Português: Análise da cantiga "A um corretor que vi", de Estêvão da Guarda

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "A um corretor que vi", de Estêvão da Guarda

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de refrão, escrita por Estêvão da Guarda, é constituída por três sétimas, com rima emparelhada, segundo o esquema AAABBCC, e satiriza o caso de um casal em apuros por dificuldades económicas, que o obrigam a vender ao desbarato as suas roupas com peles, mesmo se já muito usadas.
    A cantiga estrutura-se a partir de um diálogo jocoso entre o trovador e o corretor, isto é, o intermediário, responsável pela venda das roupas. É fácil imaginar o cenário: o sujeito poético, certo dia, viu o corretor a vender roupa que ele tinha visto, revestida então de “penas veiras”, isto é, feita com pele matizada. O corretor é, pois, um simples intermediário na venda.
    Quem dá início ao diálogo é o trovador, que identifica a pessoa a quem pertencem as roupas: a esposa de alguém com estatuto, como se pode depreender do tratamento por “Dom” (“– Da molher som de Dom Foam.”), que, apesar do título, deverá estar a viver uma situação financeira bastante difícil. A expressão “Dom Foam” era uma fórmula usada habitualmente para esconder uma identidade concreta.
    O corretor responde ao trovador, confirmando que são essa figura e a esposa quem estão a vender tudo quanto possuem: “– Vendem quant’ham, / el e aquesta sa molher”. Essa confirmação reforça a ideia da decadência e da extrema necessidade que atingem o casal: a situação é tão difícil que teve que recorrer à venda dos próprios bens, incluindo a roupa, para sobreviver. Os dois versos que separam o sexto verso do refrão funcionam como forma de introduzir a explicação para a venda da roupa: “ham-no mester, ham-no mester!”, isto é, têm necessidade, o que confirma que tudo se deve a dificuldades económicas. Além disso, a repetição presente no refrão indicia a urgência do casal.
    Os dois versos iniciais da segunda estrofe confirmam que as roupas que estão a ser vendidas são de mulher. Ironicamente, refere que esta ficará quase despida, o que significa que está a vender quase todo o vestuário, em virtude da necessidade extrema. A mulher fica quase nua ao olhar público por vender a roupa, enquanto essa mesma venda deixa igualmente a nu a depauperada situação financeira do casal. A btítulo de curiosidade, convém ter presente o significado da expressão “ver grós”, a qual, segundo Gema Valin (in “La indumentaria en la lírica Gallego-Portuguesa: algunas consideraciones sobre el uso y el significado de las penas veiras”), constituiria uma outra designação para as “penas veiras”, a partir do francês “vair gros”, cuja técnica “consistia en combinar el gris del lomo y el blanco del vientre de la ardilla formando um damero, y cuandolos cuadrados eran de mayor tamaño se le daba el nombre de gros vair”. Seja qual for a interpretação, esta passagem da cantiga indicia que os “panos” são de baixa qualidade de tão usadas.
    O trovador insiste na questão: por que razão a mulher deseja vender as vestes por vontade própria, se tal atitude a deixa quase nua? A resposta do intermediário é imediata: ele tem a certeza de que (“– Sei eu, de pra,”) o casal o faz por necessidade financeira, de acordo com o refrão. Mas como pode o corretor ter tanta certeza, passe a redundância, acerca da razão da venda? Foi a própria mulher quem lho disse: “– Sei eu, de pram, / per ela, quanto vos disser:”. A citação indireta funciona como uma espécie de argumento de autoridade que assegura a veracidade do que é dito.
    A sátira acerca da penúria em que vive o casal intensifica-se na terceira estrofe. O trovador afirma que é difícil acreditar que “eles” – o casal –, por falta de recursos financeiros, vendam a roupa da mulher por um valor extremamente baixo. Ora, esta atitude reflete o desespero e a extrema necessidade do par, ficando assim exposta a gravidade da sua situação de pobreza, que os leva a sacrificar a própria dignidade.
    Mais uma vez, o interlocutor do sujeito poético faz luz sobre os acontecimentos e explica, de novo, que é a necessidade extrema (“Per com’ estam”) que os faz descer àquele ponto: eles necessitam de vender aqueles “panos”, mesmo que por um valor muito baixo, porque nada mais lhes resta.

Sem comentários :

Enviar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...