Este
poema, da autoria de Ruy Belo, está incluído na secção “Tempo” do seu primeiro
livro, AGRE, r tem como tema a mudança. O título, em latim, significa “vida
mudada” e remete exatamente para a questão da mudança, neste caso, duas: uma
que já aconteceu e que se relaciona com a problemática da separação e outra que
está a começar a acontecer e que designa o começo de uma vida dedicada à
escrita da poesia.
O sujeito
poético dirige-se a um «tu», a um interlocutor indeterminada (“Caíste”), que
designa também, por implicação, uma versão passada / infantil do «eu». Ora,
esse «tu» caiu na “orla” do sujeito, isto é, adquiriu uma posição horizontal,
posição de morto. O nome “orla” significa limite ou fronteira, o limiar entre o
«eu e o «tu», enquanto o verbo «cair» indica uma aproximação involuntária de
alguém. Essa queda ou morto do «outro» equivale à morte do sujeito nele (“nunca
até hoje eu morrera tanto em alguém”), o que implica uma identificação entre o
«eu» e o «tu», estando assim em causa, nessa morte, a morte ou perda de uma
versão passada do sujeito. Além disso, ela é associada, através de uma
comparação com “a nespereira do quintal”: a queda da figura humana é mais
intensa e impactante do que a da árvore.
O “paul
de malmequeres” cria uma imagem de um pântano ou charco cheio dessas flores, um
espaço onde os ralos faziam ecoar seus sons na noite, como uma espécie de
mantra natural que reforça a passagem do tempo. A ideia de repetição indicia
uma espécie de perpetuação do canto, da melancolia ou da saudade. No paul,
figuravam também os «abibes», aves migratórias que carregam consigo o tempo e
as mudanças das estações, representando ciclos de renovação e retorno. Mesmo
com a passagem do tempo, há algo que permanece e que se repete ou renova
ciclicamente, ao contrário do que sucede com o sujeito poético., que sofreu a
mudança. Os malmequeres são flores frequentemente associadas ao destino e ao
amor (recorde-se o famoso jogo de arrancar pétalas – “bem-me-quer, mal-me-quer”),
o que pode apontar para a noção de um amor que persiste, mesmo no contexto da
dor e da ausência. A natureza não acompanha a secura do luto, pois permanece fértil.
Observe-se
que a primeira mudança antes referida está dependente da morte graduada
presente no verso inicial do poema. De facto, no seu prefácio à segunda edição
de AGRE, Ruy Belo afirma que, apesar de sempre ter vivido em crise,
estava a atravessar uma crise profunda quando escreveu os poemas que constituem
a obra. Neste contexto, o «agora» a que se refere o verso 17 equivale à fase da
crise profunda, que, por sua vez, se relaciona com a decisão de entrega total à
arte poética. De acordo com as palavras do próprio Ruy Belo, essa crise tem
como tema limite “o da solidão no meio da cidade: o do homem que não dispõe de
«ombro para o seu ombro», que tem o «destino da onda anónima morta na praia» (…)
que «vai só», que «não tem ninguém».” A crise, de acordo com o próprio poeta, relaciona-se,
portanto, com o distanciamento ou a queda de um “amigo”, e que se torna ausente
para o sujeito. O «tu» será, por conseguinte, o “ombro para o seu ombro” de que
não se dispõe.
O
período em que estava mais vivo no interlocutor relaciona-se com o período da
infância do sujeito poético. De facto, a sua morte ou queda representa a perda
de algo que se teve na infância, como se depreende dos seguintes versos: “O
mesmo céu que tu me desdobraste sobre a infância / acaba de depor na tua fronte
/ o peso excessivo de uma estrela”). A partir desse instante, o céu, que ele
desdobrava sobre a infância do sujeito, foi-se tornando cada vez mais distante,
adquirindo no presente o peso de um passado inacessível (“excessivo peso de uma
estrela”). A queda (agora mais definitiva) de um ser provocou uma descontinuidade
temporal.
A partida
do amigo faz com que a história recomece, ou que o sujeito poético se separe de
uma versão passada de si próprio (quando era um só com “amigo”). Deste modo,
estamos perante um cenário em que o «eu» se esqueceu de um passado (que, por
isso, deixa de ter uma função identitária), ou, se quisermos, estamos na
presença de um «eu» passado que morreu. Deste modo, o passado torna-se
inacessível, passa a ser um “outro mundo”, como afirma no poema “As velas da
memória”. São estas ideias que encontramos nos versos seguintes: “Com a tua
partida a minha história começa / a escrever-se para além da curva / onde à
tarde rompia a camioneta das cinco: / nenhum outro veículo vinha / tão cheio de
longe e de tempo”.
Estes
versos abrem a porta para a segunda mudança. De facto, a partida do «tu» parece
originar ou, pelo menos, servir de base à segunda mudança na vida do sujeito
poético. Ora, esses versos têm uma dupla função: por um lado, apontam para a
descontinuidade temporal que faz do passado uma outra vida; por outro, remetem
para a inauguração de uma nova vida: “(…) a minha história começa / a
escrever-se (…)”.
De
acordo com a terceira estrofe, a queda do «tu» é representada por meio da perda
de um «poder» que está relacionado com a unificação de um rosto / identidade: “Não
mais o teu olhar te defende”; “já a tua presença não reúne / as linhas
divididas desse rosto / que essas humildes coisas tinham.” Esse «poder» é
também da versão passada do sujeito poético, quando estava mais vivo no
«outro», isto é, quando dispunha de um “ombro para o seu ombro”. Sem ele, fica
circunscrito à condição física e à identidade civil: “Tens finalmente aquele
metro e oitenta / a que te circunscreviam civilmente”.
As
pálpebras descidas remetem para o fechar dos olhos, para a queda, para a morte,
e deixam-no sem defesa, sem poder. O uso do advérbio «agora» sugere um
contraste definitivo com um outro tempo, um passado. O olhar, frequentemente
associado à identidade, à comunicação e à defesa simbólica do mundo, já não
protege o sujeito, o que sugere vulnerabilidade. A queda, a morte, deixa o «eu»
totalmente exposto aos olhares alheios, sem qualquer resguarda. Além disso,
reduzido à materialidade do corpo, perde o mistério que o caracterizava. A
vida, antes complexa e prenhe de nuances, reduziu-se agora a algo simples e
inalterável. Por outro lado, a partida foi sinónimo de desarranjo e desordem. A
imagem das gavetas abertas e da secretária desordenada sugerem que a pessoa
partiu de forma repentina, sem tempo para arrumar os seus pertences. As gavetas
abertas simbolizam segredos, objetos, memórias que continha, revelados.
A
presença do «outro» dava sentido e unidade às coisas, incluindo o próprio
rosto, que agora parece fragmentado. A sombra, que representa a extensão do
corpo no espaço sob o efeito da luz, já não está lá para envolver os pequenos
segredos da vida quotidiana. A expressão “humildes coisas” indicia um quotidiano
simples, talvez um espaço doméstico, onde tudo girava em torno do «tu». A sua
partida é assinalada pela ausência da sua sombra: se esta acompanha o corpo, o
físico, e já não está presente, quer dizer que o «tu» está ausente. No quotidiano,
havia pequenas intimidades e histórias (“domésticos e ínfimos segredos”) que
lhe pertenciam. Com a sua ausência, eles tornam-se irrelevantes ou são
dissipados.
Com a
partida e consequente ausência do «outro», fica reduzido à sua condição física e
à identidade civil: “Tens finalmente aquele metro e oitenta / a que te
circunscreviam civilmente”. O «eu», antes repleta de complexidade e experiências,
fica reduzido a um dado físico e civil. É a única dimensão que lhe resta.
A
derradeira estrofe do poema aponta para o futuro, propondo uma nova forma de
vida, na e pela poesia, que resulta do aumento da morte do «amigo». Assim sendo,
a poesia constitui um modo de lidar com a separação. No entanto, a estrofe
apresenta um dado curioso: levar mais longe a vida do «amigo» perdido (e, por
implicação, do próprio sujeito poético sucede estendendo a sua morte pela terra:
“Levarei mais longe a tua vida e cobrirei / da tua morte um pouco mais de terra”.
A separação do «eu» em relação a algo perdido aparece muitas vezes associada à
mudança da posição vertical para a horizontal, ou seja, a figura do «tu» que se
perdeu deixa de estar de pé e dispersa-se pelas coisas. A poesia de Ruy Belo
constitui uma forma de procurar o «amigo» em lugares diversos através da
poesia.
No
entanto, a solução proposta não vai no sentido de recuperar o que se perdeu ou
reverter a situação, mas precisamente no sentido de aumentar a separação. Deste
modo, podemos concluir que a solução que a poesia possibilita para o problema
da separação está na própria separação, isto é, a doença cura-se pela própria
doença.
Em
suma, a solução tem a ver com uma ficção de morte ou com a invenção de uma
forma de vida além da morte. A poesia constitui uma vida depois de uma morte.
Assim sendo, pode aplicar-se, neste contexto, o aproveitamento do lema bíblico por
parte do poeta: “Vita mutatur non tollitur”, isto é, vida mudada, não acabada.
Por
outro lado, é visível uma cisão entre o sujeito e um “objeto perdido” / ”amigo”
(e, por implicação, o mundo), que parte de uma fissão interior. Com efeito, a
poesia de Ruy Belo é uma incessante reflexão sobre o tempo e a morte “e a certa
identidade do sujeito que em vão procura o lugar originário onde encontraria o
ser na sua totalidade”. Por outro lado, dado que o que se perdeu faz parte de
um passado inacessível, o sujeito poético caracteriza-se por uma condição
tardia que faz com que não se consiga situar em relação ao passado (isto é,
encontrar a casa, habitação, estabilidade, etc.).