Esta
cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Afonso X, constituída
por três sétimas de rima emparelhada e interpolada, segundo o esquema ABBACCB,
satiriza Ansur Moniz, numa chufa em que, ironicamente, defende este cavaleiro
que tinha tido problemas com os seus porteiros. O indivíduo é apresentado como
um fidalgo rural de pouco importância que aspirava a ser um grande senhor, uma personagem
desconhecida, talvez a mesma que aparece em duas cantigas de Vasco Peres
Pardal, daí a queixa por os porteiros o terem incluído no grudo dos escudeiros,
de baixa condição social.
No
verso inicial, o sujeito poético expressa o seu grande pesar (obviamente
irónico) por os porteiros (o porteiro era uma figura importante nas cortes medievais
– reais e senhoriais –, visto que era a si que competia fazer a triagem dos
visitantes e indicar-lhes o lugar) terem colocado Ansur Moniz, de forma vil ou
como um vilão (“vilanamente” – advérbio de modo), entre os escudeiros. O
advérbio enfatiza o modo desonroso como o alvo da sátira foi tratado. Ansur
Moniz é uma personagem desconhecida que, de acordo com o texto, possuía
pretensões de grande senhor (tratar-se-á talvez do mesmo que surge em duas
cantigas de Vasco Pardal), havendo que interpretar a queixa por os porteiros o
incluírem no grupo dos escudeiros, de baixa categoria social. Em sinal de
discordância, o «eu» lírico censura-os (atente-se na fórmula exclamativa de
jura “Per boa fé”), condenando o tratamento dedicado a Ansur Moniz, pois este
provém “dos de Vilan’Ansur de Ferreiros”. Note-se que este topónimo se refere a
um lugar situado na província de Burgos: Villasur de Herreros. Por outro lado,
o trovador faz nestes versos um jogo com o nome do fidalgo (vilão Ansur), bem
como com o topónimo, algo em torno de “vilão ao sul de Ferreiros”. Neste
sentido, podemos interpretar a fala do sujeito poético, ao referir-se às
origens de Moniz, como significando que ele provém de uma linhagem mais
humilde.
Na segunda
estrofe, o trovador continua a detalhar a ascendência de Ansur Moniz, referindo
que também descende dos “d’Escobar” e de Campos, mas não dos de Cizneiros.
Estes três topónimos pertencerão, provavelmente, ao mesmo território, isto é,
Escobar referir-se-ia a Escobar de Campos, concelho da atual província de Leão,
ao passo que Cizneiros será Cisneros, um concelho localizado no centro-sul da
província de Palência; finalmente, Campos fará referência ao anteriormente
citado Escobar de Campos ou, também, Terra de Campos, uma extensa comarca que
se estende pelas províncias espanholas de Leão, Zamora, Valladolid e Palência.
Ou seja, Ansur Moniz descende da família de Vilanansur, Escobar e Campos,
<apelidos brasonados importantes, menos que os de Cisneros, que contrastam
com a humilde procedência de lavradores e carvoeiros, profissões baixas na escala
social. De facto, o alvo da sátira parece proceder de lavradores e carvoeiros.
O facto de estes dois vocábulos surgirem maiusculados parece sugerir que se
trataria também de eventuais formas onomásticas, o que vai contra a lógica
discursiva da cantiga.
Outro
ramo da família é os “d’Estepar”, um município da província de Burgos, na mesma
comarca que Vilanansur de Ferreiros, em Castela-Leão, bem como “d’Azeved”,
provavelmente a atual Acebedo, em Leão, não obstante haver estudiosos que a associem
a uma povoação localizada perto de Caminha. É possível ainda que haja aqui um
equívoco com o azevém, uma planta para forragens. É aí que estão sepultados os
seus pais (“u jaz su padr’e sa madr’outro tal”) e repousarão, no futuro, ele
próprio e os seus filhos (“e jará el e todos seus herdeiros.”).
Ao longo
da sua vida, Ansur Moniz tomou iniciativas destinadas a melhorar a sua posição,
indiciando a sua preocupação e a sua demanda de prosperidade e reconhecimento,
tendo ganhado mais do que os seus antepassados (“er foi el gaanhar / [mui] mais
ca os seus avoos primeiros”), superando o estatuto desses seus familiares em
termos de posses e riqueza. Os versos 17 e seguintes são de muito difícil
leitura. Aparentemente, Ansur Moniz comprou foices, terra e trabalhadores e
ainda a povoação de Vilar de Paos para o seu sustento (provavelmente,
tratar-se-á da antiga Villar de Palos – atualmente, Villadepalos – , povoação
do concelho de Carracedelo, também em Leão, que surge citada num censo
populacional do século XVI). Outra leitura desses versos sugere que Ansar Moniz
teria comprado foice, estrume, cabreiros e Vilar de Rates (campo com buracos de
toupeira), para o seu sustento. No entanto, perante a inexistência de um
topónimo igual ou similar a Vilar de Paes (ou Vilar de Raes) devemos supor a
existência de um erro de transmissão. Prosseguindo a leitura inicial, as aquisições
da propriedade “pera seu corp’” significam que o fez para seu uso e benefício
pessoais, pois não está no seu feitio ser e viver pobre. De acordo com outra
interpretação, a expressão “e diz ca nom lh’em cal” significa “que não se
importa”, o que, neste caso, quererá dizer que Ansur Moniz diz que não se
importa de viver pobre. Nos dois últimos versos, encontramos a conclusão: a quem
falha consigo mesmo falham-lhe os companheiros, ou seja, quem não se cuida
deixa de ter amigos.
De acordo
com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt, a ironia desta cantiga reside na utilização
de nomes comuns e socialmente marcados na enumeração da sua linhagem e
propriedades. Na esteira da Farsa dos Almocreves, de Gil Vicente, ou do Lazarilho
de Tormes, estamos perante um daqueles casos de um fidalgo pobre que de
tudo é capaz, incluindo passar fome, para salvar as aparências.
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