Esta
cantiga de escárnio e maldizer de refrão, escrita por Estêvão da Guarda, é
constituída por três sétimas, com rima emparelhada, segundo o esquema AAABBCC,
e satiriza o caso de um casal em apuros por dificuldades económicas, que o
obrigam a vender ao desbarato as suas roupas com peles, mesmo se já muito
usadas.
A
cantiga estrutura-se a partir de um diálogo jocoso entre o trovador e o
corretor, isto é, o intermediário, responsável pela venda das roupas. É fácil
imaginar o cenário: o sujeito poético, certo dia, viu o corretor a vender roupa
que ele tinha visto, revestida então de “penas veiras”, isto é, feita com pele
matizada. O corretor é, pois, um simples intermediário na venda.
Quem dá
início ao diálogo é o trovador, que identifica a pessoa a quem pertencem as
roupas: a esposa de alguém com estatuto, como se pode depreender do tratamento
por “Dom” (“– Da molher som de Dom Foam.”), que, apesar do título, deverá estar
a viver uma situação financeira bastante difícil. A expressão “Dom Foam” era
uma fórmula usada habitualmente para esconder uma identidade concreta.
O
corretor responde ao trovador, confirmando que são essa figura e a esposa quem
estão a vender tudo quanto possuem: “– Vendem quant’ham, / el e aquesta sa
molher”. Essa confirmação reforça a ideia da decadência e da extrema
necessidade que atingem o casal: a situação é tão difícil que teve que recorrer
à venda dos próprios bens, incluindo a roupa, para sobreviver. Os dois versos
que separam o sexto verso do refrão funcionam como forma de introduzir a
explicação para a venda da roupa: “ham-no mester, ham-no mester!”, isto é, têm
necessidade, o que confirma que tudo se deve a dificuldades económicas. Além
disso, a repetição presente no refrão indicia a urgência do casal.
Os dois
versos iniciais da segunda estrofe confirmam que as roupas que estão a ser
vendidas são de mulher. Ironicamente, refere que esta ficará quase despida, o
que significa que está a vender quase todo o vestuário, em virtude da
necessidade extrema. A mulher fica quase nua ao olhar público por vender a
roupa, enquanto essa mesma venda deixa igualmente a nu a depauperada situação
financeira do casal. A btítulo de curiosidade, convém ter presente o
significado da expressão “ver grós”, a qual, segundo Gema Valin (in “La
indumentaria en la lírica Gallego-Portuguesa: algunas consideraciones sobre el
uso y el significado de las penas veiras”), constituiria uma outra designação
para as “penas veiras”, a partir do francês “vair gros”, cuja técnica “consistia
en combinar el gris del lomo y el blanco del vientre de la ardilla formando um
damero, y cuandolos cuadrados eran de mayor tamaño se le daba el nombre de gros
vair”. Seja qual for a interpretação, esta passagem da cantiga indicia que os
“panos” são de baixa qualidade de tão usadas.
O
trovador insiste na questão: por que razão a mulher deseja vender as vestes por
vontade própria, se tal atitude a deixa quase nua? A resposta do intermediário é
imediata: ele tem a certeza de que (“– Sei eu, de pra,”) o casal o faz por necessidade
financeira, de acordo com o refrão. Mas como pode o corretor ter tanta certeza,
passe a redundância, acerca da razão da venda? Foi a própria mulher quem lho
disse: “– Sei eu, de pram, / per ela, quanto vos disser:”. A citação indireta
funciona como uma espécie de argumento de autoridade que assegura a veracidade
do que é dito.
A sátira
acerca da penúria em que vive o casal intensifica-se na terceira estrofe. O trovador
afirma que é difícil acreditar que “eles” – o casal –, por falta de recursos
financeiros, vendam a roupa da mulher por um valor extremamente baixo. Ora,
esta atitude reflete o desespero e a extrema necessidade do par, ficando assim
exposta a gravidade da sua situação de pobreza, que os leva a sacrificar a
própria dignidade.
Mais
uma vez, o interlocutor do sujeito poético faz luz sobre os acontecimentos e
explica, de novo, que é a necessidade extrema (“Per com’ estam”) que os faz
descer àquele ponto: eles necessitam de vender aqueles “panos”, mesmo que por
um valor muito baixo, porque nada mais lhes resta.
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