Dogmas do Desastre do Ensino
Por GABRIEL MITHÁ RIBEIRO
Terça-feira, 30 de dezembro de 2003
O estado desastroso do nosso ensino básico e secundário só
poderá ser invertido na medida em que formos capazes de desmontar o discurso
pseudo-científico das pedagogias/ciências de educação. É preciso descodificar
na linguagem comum do bom-senso, de preferência de forma simples e objectiva,
aqueles que parecem ser os mandamentos que nas últimas décadas nos têm
conduzido à escola medíocre que hoje temos. Esses princípios serão referidos
como dogmas porque têm sido apresentados como verdades divinamente reveladas
mas, na prática, não são mais do que manifestações de um pensamento totalitário
que condena à partida outros caminhos. É isso que tem desprezado, oprimido e
frustrado os professores, prejudicando alunos e pais, pondo desse modo em causa
o nosso projecto de sociedade.
Dogma 1: “O ensino centrado no aluno” – irracional! Este
dogma tem sido a nossa caixa de Pandora. Por que não centrar o ensino no
conhecimento, a verdadeira razão de ser da escola, como tenho insistido?
Dogma 2: “O professor concebido enquanto animador de
auto-aprendizagens dos alunos” – errado! O professor só o é se for um bom
transmissor de conhecimentos. Isso é do mais elementar bom-senso.
Dogma 3: “As aulas expositivas são erradas” – falso. Não é
assim que, com o tempo, os professores vão ganhando o dom da palavra, por si só
sedutor, desenvolvem um saber racional e logicamente estruturado e a sala de
aula passará a ser um espaço de silêncio, da imprescindível tranquilidade do
saber? Desde que se inventou a escola, quantos milhões e milhões de seres
humanos não aprenderam e não aprendem por esse método?
Dogma 4: “As interações humanas são sempre positivas, logo
a escola não necessita de regular comportamentos, sendo a autoridade
dispensável ou secundária” – falta de senso! Tanto aprendemos, no convívio com
os outros, atitudes positivas (respeito, amizade, trabalho, rigor, disciplina,
etc.) como negativas (má educação, insolência, preguiça, agressividade,
delinquência, etc.), logo a escola deve regular comportamentos referenciados à
moral social e que assumam carácter impositivo, em contracorrente com a actual
permissividade.
Dogma 5: “É preciso diversificar a avaliação, se possível
evitando a classificação quantificada e recusando os exames no básico” –
irresponsável! Essa não é a fórmula perfeita para, por um lado, desvalorizar a
escrita, a leitura e o cálculo, por outro lado, escamotear a verdade sobre o
trabalho efetivo levado a cabo por professores e alunos e, por outro lado
ainda, não impede que se corrijam desvios desde o 1.º ciclo do básico?
Dogma 6: “No ensino básico a avaliação tem de ter por
referência os níveis de 1 a 5″ – mentiroso! Esse sistema de
avaliação/classificação, germinado na conjuntura revolucionária dos anos
setenta, tem permitido todo o tipo de manipulações dentro e fora da escola e
falseia grosseiramente os resultados escolares dos alunos. Só quem nunca esteve
em reuniões de avaliação é que não se apercebe dos “milagres” em catadupa que
aí se produzem transformando o 2 (da reprovação) em 3 (do sucesso), sem que nada
de sólido o justifique, a não ser o sempre disponível “discurso do coitadinho”.
Haveria nas avaliações tanta injustiça, tanto facilitismo, tanta promoção do
demérito se as notas fossem de 0 a 20 valores?
Dogma 7: “Os encarregados de educação são elementos
decisivos no processo educativo dentro da escola” – demagogia barata! Quanto
mais dentro da escola e da sala de aula estiverem os encarregados de educação,
mais se enfraquece o corpo docente. Já somos suficientemente crescidos para
saber que os bons pais se fazem em casa, educando os filhos e trabalhando com
eles os assuntos escolares. A confusão entre a escola e essa coisa vaga que é
“a sociedade” tem conduzido à perda da dignidade da escola. Ela tem, como
sempre teve, na sua artificial (mas necessária) autonomia – construída em torno
da leitura, da escrita, do cálculo e dos “agentes de dentro” – a condição sine
qua non do seu sucesso.
Dogma 8: “As sensibilidades e opiniões dos professores são
veiculadas pelos sindicatos, cientistas da educação e ministério da educação” –
o tapete que esconde o lixo! Algum professor se sente representado por um
sistema cujos representantes são o seu cancro? De onde viriam as depressões, as
frustrações, os sentimentos de opressão se os que há décadas falam em nome de
terceiros estivessem certos e ligados à realidade? Alguma das reformas a que
temos assistido conseguiu penetrar na consciência dos professores e na
intimidade da sala de aula, onde tudo se decide e onde tudo pode ser pervertido?
Dogma 9: “As escolas são instituições democráticas, às vezes
até com ‘democracia a mais’” – no mínimo, perverso! Na maior parte dos casos,
sobretudo quando as situações são mais melindrosas, exigindo que se enfrentem,
sem rodeios, alunos e pais, quantos professores se sentem verdadeiramente
protegidos e dignificados por aqueles que elegeram? Não seria vantajoso impor
um limite de mandatos aos órgãos de gestão das escolas de modo a garantir uma
mais efectiva participação e representatividade dos professores, impedindo ao
mesmo tempo que aqueles que têm mais peso na definição das políticas de cada
escola e, por inerência do sistema de ensino, se afastassem e cortassem, muitas
vezes em definitivo, com a sala de aula? Não era a forma de travar certos
caciquismos dentro das escolas, alguns deles cristalizados há mais de uma
década? Em vez de os enfrentar e resolver, eles vão aprendendo a conviver
placidamente com os problemas.
Dogma 10: “As dificuldades do ensino e mesmo o mau ensino
são espelho da sociedade que temos e, portanto, uma fatalidade” – a desculpa da
incapacidade e da incompetência! Essa não é a fórmula-chave que usam os que se
querem perpetuar nos seus cargos e universos mentais, mesmo que estejamos a um
passo do abismo?
Nota final / Advertência: Não há reforma nenhuma sustentável
se os professores não exigirem de si próprios algo. Seria demagógico pensar que
tudo mudaria para melhor apenas mudando o que existe, isto é, abandonando a
“pedagogice”. É preciso dar outro e decisivo passo: que os professores invistam
no conhecimento científico ou académico da área em que se formaram. Esse tem de
ser um compromisso não só do professor, mas da pessoa pela vida fora. O que se
exige é que ele seja racionalmente direcionado para a Literatura e Língua
Portuguesas, para as Línguas Estrangeiras, para a História, Filosofia,
Geografia, Matemática, Física, Química, Biologia, Informática, Artes, Educação
Física, Educação Musical e outros domínios do saber. O bom professor é o que
domina o conhecimento e, no estado atual, além disso é recomendável que deite
para o lixo a pedagogia hoje dominante.
Professor do ensino secundário, autor do livro A Pedagogia
da Avestruz (Ed. Gradiva)