de Marialva, situado na Mêda, distrito da Guarda. Como argumento de defesa contra a acusação de traição, surge nova citação latina, em discurso direto, dita pelo arcebispo, certamente o de Braga, D. João Viegas de Portocarreiro, uma das figuras centrais no processo de deposição de D. Sancho II: “ – Estote fortes in bello et pugnate cum serpente.”, isto é, “permanece firme na guerra e luta com a serpente” (a serpente é a metáfora do Mal). Ora, estas palavras dizem exatamente o contrário daquilo que o alcaide teria feito. A ironia prossegue no verso 10, pois é a partir dessa citação em latim que o alcaide nega ter cometido um ato de traição e ser mentiroso: "por en diz que nom é torto quem faz traiçom e mente”.
    O visado seguinte é o alcaide de Leiria, Martim Fernandes de Urgeses, anterior alcaide da Guarda. Ele era filho de Fernão Peres de Urgeses e de Teresa Martins de Riba de Vizela e descendia de uma pequena linhagem ligada por laços de vassalagem aos Riba de Vizela e à coroa por vínculos de criação. Foi casado, em primeiras núpcias, em 1244, com Chamoa Gomes, filha do alcaide de Celorico, Gomes Peres da Ribeira, e, mais tarde, com Estevaninha Martins de Ataíde. Terá falecido na segunda metade da década de 1260. Aires Peres Vuitorom e o conde D. Pedro, no seu Nobiliário, apresentam do alcaide do castelo de Leiria a imagem de um traidor à causa do monarca deposto, no entanto a questão da traição pode não ser tão linear, dado que D. Afonso III foi obrigado a investir militarmente contra o castelo e terá sido ainda obrigado a entregar contrapartidas ao alcaide, que terá vivido numa Leiria assolada por conflitos dentro e fora das muralhas da cidade. Pois bem, Martim Fernandes de Urgeses considera que fez o certo ao entregar o castelo a D. Afonso III (“O que vendeu Leirea muito tem que fez dereito”) argumentando que cumpriu as ordens do papa (argumento da autoridade papal, que se sobrepunha à do próprio rei), confirmados pelo “Esleito”, isto é, o “eleito”, uma referência ao arcebispo de Braga, eleito e ainda não confirmado, ou ao novo bispo de Coimbra, que substituíra o anterior, D. Tibúrcio, que desempenhou um papel fulcral na deposição de D. Sancho II e faleceu em 1246. Segue-se, no verso 13, nova citação em latim, em discurso direto: “– Super istud caput meum et super ista mea capa”, isto é, “Por cima desta minha cabeça e por cima desta minha capa”, uma referência ao papa (a «cabeça» da Igreja) e ao arcebispo eleito (a quem pertence a capa). José Manuel Bustamante considera que este verso alude à cerimónia do «impositivo manuum”m ou seja, “imposição de mãos”, comum a vários sacramentos e, sobretudo, à Confirmação e à Penitência, que envolve a colocação das mãos de uma pessoa (um sacerdote, um ministro, etc.) sobre outra com um propósito espiritual ou ritualístico que simbolizava a transmissão de autoridade espiritual ou a bênção  ou cura de enfermos. Em sua, a argumentação que justifica a entrega do castelo e nega as acusações de tração e de mentira é a autoridade eclesiástica, quer a papal quer a do bispo: “dade o castelo ao Conde, pois vo-lo manda o Papa” (v. 14). Desta forma, em estrofes e versos sucessivos, o trovador critica a interferência da Igreja nas questões temporais.
    A estrofe seguinte denuncia o alcaide de Faria, que «vendeu» o castelo ao Conde de Bolonha para «remiir seus pecados, / se mais tevesse mais daria.». Em seu auxílio, são citadas, em latim, as palavras de dois prelados, que, tal como nas coblas anteriores, apresentam a argumentação da alta hierarquia eclesiástica a favor do(s) ato(s) de traição: “ – Tu autem, Dominem, dimitte aquel que se confonde”, ou seja, “Tu, Senhor, perdoa aquele que se desgraça.”
    A crítica abate-se, na cobla seguinte, sobre o alcaide da Covilhã, Martim Dias, que entregou o seu castelo ao futuro Afonso III, tal como todos os anteriores, e o de Sortelha, Pero Dias, uma fortificação situada no concelho do Sabugal, distrito da Guarda. Em seu socorro, surgiram as palavras, em latim, do próprio futuro rei, D. Afonso III: “– Centuplum accipiatis (de mão do Padre Santo)”, ou seja, “Recebereis o cêntuplo”, «repetindo» as ditas por Jesus Cristo aos seus discípulos. Ora, esta citação (“Centuplum accipiatis”) é um poderoso argumento de autoridade, pois saiu da boca da divindade. Quem ousará questioná-la? Na sequência, o trovador transcreve, também em discurso direto, a fala de Fernam Dias, que entregou igualmente o seu castelo, concretamente o de Monsanto, e que se mostra satisfeito pela recompensa anunciada no verso 21 (“Centuplum accipiatis”), considerando que a merece exatamente por ter cometido o ato de traição: “– Bem m’éste, porque oferi Monsanto.” (v. 22).
    Por sua vez, Roi Bezerro (filho de Sueiro Bezerra) ofereceu o castelo de Trancoso (“Ofereceu Trancos’, ao Conde, Roi Bezerro”). Desta vez, a sentença latina é proferida pelo pai do alcaide, o próprio Sueiro Bezerra, e é dita “per sacar seu filho d’erro”. Note-se que esta expressão parece contradizer o resto da cantiga, já que o progenitor só poderia apoiar o gesto do filho de entregar o castelo ao Conde de Bolonha. Esta aparente contradição pode ser explicada de diferentes formas: a expressão significa que o filho deveria, antes de o fazer, ter consultado o «padre» (no duplo sentido, o pai / um padre, como ironicamente afirma no verso seguinte); a leitura do verso anterior não é correta e corresponderá a algo do género: “[E nom] ofereceu”, já que, de facto, parecem faltar duas sílabas métricas a esse verso; a expressão quer dizer livrar o filho do erro de ser acusado de traição. Segue-se, então, a citação parcialmente em latim, proferida por Sueiro Bezerro, para isentar o filho do erro: “– Non potest filia mea sine patre sua facere quidquam: / salvos son os traedores, pois bem isopados ficam!”, quer dizer, “Não pode a minha filha fazer nada sem o seu pai” (João, 5, 19). Observe-se a ironia do trovador ao feminizar voluntariamente o filho, chamando-lhe filha, para aludir à cobardia de Roi / Rui Bezerro. Nas palavras de Rodrigues Lapa, “usando muito de propósito a forma feminina, quer Vuitorom significar e flagelar a cobardia mulherenga do filho (= filha) de Soeiro Bezerra.” (LAPA, 1981, p. 131). No verso 26, o progenitor prossegue a defesa do filho, declarando que os traidores alcançam a salvação, pois são benzidos com o hissope (instrumento usado para aspergir água benta).
    No caso do alcaide do castelo de Sintra, a sua traição é apresentada como o cumprimento do código de cavalaria, através de um vocabulário feudo-vassálico: “O que ofereceu Sintra fez come bom cavaleiro”. Nestes momentos da cantiga e da cada estrofe de uso do discurso indireto, é apresentada a argumentação falaciosa dos traidores a D. Sancho II, não em latim ou latim macarrónico, mas em galego-português. O vocabulário que remete para as relações de vassalagem entre senhores e suseranos pretende justificar a traição vassálica, enquanto o vocabulário devocional para “justificar o pecado”. Note-se que estes dois discursos, o da indignidade e falsa humildade dos alcaides e o da “pomposa” hipocrisia eclesiástica, andam de mãos dadas, pois o primeiro cita o segundo em sua própria defesa e justificação. No caso vertente do alcaide de Sintra, a sua argumentação baseia-se nas palavras do legado papal, provavelmente o arcebispo de Braga, um dos nomeados pelo papa (o outro foi D. Tibúrcio) para a execução da bula de deposição: “– Sagitte potentis acute”, isto é, “Flechas potentes e afiadas” (citação retirada do Salmo 129, 4, em que David refere as língiuas venenosas: “Sagittae acutae cum carbonibes desolationes”). Pode interpretar-se este passo da seguinte forma: o legado disse um versículo dos Salmos ao alcaide e as suas palavras foram “flechas potentes e afiadas”, ou seja, o legado falou-lhe com a sua língua venenosa. O verso 30 clarifica o motivo pelo qual os alcaides agiram de forma traiçoeira: eles argumentavam que era preferível permanecer fiel à Igreja do que ao rei deposto, justificando a sua traição com o receio da excomunhão – “melhor é de ser traedor ca morrer excomungado”.
    Quando o Conde de Bolonha chegou a Celorico da Beira, encontrou a oposição do respetivo alcaide (“Pachec’entom o cuitelo tirou”), Fernão Rodrigues Pacheco, que se recusou a entregar o castelo. De facto, de acordo com a Crónica de 1419, ele só o entregou após ter tomado conhecimento da morte de D. Sancho II em Toledo. O referido texto informa-nos também acerca de uma lenda sobre a tenaz resistência do alcaide: enquanto a fome flagelava os sitiados, uma águia deixou cair uma truta no castelo, e ele, acompanhando-a com bom pão e bom vinho, mandou entrega-la ao Conde, de forma a demonstrar-lhe que poderia aguentar o cerco. É possível que, após a morte do rei, tenha participado na conquista de Sevilha (1247 – 1248), visto que o seu nome consta do Repartimiento da cidade. Em 1251, vamos encontra-los na corte de Afonso III e, em 1258, em Celorico, como prestameiro do rei. Foi casado com Constança Afonso de Cambra, sobrinha de Martim Anes de Riba de Vizela, matrimónio que confirma a sua ligação a esta poderosa linhagem e explica o facto de ser alcaide de Celorico da Beira, uma vez que os Riba de Vizela estavam fortemente implantados na região da Beira Alta. Por outro lado, a sua posição na guerra civil entre os dois irmãos compreender-se-á se tivermos em conta a aliança aos Ribas de Vizela, fiéis apoiantes de D. Sancho II.
    Voltando à cantiga, depois da sequência de alcaides que se «venderam» e entregaram os castelos, o trovador dá conta da chegada do Conde de Bolonha a Celorico da Beira, onde depara com um alcaide que, num gesto aguerrido de resistência, empunha o seu cutelo e, ignorando a ordem da Igreja transmitida pelas palavras do bispo, que o censura e lhe ordena que enfie a espada na bainha (“– Mitte gladium in vagina”), mimetizando as palavras que Cristo dirigiu a Pedro (João, 18, 1), que queria cortar a orelha de um legionário, quando da sua prisão (não é de descurar que a frase assume também um sentido claramente obsceno), enfrenta quem lhe pretende tomar o poder, proclamando: “– Alhur, Conde, peede u vos digam: Crescas!”, isto é, “Ide a outro lugar, Conde, e espeidorrai-vos com medo onde vos chamem à luta” (“Crescas” será, provavelmente, uma interjeição medieval que traduziria um grito de guerra). O caso do alcaide de Celorico da Beira constitui uma exceção, visto que foi o único da lista que mostrou lealdade a D. Sancho II, num mar de traidores, falsos e hipócritas. Assim, o trovador, através da figura de Fernão Rodrigues Pacheco, enaltece todos aqueles que se mantiveram fiéis a D. Sancho II, o que equivale a dizer, a todos os que se mantiveram fiéis aos vínculos de vassalagem e que resistiram indómitos às investidas do Conde e dos seus seguidores. O que está em causa é um certo ideal de nobreza, bem como a deterioração da rede de relações, de compromissos e códigos que norteavam a sociedade medieval e que uma nova nobreza, movida pelos seus interesses pessoais, desejosa de protagonismo e supremacia social, procurava conquistar o seu espaço e as suas ambições, escudando-se nas deliberações do Concílio de Lyon.
    A estrofe seguinte refere outra figura, a de Dom Airas Soga, sobre a qual pouco ou nada se sabe, o qual teria maldito “a ua velha noutro dia”. Trata-se de um verso de difícil interpretação, pois desconhece-se o seu contexto, não obstante continuar a relacionar-se com a não-rendição d alcaide de Celorico. Respondeu-lhe Pero Soares (tratar-se-á de Pero Soares de Briteiros, primo direito de Rui Gomes de Briteiros, trovador português nascido em 1190 e falecido em 1249) com um versículo em latim macarrónico (“um vesso per clerezia”): “– Non vetula bombatricom scandit confusio ficum”, ou seja, “a velha vergonha [pudor] não monta as hemorroides bombásticas” [ruidosas]. José Pedro Machado relaciona este verso com a imagem da figueira (“ficum”) estéril dos evangelhos, enquanto Bustamante sugere como hipótese remota que contenha uma referência ao castelo de Figueira de Castelo Rodrigo.
    Em suma, entre os versos 31 e 38, o alcaide de Celorico da Beira simboliza o ideal de nobreza por causa da sua atitude de se conservar leal a D. Sancho II e não entregar o castelo ao Conde de Bolonha. No último verso referido, é contraposto o que ele representa – o modelo de cavaleiro – e os contramodelos, simbolizados por Sueiro Bezerra: “Non foi Soeiro Bezerra alcaide de Celorico”.
    Na última estrofe, o trovador diz que os alcaides traidores, que entregaram os seus castelos, encontraram a salvação, pois foi-lhes mostrado por escrito que agiram corretamente. Note-se que há aqui uma mudança, visto que, nas estrofes anteriores, estes textos eram falados, ao passo que agora assumem a forma escrita. E o que diz esta última citação? “Por cima do fogo eterno e do poder divino” constituirá, eventualmente, uma referência indireta à bula papal que determinou a deposição de D. Sancho II, usando, não o texto concreto da bula, mas o sentido geral dos textos do Ordo excommunicandi e do Ordo da reconciliandum apostatam, schismaticum vel hereticum, tal como aparece no Pontificale Romanum. Em sua, “salvo é quem trae castelo a preito que o isopem, ou seja, os traidores que entregaram os seus castelos ao Conde de Bolonha foram todos salvos porque abençoados com água benta. Dito de outra forma, estamos na presença de um libelo acusatório contra a quebra dos compromissos de fidelidade vassálica, contra a traição e a cobardia, ainda que a coberto da resolução do Papa. Por outro lado, assenta na dicotomia entre a traição e a excomunhão e, nesta derradeira estrofe, o trovador denuncia, sarcástica e ironicamente, a posição da Igreja no conflito por causa da absolvição geral de todos aqueles que deram os castelos.
    Assim, de acordo com os autores do sítio https://cantigas.fcsh.unl.pt/, esta cantiga constitui um “violento manifesto contra os que permitiram a deposição de D. Sancho II, de quem Vuitorom foi um ardente defensor: por um lado, os alcaides dos castelos referidos ao longo da composição (particularmente da Beira), que, como indica a rubrica, os entregaram ao Conde de Bolonha, o futuro Afonso III, quebrando assim, para o trovador, o juramento de lealdade para com o seu legítimo senhor e rei; por outro lado, e muito claramente, os altos dignitários da Igreja que imediatamente legitimavam a traição, quando não a incitavam (e que desempenharam, de facto, um importante papel no conflito).”. Além disso, a cantiga não só ataca diretamente os partidários de D. Afonso III, como também, indiretamente, o novo rei de Portugal, questionando a sua legitimidade ao trono. Todavia, curiosamente, esta composição poética poderia ser usada pelo monarca para favorecer o seu projeto de centralização do poder, já que ela critica um grupo de nobres por traírem o seu rei (D. Sancho II) e, além disso, fixa normas de fidelidade vassálica importante para todos os soberanos que se viam confrontados com insurreições da nobreza.
    Por outro lado, a cantiga aborda outra questão que estava na ordem do dia: o embate entre o poder temporal e o poder eclesiástico, com o qual tiveram de se confrontar, por exemplo, D. Dinis ou D. Afonso X de Castela e que se consubstanciaram em conflitos com o papa ou entre o projeto centralizador e a autonomia da Igreja local. É isto que justifica a postura de Afonso X, o Sábio, de fomentar a criação e a difusão das cantigas como “A lealdade da Bezerra”. Este escárnio político prenhe de ironia envileve os que teceream a deposição de D. Sancho II, nomeadamente, os alcaides da Beira que entregaram os castelos ao Conde de Bolonha, e o clero que procurava legitimar, ou até promover, a traição através de versículos da Bíblia, citados uns, veladamente sugeridos outros. Note-se, para a construção imagética que é feota dos alcaides e dos nobres partidários do Bolonhês, o uso reiterado dos verbos «vender», «oferecer» e «dar» (8 ocorrências em 10 estrofes), que servem para o trovador os acusar de traição, quer pela via da venda, suborno ou entrega aparentemente desinteressada dos castelos, violando os deveres de vassalagem a quem lhos entregou – D. Sancho II. Ou seja, ele desmascara-os, denunciando o facto de terem, conscientemente, assumido essa postura motivados somente pela defesa dos seus interesses pessoais perante um novo poder, isto é, uma posição de rebeldia para com o legítimo rei.

Bibliografia:
BARROS, J.A., “A cantiga como armadura de guerra…”.
LAPA, M.R., Lições de Literatura Portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 1981.
MATTOSO, J., Fragmentos de uma Composição Medieval. Lisboa: Estampa, 1987.

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