Ben Jennings |
quinta-feira, 8 de setembro de 2022
A escola do século XIX em imagens - IX
Nicolay Bogdanov-Belsky, Cálculo mental na escola pública (1895) |
Esclareça-se antes de mais que este docente não corresponde à figura convencional do mestre-escola em atividade nas escolas rurais oitocentistas. Trata-se de Sergey Rachinsky, um professor universitário de Botânica que a dada altura largou a vida académica em Moscovo para se tornar professor numa pequena cidade, onde não se limitava, como aqui se vê, a “dar a matéria”, mas se empenhava, através de desafios colocados aos seus alunos, em fazê-los pensar.
Além desta mensagem clara que a pintura transmite – a escola pública deve desafiar os alunos, retirando-os da zona de conforto do facilitismo e da falta de exigência, exigindo-lhes esforço para aprender e colocando-lhes desafios que os façam desenvolver todo o seu potencial – há uma outra ideia pertinente que, quando a diminuição das qualificações exigidas para dar aulas está na ordem do dia, é importante salientar: o professor não precisa de saber apenas a matéria que ensina aos alunos. A sua preparação deve ser bem mais vasta e abrangente. A qualidade da formação científica e pedagógica dos professores é, mais do que avaliações do desempenho burocráticas e vexatórias, a melhor garantia que podemos ter em relação à qualidade da escola pública.
Fonte: Escola Portuguesa.
terça-feira, 6 de setembro de 2022
Biografia / Vida de Aquilino Ribeiro
Aquilino Ribeiro nasceu em Sernancelhe, freguesia de Carregal de Tabosa, distrito de Viseu, na Beira Alta, a 13 de setembro de 1885 e faleceu em Lisboa, a 27 de maio de 1963, após uma doença rápida, tendo os seus restos mortais sido trasladados para o Panteão Nacional em setembro de 2007, 44 anos após a sua morte. Era filho de Mariana do Rosário Gomes e do padre Joaquim Francisco Ribeiro e teve uma infância, ao que se sabe, de uma criança bastante travessa, a tal ponto que ainda recentemente era possível encontrar nessa zona quem tivesse ouvido contar histórias picarescas de um menino destinado pela família à vida de sacerdócio.
A sua vida, tal como a de muitas das personagens a que
deu vida, foi movimentada e aventurosa. Aos 10 anos, mudou-se com os pais para a
aldeia de Soutosa, concelho de Moimenta da Beira, onde passou grande parte da
infância. Estudou na escola de Soutosa e, seguidamente, no Liceu de Lamego, onde
fez os estudos preparatórios, mais tarde em Viseu, em 1902, onde estudou
Filosofia e Teologia. A pedido da sua mãe, entrou para o Seminário de Beja,
onde fez apenas o primeiro e parte do segundo ano de Teologia, dado que não
vocação religiosa. Em 1904, foi expulso do seminário, depois de ter dado uma
réplica cortante a uma acusação do Padre Manuel Ançã, um dos dois irmãos que
dirigiam a instituição na época.
Em 1906, encontramo-lo em Lisboa, onde inicia a sua longa
carreira de jornalista, com artigos de opinião (e princípio de um romance em
folhetins – A Filha do Jardineiro) publicados em jornais como A
Vanguarda, uma publicação republicana, o Jornal do Comércio, O
Século (do qual foi, mais tarde, correspondente em Paris), A Pátria,
Ilustração Portuguesa e o Diário de Lisboa. Dedicou-se também à
tradução (traduziu, por exemplo, Il Santo, de Fogazzaro) e à redação, em
colaboração com José Ferreira da Silva, do folhetim A Filha do Jardineiro,
uma ficção simultaneamente de propaganda republicana e de crítica corrosiva às
figuras do regime monárquico, incluindo o próprio rei D. Carlos. Além disso, foi
um dos fundadores da Seara, onde também colaborou, escreveu em revistas
como Homens Livres e Lusitânia e, juntamente com outros
intelectuais seus amigos, entre os quais Raul Proença, constituiu-se como um
dos animadores da publicação do Guia de Portugal.
Verdadeiro homem de ação, um tipo social muito exaltado
no início do século XX, aderiu ao movimento republicano, pelo qual se bateu,
quer através da escrita, quer através da participação em iniciativas que
acabaram por o levar à prisão. De facto, em 1907, foi acusado de bombista por
causa do rebentamento de uns caixotes de explosivos que guardara no seu quarto
e que levaram à morte de dois correligionários seus e detido na esquadra do Caminho
Novo por fazer parte do Partido Republicano, de onde se evadiu em
circunstâncias recambolescas, como se pode ler num volume de memórias. Chegou
mesmo a correr um boato segundo o qual Aquilino teria sido, em 1908, a
«terceira carabina», aliás inútil, já que os dois regicidas tinham levado a
cabo a sua função de forma exemplar. Fugiu, portanto, da prisão e, após alguns
meses de clandestinidade em Lisboa, refugiou-se em Paris, tendo frequentado na
Sorbonne o curso de Filosofia e Sociologia. Aí, foi ensinado por mestres como
George Dumas, André Lalande, Levy Bruhl e Durckeim, e contactou com a intelectualidade
portuguesa que, igualmente por razõees políticas, se exilara fora de Portugal.
Além disso, conheceu Grete Teidemann, a sua primeira mulher, com quem foi
residir e casou na Alemanha, tendo o seu primeiro filho nascido, porém, em
Paris. Visitou brevemente Portugal em 1910, depois de proclamada a República,
tendo regressado em definitivo no ano de 1914, depois da eclosão da Primeira
Guerra Mundial, deixando incompleto o curso de Filosofia, que abandonou já
depois de se ter matriculado no quarto ano, como se pode comprovar pela
consulta dos registos guardados no Centre d’Accueil et de Recherche des Archives
Nationales de Paris.
Em Portugal, nunca descurando o seu trabalho de escritor
(escrita ficcional e cronística para a imprensa periódica, uma atividade que
desenvolveu de forma regular ao longo de toda a vida), exerceu a carreira de
professor no Liceu Camões durante três anos e foi, posteriormente, segundo
bibliotecário – mais tarde conservador – na Biblioteca Nacional, para onde
entrou a convite do amigo Raul Proença. Esta função, entre outras vantagens,
deu-lhe a possibilidade de alimentar o seu amor pelos livros antigos e raros,
um gosto que o levou a produzir trabalhos de investigação, publicados, por
exemplo, nos Anais das Bibliotecas e Arquivos, e que se refletiu também
na sua produção literária, de que é exemplo o seu primeiro romance, A Via
Sinuosa. Além disso, como já foi referido anteriormente, fez parte de um
grupo de intelectuais que desenvolveu uma significativa atividade cívica e
cultural que teve a sua expressão mais visível na revista Seara Nova,
uma publicação importantíssima quer na difusão dos ideais republicanos, quer na
evolução da conturbada vida política da Primeira República.
Foi
demitido do cargo de bibliotecário em 1927 novamente por razões políticas.
Desta vez, participou na revolta frustrada contra a ditadura militar que,
entretanto, fora instaurada no país após o golpe de 28 de maio de 1926. Fugiu
para a Beira Alta e, em seguida, refugiou-se de novo em Paris – segundo exílio.
Quando, clandestinamente, regressou a Portugal, escondeu-se em Soutosa.
Entrementes faleceu a sua esposa. Em 1928, voltou a participar numa iniciativa
antirregime (o chamado movimento do regimento de Pinhel), mas foi capturado e
levado para a prisão do Fontelo, em Viseu, um edifício que ainda hoje pode ser
visto na cidade. Na companhia de António Mota, conseguiu voltar a evadir-se
serrando as grades do cárcere enquanto numa grafonola tocava um disco para
abafar o som. Escondeu-se nas serranias beiroas e encetou uma difícil jornada
que o levou de novo a Paris – terceiro exílio. Na capital francesa, casou em
segundas núpcias [a primeira esposa havida falecido em 1927] com D. Jerónima
Dantas Machado, filha do presidente da República Bernardino Machado, também
homiziado aí depois de deposto por Sidónio Pais, e foi viver com ela para o Sul
de França (Ustaritz e Baiona, onde, em 1930, lhe nasceu o primeiro filho do
casal e o segundo de Aquilino). Enquanto isso, em Lisboa, em 1929, foi julgado
e condenado à revelia. Viveu depois em Vigo e em Tui, cidades espanholas, até
regressar clandestinamente a Abravezes, Viseu. Acabou por ser amnistiado em
1932, tendo ido residir para Cruz Quebrada.
Acalmados os seus instintos revolucionários, embora tenha
continuado a participar em ações críticas da ditadura salazarista, Aquilo
Ribeiro pode, então, dedicar-se plenamente à escrita, prosseguindo a sua
produção ficcional, o trabalho de tradução, o trabalho ensaístico (latu sensu)
e a colaboração na imprensa, além das suas lendárias idas ao Chiado, ao final
da tarde, para tertúlias à porta da Bertrand, a sua editora. Literariamente,
nunca abdicou da originalidade nem alinhou com nenhum dos movimentos literários
do seu tempo, desde o Modernismo (pela leitura de algumas cartas de Fernando
Pessoa, ficamos a saber que Aquilino era apreciado pelo poeta) ao Presencismo,
que o criticou fortemente, em especial José Régio (críticas essas publicadas em
grande número na revista do movimento, a Presença), passando pelo
Neorrealismo. Como foi indiciado atrás, não obstante a acalmia que a sua vida
conheceu nesta época, o escritor jamais abdicou da sua consciência cívica e
política, tendo continuado a criticar o regime, aderido ao MUD (Movimento de
Unidade Democrática), publicado textos na imprensa diária de defesa da causa,
apoiado a campanha presidencial de Norton de Matos, integrado, juntamente com
outras figuras do saber, a Comissão Promotora do Voto e militado na candidatura
do general Humberto Delgado à presidência da República, em 1958.
Em 1933, o conjunto de novelas As Três Mulheres de
Sansão foi galardoado com o Prémio Ricardo Malheiros, atribuído pela
Academia das Ciências de Lisboa, e, em 1935, foi eleito sócio correspondente desta
instituição, da qual se tornou sócio efetivo em 1957. Ao seu ativismo político
soma-se a tenacidade com que, durante mais de duas décadas, lutou pela
agregação forma e institucionalizada dos escritores até conseguir criar, apesar
das forças políticas contrárias, a Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1956,
de que foi fundador, o primeiro presidente eleito e o sócio n.º 1. No ano
seguinte, a Livraria Bertrand iniciou a edição das Obras Completas. Em
1959, foi publicado o romance Quando os Lobos Uivam, que, por causa do
seu conteúdo incómodo para o poder político, que o considerou injurioso das instituições
do poder, foi apreendido e o escritor processado, no entanto, em 1960, o
processo foi amnistiado. Nesse mesmo ano, um grupo de intelectuais (entre os
quais Francisco Vieira de Almeida, o proponente, José Cardoso Pires, David
Mourão-Ferreira, José Gomes Ferreira, Maria Judite de Carvalho, Joel Serrão,
Mário Soares, Vitorino Nemésio, Alves Redol, Luísa Dacosta, Vergílio Ferreira
como subscritores) candidatou Aquilino Ribeiro ao Prémio Nobel da Literatura.
Todos estes factos, juntamente com as homenagens que recebeu no Brasil quando
lá se deslocou em 1952, o movimento de defesa que se gerou em seu torno a
propósito da já citada publicação de Quando os Lobos Uivam (além da
defesa formal, da responsabilidade do advogado Heliodoro Caldeira, o escritor
recebe o apoio de cerca de três centenas de intelectuais portugueses, que
elaboram um abaixo-assinado pedindo o arquivamento do processo e François
Mauriac redigiu uma petição em seu amparo que foi assinada por figuras como
Louis Aragon e André Maurois, além de ter sido publicado em vários jornais e
revistas franceses) atestam o enorme prestígio que Aquilino Ribeiro possuía.
No momento em que se preparava, nomeadamente através da
Sociedade Portuguesa de Escritores, uma homenagem pública nacional, promovida por
várias cidades e tendo por base a celebração do cinquentenário da publicação da
obra Jardim das Tormentas, o escritor adoeceu repentinamente, vindo a
falecer no Hospital da CUF a 27 de maior de 1963.
Bibliografia
▪ AA. VV., Retratos para Aquilino,
Câmara Municipal de Paredes de Coura, 2000.
▪ ALMEIDA, Henrique, Aquilino
Ribeiro e a Crítica, Porto, Edições Asa, 1993.
▪ CENTRO DE ESTUDOS AQUILINO RIBEIRO
(ed.), Cadernos Aquilinianos.
▪ INSTITUTO PORTUGUÊS DO LIVRO (coord. Eugénio Rosa), Dicionário
Cronológico de Autores Portugueses.
▪ MALPIQUE, Cruz, Aquilino. O homem e o escritor.
Porto. Divulgação, 1964.
▪ MARTINS, Serafina, Aquilino
Ribeiro, Instituto Camões.
▪ MALPIQUE, Cruz, Aquilino. O homem e o escritor.
Porto. Divulgação, 1964.
segunda-feira, 5 de setembro de 2022
Cona: etimologia
O termo provém do latim cunnus, que significava «vulva», mas também foi usado como representação metonímica de mulher pelo poeta Horácio.
Cunnus deu origem ao português «cona», bem como ao castelhano «coño» (que pertence ao género feminino), ao italiano «conno», ao francês «con» e ao catalão «cony».
Relativamente à origem indo-europeia, existem diferentes hipóteses, não se tendo chegado até agora a nenhuma conclusão definitiva.
domingo, 4 de setembro de 2022
Análise do poema "Profissão de fé", de Olavo Bilac
Este poema é, no fundo, a «ars poetica» do Parnasianismo, cuja ideia básica de burilar a forma se encontra presente logo na epígrafe. É uma poesia racional, porque não é uma poesia inspirada, uma poesia que brota da alma. Fala-se em racionalização e trabalho intelectual.
As imagens que aparecem estão ligadas ao divino pagão ou ao campo semântico do trabalhar o mármore ou o ouro. Predominam as imagens do campo semântico do artesanato, da arte escultória. As próprias divindades estão presentes, não como entidades, mas como esculturas. Chega a estabelecer-se uma oposição entre o trabalho épico e o trabalho do ourives, que ele inveja.
Com efeito, Olavo Bilac era um poeta parnasiano, tão dotado que foi apelidado pelos seus contemporâneos e pelos críticos de «O príncipe dos poetas brasileiros». O título do poema relaciona-se com o facto de o texto apresentar o crédito estético do poeta. A expressão «profissão de fé» é de origem religiosa e é usada sempre que a Igreja católica recebe um novo membro no seu seio, constituindo ainda hoje um dos passos da chamada catequese, em cuja cerimónia o padre questiona esse novo membro se aceita Jesus Cristo como seu único senhor e salvador. Quando aceita, a pessoa faz, assim, a sua profissão de fé pública.
Qual é a relação deste culto religioso com a escrita, com a poesia? Um poeta, quando apresenta o seu crédito estético, comunica ao seu leitor tudo aquilo em que acredita como essencial à sua atividade poética. No caso concreto do poema de Olavo Bilac, a profissão de fé estabelece um paralelismo entre o ateliê de um escultor, a oficina de um ourives e o escritório de um poeta, estabelecendo, assim, uma analogia entre três profissões. Porém, antes de levar o leitor a visitar a sua oficina de escritor, ocupa-se com a descrição da oficina das outras duas atividades.
Por outro lado, um dos temas abordados ao longo da composição poética é a língua portuguesa, que o poeta trata como uma deusa. Assim, ao referir-se-lhe, trata-a como alguém que a celebra diante de um altar, o que significa que o poema contém vários referências religiosas, exemplificadas pelas ideias de altar, de fé, de crença, de divindade, de celebração, etc. Neste sentido, o título é outro elemento de religiosidade.
Enquanto parnasiano, Olavo Bilac introduz no poema elementos clássicos, entre os quais se destaca a mitologia, como atrás foi referido, ou determinado vocabulário, ou a inversão da ordem natural das palavras na frase (hipérbato ou anástrofe: «que outro a pedra corte», em vez de «que outro corte a pedra»).
Mas qual é a ideia central do tal credo estético do poeta? Simplesmente, a escrita é trabalho, é esforço. Sem isto, não há escrita que tenha qualidade. Para demonstrar a sua «tese», o poeta vai comparar as ferramentas do escultor (o martelo, o camartelo, uma ferramenta mais pesada, pois destina-se a cortar o mármore) e do ourives (o cinzel, uma ferramenta mais delicada, vista que se destina a trabalhar pedras preciosas) à pena do escritor. Assim, ele recusa o material pesado, a construção grandiosa, monumental do ponto de vista física, preferindo aproximar a técnica do escritor aos elementos estéticos do ourives. É por isso que ele compara, de um lado, a oficina do escultor e, do outro, a oficina do ourives. Deste modo, procura mostrar que o material e as ferramentas são diferentes consoante a profissão que se exerce e o trabalho que tem de se executar.
Além do trabalho em pormenor, que irá levar Gonçalves Crespo a chamar ao seu livro Miniaturas, Bilac quer ainda pedras raras e pequenas, como o cristal ou o ónix. É um escultório minucioso, daí que compare a pena do escritor ao cinzel do escultor. Ele imagina que a escrita é uma forma para vestir a ideia. É a velha oposição forma/conteúdo, com predomínio da primeira. É, de facto, um grande trabalho artesanal tentar colocar as ideias dentro dos limites do soneto. São várias as palavras ligadas ao campo da escultura: «pedra», «mármore», «cinzel», «ónix», «cristal», «prata», «lima, torce, aprimora, alteia», «ouro», «rubi». É esse fino trato, a elegância da delicadeza estética que o «eu» poético pretende aproximar à poesia. Mais: ele deseja sustentar-se no zelo, no tecnicismo, na minúcia do ourives para criar poesia.
O «eu» poético começa o poema rejeitando a eloquência da arte clássica, os temas, os materiais, nomeadamente da grega. Que outro opte por isso e trabalhe dessa forma, com esse material, adote esse tipo de estética. Ele não. De seguida, afirma sentir inveja do ourives quando escreve, isto é, a sua técnica, que deseja para si e para a sua escrita, e declara que o imita. Abandona o mundo do Classicismo e abraça o que é característico da ourivesaria. É neste ponto que entra a comparação entre a pena, o seu instrumento de trabalho, e o cinzel do ourives: enquanto escritor, ele irá usá-la como o este último usa o cinzel. E desenvolve-a da seguinte forma: a pena corre, desenha, enfeita a imagem (metáfora), veste a ideia (outra metáfora), escreve com tinta azul ("Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem / Azul-celeste"), torce (como o ourives torce o metal, isto é, dá a forma à joia, como a pena dá a forma às letras). Ao terminar ("e enfim"), no «verso de ouro» (o último verso de um soneto clássico), engasta, ou seja, dá o acabamento, cuidando da rima como se se tratasse de um rubi (nova comparação). Isto também significa que a escrita exige a escolha da palavra precisa, a preocupação com a construção das frases/dos versos, com o seu polimento, para que o poema se torne um objeto preciso, semelhante a uma joia rara.
Por outro lado, a preocupação primeira do poeta (parnasiano neste caso) prende-se com a produção de um poesia formalmente perfeita, isto é, dotada de uma linguagem elaborada, rima apropriada, sintaxe tradicional. Assim sendo, a sua preocupação central parece recair no estilo e não na profundidade das ideias e nas emoções e sentimentos. Ora, neste ponto, Bilac está a seguir um dos princípios do Parnasianismo: o da arte pela arte, ou seja, o culto da forma.
O seu objetivo, a sua finalidade é que a poesia saia da sua oficina, onde a trabalha, sem um defeito, ou seja, perfeita, graças ao seu trabalho aturado, perseverante e minucioso ("E que o lavor do verso", o que requer tempo ("E horas sem conto passo, mudo"). O sujeito lírico dedica ao seu ofício o tempo que for necessário, por isso é que afirma que «não conta» as horas que gasta, totalmente concentrado no que está a fazer ("A trabalhar, longe de tudo / O pensamento"). Porque é que isto acontece? De acordo com o poema, a escrita, dentre todos os ofícios, é o que exige mais perícia e dedicação ("Porque o escrever - tanta perícia, / Tanta requer, / Que ofício tal... nem há notícia / De outro qualquer").
Na estrofe 13, o «eu» associa a escrita e a poesia a uma divindade ("Por te servir, Deusa serena") e, nas seguintes, denuncia aqueles que escrevem e poetizam mal ("Blasfemo em grita surda e horrendo T Ímpeto, o bando / Venha dos bárbaros crescendo, / Vociferando...") e roga à Deusa, à Musa, que ignore esse «bando» ("Deixa-o"). Todo aquele que não se dedica ao cultivo da língua de forma aprimorada é apelidado de «infiel». Pode morrer tudo o que rodeia e é importante para o sujeito lírico, mas, desde que fique com a sua língua, sente-se feliz, mesmo que fique só e desamparado.
Análise do poema "Descrição da Vila do Recife"
Análise do poema "Ao padre Lourenço Ribeiro, homem pardo que foi vigário da freguesia de Passé"
Análise do poema "Ao mesmo assunto"
A escola do século XIX em imagens - VIII
John Frederick Lewis, Escola árabe (c. 1850) |
Embora a arte europeia tenda a representar sobretudo, como é natural e expectável, o mundo dos europeus, não faltam, a partir do Renascimento e da expansão europeia, exemplos de pinturas e outras obras artísticas que refletem a descoberta e o contacto com outros continentes, civilizações e culturas. Trata-se de um olhar, de início curioso e ocasional, que se vai tornando mais atento e sistemático à medida que as principais potências do Velho Continente constroem ou consolidam, no século XIX, os seus impérios coloniais.
John F. Lewis, um inglês que viveu a sua infância no Cairo, registou, nesta pintura a guache e aguarela, o ambiente de uma típica maktab, a escola muçulmana que correspondia sensivelmente ao que hoje designamos por ensino básico. Os rapazes que desejassem prosseguir os seus estudos ingressariam depois numa madrassa. Umas e outras são escolas religiosas, sublinhando a ligação umbilical, também patente no mundo ocidental, entre a escola e a religião. Só que, enquanto na Europa a laicização progressiva da sociedade foi abrindo espaço à separação entre a escola pública, destinada a formar cidadãos, e as escolas da Igreja, vocacionadas para a formação do clero, no mundo muçulmano essa distinção entre religião e laicidade tem-se mostrado mais difícil e custosa.
A pintura, de contornos difusos, mas onde não falta expressividade, foca-se nas figuras do professor, já idoso – a idade avançada é, neste contexto, um símbolo de sabedoria -, e de um dos seus alunos, que se prepara para recitar a lição. O apelo à memória, hoje tão criticado, era um elemento essencial dos sistemas de ensino mais tradicionalistas e conservadores. E será sempre fundamental, embora ninguém defenda hoje o decorar de matérias como um fim em si mesmo: a verdade é que só somos verdadeiramente conhecedores daquilo que conseguimos armazenar, de forma organizada e compreensiva, no nosso cérebro.
Análise do poema "Aos principais da Bahia chamados Caramurus"
Análise do poema "Ilha de Itaparica, Alvas areias", de Gregório de Matos
Análise do poema "Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia", de Gregório de Matos
sábado, 3 de setembro de 2022
Análise do poema "Buscando a Cristo", de Gregório de Matos
Manuel Botelho é o poeta representativo do Barroco no Brasil, diferente dos que vimos até aqui e cuja produção é muito pequena e não ficou muito conhecida no Brasil, ao contrário da de Gregório de Matos, que foi muito popular.
Por causa dessa sua popularidade, teve um problema semelhante ao de Luís de Camões: como não publicou nada em vida, não se sabe exatamente o que é ou não de sua autoria. Os seus poemas foram, na sua maioria, reunidos por James Amado.
Em comum com Manuel Botelho, Gregório possui o facto de terem estudado juntos em Coimbra. A diferença é que, enquanto o primeiro escreveu versos sobre o emblema de um Barroco sério, de que Música do Parnaso é exemplo, apesar de aí encontrarmos poemas de outro caráter; o segundo, além da vertente séria, tem uma vertente satírica, que o tornou popular. Ela é de tal ordem que ele ficou conhecido por "Boca do Inferno". A sátira está muito dentro do espírito barroco (ver Fénix Renascida e Postilhão de Apolo). Assim, ele não transgride o espírito barroco e escreve poesia satírica, séria e também sacra.
Gregório estudou em Coimbra, mas vai ser o primeiro a dar pistas sobre a sociedade brasileira. Manuel Botelho e Itaparica só falaram da riqueza da terra de forma ufanista. Por seu turno, Gregório fala da sociedade brasileira, o que faz sobretudo na vertente satírica da sua poesia.
O texto "Buscando a Cristo" é um soneto de tema sacro, comum ao Barroco ibérico, o que evidencia sua matriz religiosa e católica.
Apresenta as fases do próprio Cristo independentes, mas subordinadas a um todo, que é o corpo. Enumera as partes e vai-se dirigindo a cada uma: braços, olhos, pés. Isto é típico do Barroco. Usa também jogos de oposições: "Que para receber-me, estais abertos / E, por não castigar-me, estais cravados.". Mas esta oposição é aparente, porque, na realidade, há uma reiteração. Também na referência aos olhos, temos um jogo de palavras/oposições, mas igualmente aparente, porque a ideia é sempre de perdão. Isto faz parte de um certo gosto que o Barroco tem pelo ludismo, visto que deste movimento faz parte o espírito de jogo, que tem a ver com a participação do leitor, que tem de pensar para compreender o jogo. É por isto que a poesia experimental do século XX vai buscar as suas bases ao Barroco, pela forma como este pressupõe a participação do leitor. Claro que esta participação não é intencional como o é na poesia do século XX. No Barroco, a participação do leitor dá-se pelo gosto do próprio poeta em ser hermético e camuflar as suas ideias. Não parte do conceito de que o leitor é um criador, mas que o poeta é que tem recursos para dizer ou não dizer, de acordo com a ocasião.
Outra característica barroca é o uso da gradação (ex.: "Para ficar unido, atado e firme"), que ao mesmo tempo é uma forma de recolher de elementos que ficaram mais ou menos dispersos.
Camões escreveu o soneto "Alma minha gentil que te partiste", enquanto Gregório "Alma gentil, espírito generoso". O primeiro insere-se na sua linha temática do neoplatonismo e todo o poema gira em torno disso. Isto não aparece no poema de Gregório, que opõe mais as ideias de vida e de morte, ao passo que Luís Vaz fala de um amor que permanece mesmo depois da morte.
A forma de tratar a figura feminina é diferente: Camões usa formas mais suaves e equilibradas; Gregório de Matos socorre-se de uma forma mais retorcida, usando oposições ("Senão por dar-te a mágoa de perder-te") e a ideia de um prazer quase erótico na vida e na morte; o amor de Camões é mais espiritual.
Encontramos ainda em Gregório de Matos como característica barroca o espírito de imitação, próprio do Classicismo.
Uma última nota para o facto de a oposição vida/morte se manifestar de modos diversos: em Camões, valoriza-se o amor que continua, mesmo depois da morte; em Gregório, valoriza-se a moral.
Análise do poema "À Ilha de Maré Termo desta Cidade da Bahia - Silva", de Manuel Botelho
Manuel Botelho de Oliveira estudou em Coimbra e foi colega de Gregório de Matos, famoso pela sua língua viperina (era chamado "Boca do Inferno") e pela beleza da sua linguagem.
Manuel Botelho chegou a escrever um livro intitulado Música do Parnaso, que é muito curioso, porque em nenhum momento fala do Brasil. Aqui, faz jogos de palavras bem barrocos como "caavo", "anarda", por exemplo. Fala da caça ao javali, na Fonte das Lágrimas de Coimbra e de tudo, menos do Brasil. O mais curioso é que, no prefácio, afirma que escreveu o livro para mostrar que as musas, por um momento, também se fizeram brasileiras. Por outro lado, Manuel Botelho escreveu em várias línguas: português, castelhano, latim.
Apesar de brasileiro, adquiriu uma visão de colonizador. No fim da obra, coloca um poema que é o único que se refere ao Brasil de uma forma curiosa, com os mesmos objetivos do colonizador. Ele elege não a cultura, mas a natureza brasileira. Não se refere a acontecimentos citadinos nem à mulher brasileira, mas ao pescado, à fruta, aos legumes. O seu olhar para a terra é semelhante ao do colonizador, embora haja quem veja aí uma certa dose de brasilidade. Este poema apêndice tem uma inspiração nativa e um tom ufanista.
Silva é uma forma de composição bastante usual no Barroco.
O poema pode dividir-se em várias partes:
👉 Numa segunda parte do poema, o «eu» poético fala dos habitantes da ilha, que são os «pescadores em saveiros». Aproveita a palavra «peixes» para expressar uma ideia que não tem nada a ver com o que está a falar: "ser pequeno no Mundo é desventura".
Desde a Carta de Caminha que a literatura mostra as preocupações económicas do colonizador com a exploração da terra, que é boa para qualquer tipo de plantação. Mesmo os frutos tipicamente europeus são aí produzidos em maior quantidade e qualidade.
Segue-se a enumeração dos frutos tipicamente brasileiros: coqueiros, cajus (variação de cor e sabor; jogo de palavras - " e como vários são nas várias cores"), castanha, pitangas, pitombas (exploração do sensorialismo), araçázes, bananas (inclui a referência à característica barroca da "ordem na desordem": apresenta diversos fragmentos e no fim faz uma síntese: "... é fruto, é como pão, serve em conduto...").
A enumeração da fruta prossegue: pimenta (caracterizada pela qualidade, quantidade e superioridade); mamão, maracujá (em toda a poesia brasileira, o maracujá pelo seu sabor e o ananás pela sua forma aparecem como rainhas das frutas do Brasil. No texto Sermão da Fruta, do franciscano A. Pereira, comparam-se os frutos aos pecados e aí o maracujá ocupa um lugar de destaque), ananás (temos o jogo visual, quando se refere à casca do ananás e outro elemento barroco, que é concetualismo: aproveita a fruta para falar de um conceito - "não há c'roa no mundo sem espinhos". É a descrição do ananás que ocupa um maior número de versos e termina com uma síntese, depois da dispersão), mangavá (caracterizado pela cor, forma e abundância; gosto barroco pelo sensorial), maracujá.
Segue-se o louvor dos legumes: mangarás, batatas, mandioca (há uma lenda que diz que a mandioca foi dada a conhecer aos índios por Tupã ou Sumé - figura mitológica saída das águas -, aqui tomado como S. Tomé. Há uma apropriação da lenda por motivos religiosos, que aparece noutros autores. É caracterizada por uma série de elementos barrocos: abundância, gradação, comparação com o pão de trigo para vincar a superioridade do beiju; sensualização, jogo concetual), arroz.
Depois de caracterizar todos os elementos referidos, faz um jogo com o A, que é também um elemento barroco e faz parte do seu ludismo, pois gosta de jogos formais e concetuais. O autor chega a imitar Camões, o que também é típico do Barroco, bem como um certo tom grotesco, resultante da mistura do clássico (Camões) com a descrição de frutos e legumes.
Em resumo, podemos dizer que, em todos os aspetos, se marca a superioridade dos elementos brasileiros em relação aos europeus. O poema termina com uma espécie de síntese, onde se fala da Ilha da Maré e se recorre à mitologia: Vénus e Fénix, que morre para renascer e ela faz parte do espírito de renovação barroca. Subjacente está um fundamento religioso, quando se considera Maria superior a Vénus.
Itaparica segue os mesmos passos de M. B. de Oliveira; apenas acrescenta a pesca da baleia.