Esta
cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, sem refrão), constituída por
quatro sétimas e uma finda (estrofe final que remata uma cantiga, formada por
um, dois ou três, raramente quatro), satiriza uma abadessa, em forma de
agradecimento pela forma generosa como foi acolhido no mosteiro (a todos os
níveis, incluindo o sexual).
De
facto, o trovador dirige-se ao seu interlocutor – uma abadessa desconhecida –
para lhe agradecer por o ter recebido no mosteiro e pelo bom tratamento que lhe
dedicou, incluindo o sexual: “Abadessa, Nostro Senhor / vos gradesca, se lhi
prouguer, / porque vos nembrastes de mi”. Pelos versos transcritos, percebe-se
que ele deseja que Deus agradeça à mulher por esta o ter acolhido quando chegou
ao mosteiro em busca de um abrigo: “u cheguei a vosso logar, / que tam bem
mandastes pensar / i do vosso comendador!”. O último verso da primeira estrofe
identifica o sujeito poético como “comendador”. Relativamente à sua identidade,
o Projeto Littera apresenta três leituras possíveis: esse comendador seria o próprio
trovador (o “herdeiro” desse mosteiro) e a mudança de sujeito, no final de cada
estrofe, constituiria uma maneira irónica de afirmar que o tratamento a que
tinha direito teria deixado a desejar; a segunda hipótese apontaria para o
comendador ser outra pessoa, que recebe todos os favores, enquanto o viajante
cansado fica à porta (qual Castelhano, no Auto da Índia, esperando, nos
quintais da Ama, que esta lhe abra a porta e o receba, enquanto ela se diverte,
dentro de casa, com o outro amante, o Lemos), ou seja, neste caso, a cantiga seria
uma queixa deita pelo trovador por não ter sido tão bem tratado como o
comendador; a terceira possibilidade apontaria para uma usurpação dos legítimos
direitos do trovador em matéria de comendas (situação semelhante à denunciada
por um outro trovador, João Soares Coelho, numa cantiga que dirige a Airas
Peres Vuitorom: “Dom Vuitorom, o que vos a vós deu”).
Partindo
do pressuposto de que o comendador é o próprio trovador, a abadessa teria
oferecido um serviço completo a um visitante, que estava morto de cansaço, e
foi tão bem recebido que lhe perguntavam se seria capaz de retribuir o gesto
que tanto lhe agradou: “e todos me perguntaram / se vos saberei eu servir /
quam bem o soubestes guarnir / de quant’el havia sabor.”
Por
isso, na terceira estrofe, o «eu» lírico deseja que Deus a recompense, por se
ter lembrado dele, por o ter tratado tão bem. Se algo falhou relativamente ao
acolhimento, não foi por falta de espaço da abadessa: “o comendador i chegou /
e se el bem nom albergou, / nom foi por vosso coraçom” (vv. 19 a 21). Isto
permite supor que o tratamento ao qual ele se refere seria também de cariz sexual,
pela ênfase dado no final de cada estrofe. Nos versos 17 e 18, por exemplo, o
trovador refere que ela se lembrou dele da maneira que era conveniente (“por
que vos nembrastes de mim, / u m’era mui mester assaz”) e que, como conclui nos
versos seguintes se alguma falha ocorreu, não foi por falta de esforço da parte
da abadessa.
Na
quarta estrofe, reitera o agradecimento por o ter recebido no mosteiro: “Deus
vos dê por en galardom / por mui, que eu nom poderei, / porque vos nembrastes
de mim, / quand’a vosso logar cheguei;”. De seguida, o trovador declara que,
quando o comendador chegou ao mosteiro, foi tão bem suprido de amor e prazer
que não seria possível fazer melhor: “ca já d’amor e de prazer / nom podestes
vós mais fazer / ao comendador entom”.
Na
finda, constituída por três versos, o «eu» poético exprime o desejo de que a
abadessa seja recompensada cem vezes mais, pois serviu ao comendador tudo o que
havia no mosteiro: “Cento dobr’hajades por en / por mi, que lhi nom minguou rem
/ de quant’havia na maison.” (o termo “maison” é um galicismo que significa “casa”,
em geral religiosa).
Ao
contrário de diversas outras cantigas de escárnio e maldizer, nesta não existe
vocabulário obsceno, sendo as ideias transmitidas de forma subtil, maliciosa.
Por outro lado, é evidente uma mistura entre religiosidade e sexualidade, por
exemplo, quando agradece ou quando deseja que Deus recompense a abadessa: “Nosso
Senhor / vos gradesca”; “Hajades por en galardom / de Deus”; “Deus vos dê por
em galardom / por mim”. A insistência exagerada na ideia da retribuição divina
e na impossibilidade de o próprio comendador retribuir a abadessa contribui
para a formação do tom de malícia.
Nota,
por último, para a presença da palavra perduda (verso de uma estrofe que não
rima com nenhum outro, mas que pode ou não rimar com os versos correspondentes
das estrofes seguintes), concretamente no terceiro verso de cada estrofe, incluindo
a finda: “porque vos nembrastes de mi” (v. 3); “mais nembrastes-vos bem de mim”
(v. 10); “porque vos nembrastes de mim” (v. 17); “porque vos nembrastes de mim”
(v. 2); “de quant’havia na maison” (v. 31).
Esta
cantiga satiriza os religiosos que têm comportamentos inadequados ou mesmo
luxuriosos. O foco são os agradecimentos de um comendador em razão dos cuidados
que recebeu durante a sua estada num mosteiro. A expressão, repetida ao longo
do poema, “nembrastes-vos bem de mi” enfatiza, em cada estrofe, os “bons
cuidados” que a abadessa lhe dedicou. Ela acolheu-o no convento, quando ele aí
chegou, depois de uma longa viagem, muito cansado e necessitado de cuidados que
poderão contemplar também o próprio corpo da mulher.
A já
referida subtileza que caracteriza esta composição poética é exemplificada, por
exemplo, pela expressão que podemos encontrar no verso 5 da primeira estrofe: “cheguei
a vosso logar”. Ora, a interpretação da mesma pode resultar dúbia, pois pode
ser entendida como referenciando o final de um trajeto, como também pode ser
lida com o sentido de “aproximar-se” (com valor erótico). Outro exemplo
encontra-se no termo “maison”, um provençalismo que, além do significado já
apontado, remete para uma casa de dimensões consideráveis, e que concretiza o “logar”
referido noutras estrofes, mas que pode ser lido de forma literal ou
metafórico, enquanto alusão à vagina. Assim, ficamos na dúvida se o comendador
agradece à abadessa o facto de o ter “recebido” e tratado prazeirosamente na
sua própria “maison” metafórica, ou se os vocábulos “logar” e “maison” se
referem apenas e só ao mosteiro real onde a religiosa o recebeu e agasalhou com
tudo o que havia naquela habitação, incluindo os favores sexuais dela mesma ou
de outra mulher que lá morasse também.
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