Hamlet
possui uma natureza dupla: é sensível, poético, artístico e amoroso, mas também
é um criminoso que esfaqueia os seus amigos pelas costas, trata a sua jovem
namorada de forma insensível e não mostra qualquer remorso por assassinar um “bom
velhinho invisível”. Nenhuma outra personagem é tão citada, imitada e emulada
como Hamlet.
Desde o
início, o protagonista possui um imperativo claro para agir no seu feudo
medieval sangrento: vingar a morte do pai, assassinando o rei Cláudio. As suas
emoções rasgam-no em dois: por um lado, tem a necessidade masculina básica de
afirmar a sua masculinidade e corrigir erros graves; por outro, a sua moral
cristã diz-lhe que matar constitui um pecado, não importa qual seja a causa.
Hamlet
representa o oposto do seu tio. De facto, Cláudio personifica o vilão
maquiavélico: justifica o seu erro, engrandecendo os fins causados pelo seu
mal. Ele reconhece o seu próprio mal e reconhece o seu destino de perdição. Saber
que será condenado ao Inferno, torna-o não menos ansioso para comer um crime
após o outro, o fim de manter os seus despojos conquistados de forma errada. O
desejo de resistir a odiá-lo move o público, e o facto de estar familiarizado
com a sua incapacidade de procurar a absolvição impede que seja unidimensional.
Em vez de o odiar, o espectador torce pela sua conversão, esperando que
confesse e mostre arrependimento. Quando não o faz, o público torna-se menos
indulgente. Por seu turno, Hamlet é a antítese de Cláudio. Ele sabe que tem uma
dívida com o pai e com a velha ordem que dita que deve cometer um ato
pecaminoso. No entanto, o seu medo de que a ação seja errada paralisa-o. Embora
o fim justifique a própria existência do protagonista, não justificaria o seu
desafio ao mandamento contra o assassinato.
Os críticos
argumentam que a incapacidade de Hamlet se decidir torna-o uma figura trágica.
Como outros grandes heróis trágicos de Shakespeare, Hamlet deve encontrar uma maneira
de transformar as suas ideias – as palavras perseverantes que nunca lhe
permitem silêncio – em ação. Em Macbeth, o herói inverte os papéis com a
sua esposa; ela, pronta para agir, torna-se vocal, pensadora, enquanto o marido
se torna o imprudente, o homem de ação. No Rei Lear, a loucura rouba as
palavras ao monarca, forçando-o a ouvir, a reconhecer a realidade para
experimentar o seu reconhecimento e o reverso. Porém, em Hamlet, as
palavras controlam o herói até ao fim – até que ele saiba que está morto e
possa encerrar a discussão e finalmente agir.
Por outro lado,
grande parte do conflito que Hamlet deve superar resulta da sua luta interna,
não de obstáculos externos, embora eles também existam. O facto de Cláudio
possuir todas as cartas e expor Hamlet, nu, a toda a Dinamarca constitui um conflito
completamente externo. O fantasma ordena-lhe que vingue a morte do velho rei,
mas nenhuma testemunha atesta o facto de o rei Hamlet não ter morrido de causas
naturais. O rei Cláudio é o monarca por direito divino e, ao matá-lo, Hamlet
comete uma alta traição e, em simultâneo, despacha um emissário de Deus. Para o
mundo que o rodeia, o jovem príncipe parece desafinado: é popular e admirado
pelos súbditos dinamarqueses de Cláudio, mas aqueles não têm qualquer razão
para acreditar que este seja outra coisa que não o que diz ser: um rei nobre.
Se Hamlet sabe que o seu mundo está “fora do lugar”, que as coisas não são o
que parecem ser, que há algo “podre no reino da Dinamarca”, a verdade é que não
tem provas nem aliados. Cláudio até manipula a própria mãe do príncipe e o
namoro com Ofélia. Assim, à exceção de Horácio, Hamlet está sozinho.
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