A frase inicial (“Antes, porém, que
vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões”)
funciona como uma charneira que liga dois momentos do sermão: o anterior, onde
se louvaram as virtudes dos peixes (caps. II e III), e o posterior (caps. IV e
V), no qual se apontarão os seus defeitos. Esta transição é vincada pelo
conector «porém», que possui um valor adversativo e, assim, marca o
contraste entre os dois momentos da obra. O orador acrescenta, logo de seguida,
que as repreensões são feitas com o intuito de agitar as consciências dos
homens e os fazer refletir sobre os seus atos (“Servir-vos-ão de confusão”),
ainda que não sirvam para corrigir as atitudes e os comportamentos (“já que não
seja de emenda”). Outro conector a ter em conta é «Antes […] que», de
valor temporal, que indicia a já considerável extensão do sermão e o provável
cansaço do auditório, pelo que era essencial manter o seu interesse.
Note-se que Padre António Vieira dá
início às repreensões dos peixes, seguindo o método usado para os louvores: do
geral para o particular. Quer isto dizer que, no capítulo IV, apresentará os
vícios gerais dos peixes e, no V, tratará dos casos particulares.
Qual é a primeira
repreensão feita pelo orador? A ictiofagia:
- Os peixes
comem-se uns aos outros;
- Os peixes grandes comem os pequenos, por isso,
para alimentar um grande, são precisos muito pequenos.
Tendo em conta o caráter metafórico
e alegórico do Sermão, a primeira repreensão – e o tema central do
capítulo, como se verá a seguir – é a exploração do homem pelo homem, mais
especificamente a dos pobres e indefesos (os pequenos) pelos poderosos, isto é,
detentores de poder financeiro, social, institucional, etc. (os grandes), ou
seja, a antropofagia social.
Este escândalo é intensificado pela
circunstância de serem os grandes que comem os pequenos, daí que “como os
grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil para um só grande.”
A hipérbole (“não bastam cem pequenos, nem mil”) traduz a voracidade com que os
peixes se comem e a gula / voracidade dos grandes. E a situação fosse a
inversa, isto é, se os pequenos comessem os grandes, o mal seria menor, visto
que “bastara um grande para muitos pequenos”. Resumidamente, os homens mais poderosos
subjugam e exploram os mais fracos e vulneráveis. Se quiséssemos, como fazem os
alunos por vezes, questionar a importância do estudo deste sermão, poderíamos
chamar a atenção para a sua atualidade: não é muito
difícil encontrar casos, hoje em dia, de empresários sem escrúpulos que
exploram os “seus” trabalhadores (três exemplos: em 2021, foi notícia a
exploração de trabalhadores estrangeiros numa exploração de Odemira; alguns
funcionários da Amazon eram forçados a urinar em garrafas de água, durante os
turnos, para cumprirem as metas da companhia; estima-se que, em 2016, existiam 40,
3 milhões de pessoas vítimas de escravatura moderna, das quais 62% eram vítimas
de trabalho forçado, sendo que, no caso de Portugal, estaríamos a falar de
cerca de 26 000 indivíduos nestas circunstâncias), políticos prepotentes e
envolvidos na prática de crimes, a discriminação de pessoas de outras etnias,
credos, sexualidade, etc.
De seguida, o orador recorre às
palavras de Santo Agostinho (argumento de autoridade) para comparar a atitude
que critica nos peixes com o comportamento dos homens: “Os homens, com suas más
e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros.” É a
antropofagia social: os homens poderosos exploram os
pobres e indefesos.
O escândalo maior – que causa o
espanto de Padre Vieira – é o facto de os homens se comerem uns aos outros, sendo
todos irmãos e vivendo no mesmo elemento. Qual é a causa deste facto? A resposta
é clara: as “más e perversas cobiças”.
Estilisticamente, no primeiro
parágrafo há a destacar, desde logo, a reiteração do verbo
«comer», sugerindo, quando se refere ao ser humano, a exploração do ser humano
pelo seu semelhante (metáfora). Por outro
lado, a antítese entre «grandes» e «pequenos» representa os homens com
poder, que exploram e agridem o seu semelhante, como “lobo do próprio homem”.
Ainda neste parágrafo, Vieira recorre à gradação: começa por
apresentar o vício (o facto de se comerem uns aos outros), depois explicita a
sua gravidade e as suas consequências: “não bastam cem pequenos, nem mil, para
um só grande”.
A finalizar o primeiro parágrafo,
Vieira estabelece um paralelismo entre a sua atitude e a de Santo Agostinho,
cujas palavras e exemplo constituem um argumento de autoridade:
Santo
Agostinho
↓
pregava aos
homens
↓
exemplificava
nos peixes
|
|
António
Vieira
↓
prega aos
peixes
↓
exemplifica
nos homens
|
Neste sentido, o orador incentiva os
peixes a observarem o que se passa na terra através de uma apóstrofe (Vieira
simula que está a dirigir-se aos peixes quando, na verdade, fala para os
homens, no sentido de os alertar para a desumanidade e a exploração praticada
pelos colonos), mas eles olham para o Sertão, onde vivem os Tapuias, uma tribo
que praticava o canibalismo, o que significa que os peixes interpretaram
literalmente as forma do verbo «comer». Ele pretende que olhem para a
cidade, espaço que considera um «açougue», onde “muito mais se comem os brancos”
(embora os Tapuias sejam canibais, não comem tantos homens como os brancos se
exploram entre si), o que constitui uma denúncia da antropofagia social: os homens
exploram e vivem às custas uns dos outros. Deste modo, os peixes observarão nos
homens os seus próprios defeitos, nomeadamente o modo como se comem, isto é, se
exploram entre si. A repetição da expressão
«para cá» confere vivacidade ao discurso e realça o facto de o orador se
encontrar no local onde a corrupção ocorre. Como o Sermão é alegórico,
na verdade, Vieira está a dirigir-se aos humanos: sabendo que, ao referir-se ao
vício de se comerem uns aos outros, os colonos pensariam que se estava a
referir aos rituais antropófagos dos índios, o orador esclarece-os que se está
a referir aos brancos. Estilisticamente, Vieira faz uso de várias formas
verbais que apelam à visão (“vejais”, “olhai”, “vedes”), algumas no imperativo,
para apresentar os factos de modo mais vivo, para confrontar os ouvintes com a
realidade que está a descrever, isto é, para demonstrar a «carnificina» (metáfora) que ocorre
nas cidades, onde os homens se exploram (metáfora «comem»)
numa escala muito superior à que é praticada pelos verdadeiros canibais do
Sertão, os Tapuias. Por outro lado, constitui uma forma de impressionar e
emocionar o auditório. Além disso, para captar os ouvintes e criar neles um
forte visualismo, além do imperativo, Vieira
socorre-se do vocativo/da apóstrofe (“peixes”),
do advérbio com valor de negação «não» e da repetição da interrogação
retórica. Regressando ao verbo «comer», ele é usado no
sentido literal (por exemplo, em “Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos
outros?”, dado que esses índios eram uma tribo antropofágica) e metafórico com o
sentido de explorar (“Muito mais açougue é o de cá, muito mais se comem os
brancos”). De seguida, através do paralelismo – verbo «ver»
+ (quantificador) determinante demonstrativo + verbo no infinitivo (“vedes todo
aquele andar”), da anáfora (“vedes”),
da enumeração e da gradação (“bulir”, “andar”,
“concorrer”, “cruzar”) e da antítese (“subir e
descer”, “entrar e sair”) –, o texto adquire um ritmo rápido, sugerindo o bulício
da cidade, o desconforto provocado pela falta de “sossego” e “quietação”, em
suma, a vasta dimensão da antropofagia social: “Pois tudo aquilo é andarem
buscando os homens como hão de comer, e como se hão de comer”.
Depois desta generalização, Vieira
centra-se num caso particular: o de alguém que acabou de morrer. É a
exemplificação do orador para o que atrás referira. Este exemplo mostra como os
familiares e os amigos do morto recente procuram “despedaçá-lo e comê-lo”: os
herdeiros, os testamenteiros, os legatários, os acredores, os oficiais dos
órfãos, dos defuntos e dos ausentes, o médico que “o curou ou ajudou a morrer”
(atente-se na ironia), o sangrador,
a mulher, o coveiro, “o que lhe tange os sinos” e “os que, cantando, o levam a
enterrar”. Todas as figuras enumeradas mostram grande indiferença e
insensibilidade, pois ignoram e são completamente indiferentes a esse momento
trágico e pensam apenas em se apoderar e aproveitar dos bens do defunto. Neste
contexto, assume grande relevância de novo a polissemia do verbo
«comer», com vários significados (aproveitar, malfazer, usufruir, roubar,
extorquir, enganar, ludibriar, mentir), de acordo com a(s) figura(s) da enumeração. Por outro
lado, a enumeração e a anáfora acentuam a
ideia de que o homem que acaba de morrer é saqueado por todos os que se querem
apoderar dos seus bens.
Qual é a conclusão? “[…] enfim,
ainda o pobre defunto o não comeu a terra e já o tem comido toda a terra.” Esta
metáfora joga com o duplo sentido da palavra “terra” (trocadilho): na primeira
ocorrência (“o não comeu a terra”), refere-se a sepultura (onde o corpo do
defunto foi depositado), enquanto, na segunda (“já o tem comido toda a terra”),
a palavra refere-se à sociedade e insinua a rapidez e a intensidade com que o
ser humano é explorado.
Este primeiro exemplo evidencia a
crueldade da situação e o quão mórbida e inaceitável que ela é, porém o orador “desculpa”
aqueles que tiraram dividendos do morto, porque, para ele, pior são aqueles que
exploram, sem escrúpulos, os vivos: “Já se os homens se comeram somente depois de
mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento.” É o caso
dos inúmeros Job (personagem bíblica cuja riqueza – material e espiritual –
despertou a inveja do diabo, que lhe retirou tudo, à exceção da sua alma, que
se manteve fiel a Deus, e cujo modelo de sofrimento, perseguição e resignação
reforça o caráter paradigmático do caso apresentado) que povoam a terra.
Para confirmar com mais veemência a
crueldade humana, Padre António Vieira ilustra a sua tese com mais um exemplo:
é o caso de um homem perseguido pela justiça perversa e viciada, um “desses que
andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes” e que é explorado por
vários: o meirinho, o carcereiro, o escrivão, o solicitador, o advogado, o
julgador, sendo sentenciado e executado antes mesmo de ser julgado. O orador
sublinha a crueldade dos homens, comparando os corvos e
os homens, para concluir: “São piores os homens que os corvos.” Esta comparação
enfatiza a gravidade do comportamento dos seres humanos quando é confrontado
com o das aves necrófagas, dado que estas apenas se aproveitam de outros seres
já mortos, ao contrário do que fazem aqueles.
Qual é a relação entre ambos?
Semelhanças |
|
Diferenças |
. Os corvos
devoram outros animais. . Os homens aproveitam-se de
outros homens. |
|
. Os corvos comem os animais
mortos. . Os homens aproveitam-se de
homens vivos. |
De seguida, Padre António Vieira,
num tom mais violento e interventivo, mostra toda a sua indignação pela maldade
dos homens através do contraste entre os grandes e os pequenos.
Peixes
grandes |
Peixes pequenos |
. Comem os pequenos. . Têm “o mando das cidades e das
províncias”. . Nunca se contentam: “devoram e
engolem os povos inteiros”. |
. São comidos “de qualquer modo”,
“um por um, ou poucos a poucos”. . São “o pão quotidiano dos
grandes” – são comidos quotidiana e indiscriminadamente. . Padecem (sofrem). |
O que mais espanta e indigna o
orador é que “os grandes que têm o mando das Cidades e das Províncias” não se
contentam em comer os pequenos um a um, antes devoram os povos inteiros, como
se devora o pão. Há uma diferença entre o pão e os outros comeres:
Pão |
Outros
comeres |
. come-se
todos os dias. |
. carne: há
dias de carne; . peixe: há
dias de peixe: . frutas: comem-se em diferentes meses do ano. |
Tal como o pão é um alimento
quotidiano e se “come com tudo”, também os pequenos “são o pão quotidiano dos
grandes” e “com tudo e em tudo são comidos”. A metáfora “São o pão
quotidiano dos grandes.” associa os pequenos ao pão, aos mais desprotegidos e
vulneráveis. Tal como o pão é acompanhamento regular de outros alimentos,
também os mais frágeis são constantemente explorados pelos mais poderosos. Deste
modo, a metáfora traduz a ganância e a avidez dos poderosos e a
fragilidade dos mais fracos, que estão continuamente expostos ao “apetite”
voraz dos primeiros. Neste contexto, a citação do Antigo
Testamento (“Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.”) traduz a repulsa de
Vieira por haver homens que exploram outros como se “tragassem” um pedaço de
pão. Por outro lado, como sucede frequentemente ao longo do sermão, a
transcrição bíblica confere autoridade à argumentação do pregador (o mesmo
efeito é obtido com a referência a figuras bíblicas como, por exemplo, Santo
Agostinho, Santo António, etc.) e enfatiza a condenação deste tipo de atitudes –
isto é, o facto de os homens poderosos dominarem e explorarem os mais fracos –,
que Deus e o texto sagrado reprovam totalmente. Atente-se na anáfora e na gradação em “[…] com
tudo, e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo, nem fazendo
ofício, em que os não carreguem, em que os não multem, e que os
não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem
[…]”, que apresentam as ações dos “grandes”, isto é, dos que exploram e
humilham, num crescendo de violência, sugerindo a voracidade e a brutalidade
com que os poderosos exploram e oprimem os mais fracos. Virando-se novamente
para os peixes, o pregador acusa-os de se comportarem e terem os mesmos
defeitos que acabara de apontar aos homens: os grandes comem os pequenos aos
cardumes, de dia e de noite, “às claras e às escuras”. Outra forma de o
pregador reforçar a sua argumentação passa pela personificação dos peixes e
pela simulação da sua anuência ao que ele diz em resposta à sua pergunta (“Parece-vos
bem isto, peixes?”): “Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais
todos dizendo que não […]”. Da mesma forma que assegura o castigo divino para
os homens que cometeram as maldades e injustiças, adverte os peixes que serão
castigados caso persistam nos mesmos erros. Para comprovar isto, evoca o
testemunho proveniente da experiência de vida e sabedoria dos mais velhos (“Os
mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado…”), que
assistiram à exploração dos índios brasileiros pelos colonos portugueses, que, “em
vez de governar e aumentar o (…) Estado”, o destruíram e se “fartavam em comer
e devorar os pequenos”.
Por tudo isso, o orador faz uma advertência: ninguém –
grande ou pequeno – está imune de ser «comido» por outro ainda maior. O mesmo
se passa com os peixes, como o comprova o exemplo do xaréu, que, “correndo
atrás do bagre”, como o cão atrás da lebre (comparação), não se
apercebe do tubarão, que o engole de uma vez. Este exemplo fundamenta,
portanto, o conselho do pregador, pois qualquer poderoso (“grande”) pode passar
facilmente de predador a presa de outros “peixes” maiores. Por outro lado, enfatiza
a ideia de que os grandes comem os mais pequenos, sendo a sua superioridade
relativa e condicional. Segue-se uma citação de Santo
Agostinho (“Praedo minoris fit praeda maioris”, ou seja, “O que aprisiona o
mais fraco torna-se presa do mais forte.”), que mostra que os homens devem ter
consciência de que mesmo aqueles que exercem o seu poder sobre alguém mais
fraco são, mais tarde ou mais cedo, dominados ou oprimidos por alguém mais poderoso.
Já antes o orador se referira aos homens que exploram os mais fracos no Brasil,
isto é, que eram aí “grandes”, e que, quando viajam para Portugal, encontram cá
outros maiores “que os comem também a eles”. O mesmo se passa com os peixes,
como mostra a seguir e já vimos.
Nesta sequência, dirige um conselho aos peixes
que pode funcionar como remédio para a ictiofagia / antropofagia social: zelar
pelo bem comum – “mais repúblicos e zelosos do bem comum, que este prevaleça
contra o apetite particular de cada um”, ou seja, aconselha-os a que haja menos
egoísmo e mais altruísmo; o bem comum deverá prevalecer sobre os desejos
individuais. Além disso, apela à união dos peixes contra os seus inimigos (“tanto
inimigos de fora e tantos perseguidores tão astutos e pertinazes”), isto é, os
pescadores, que os perseguem incessantemente com as suas armadilhas: redes,
nassas, linhas, anzóis, fisgas e arpões; canas e “cortiças armas ofensivas”.
Não lhes bastarão tantos e tão armados inimigos de fora para ainda se guerrearem
entre si, “comendo-vos uns aos outros?” Este passo pode ser interpretado como
uma alusão à guerra ofensiva dos holandeses na colónia do Brasil e um apelo aos
Portugueses para os combater: “Cesse, cesse, já, irmãos peixes…”. Dito de outra
forma, para além de os peixes correrem muitos perigos, de dia e de noite, e
como têm muitos inimigos “de fora”, é necessário cessar esta “perniciosa
discórdia”, para que haja paz, vivendo “muito quietos, muito pacíficos e muito
amigos”. Por este motivo, Padre António Vieira incentiva à moderação e à benquerença
entre os peixes, recordando-os da forma como escutavam a pregação de Santo
António: “Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito amigos todos,
grandes e pequenos, quando vos pregava S. António?” A evocação desta lenda em
torno do santo reforça o apelo que o orador dirige aos peixes: se lhes foi
possível ouvir o santo com devoção e atenção, eles serão capazes do mesmo
comportamento pacífico e fraterno, que limitará o seu “apetite particular” e os
impedirá de se comerem uns aos outros.
De seguida, Vieira contra-argumenta:
é necessário explorar o trabalho dos outros para sobreviver, só têm esse meio
de subsistência. Neste passo pode ler-se uma alusão à escravatura no Brasil. Porém,
de imediato rebate essa ideia, lembrando que os bens do mundo chegam para todos
e dá o exemplo do dilúvio e da arca de Noé, os predadores (os animais da terra
e do ar) não devoraram as suas presas e sobreviveram com o alimento que lhes
era dado, por imperativo de conservação e aumento da espécie. Deste modo, os
peixes devem seguir o seu exemplo, sendo que Vieira pretende mostrar que o ser
humano não necessita de explorar e oprimir o seu semelhante para sobreviver
(por exemplo, através da escravatura), antes pode e deve encontrar outra forma
de se sustentar.
O comportamento dos homens é
semelhante, pois enganam e deixam-se enganar facilmente. O orador comprova a
sua tese com uma crítica ás ordens religiosas de Malta, de Avis, de Cristo e de
Santiago, que recrutam pessoas para lutar pela fé cristã, levando-as à morte. É
pela vaidade de envergar um hábito (branco → Ordem de Malta; verde → Ordem de Avis; vermelho → Ordem de Cristo e Santiago) que os homens morrem.
Ou seja, a vaidade e a ignorância dos homens manifestam-se no facto de acabarem
por morrer na guerra, porque querem adquirir honrarias e bens através do ofício
das armas (por exemplo, servindo as ordens religiosas). Esta estratégia não faz
parte da essência de uma ordem religiosa, cujo dever passa por ensinar e
transmitir os valores de Deus. Ou seja, neste passo, Vieira censura os homens
pela ignorância (“cegueira”), visto que a sua ambição por honrarias e títulos
os levam a arriscar e a perder, por vezes, a vida (na guerra).
De seguida, dá o exemplo dos homens
do Maranhão, que também se deixam pescar/enganar pela vaidade: vem um mercador
de Portugal para o Maranhão, com uns “retalhos de pano” fora de moda, que
ninguém aprecia; dá uns retoques na mercadoria e coloca-a à venda por um preço
muito superior ao seu valor, o que faz com que os vaidosos (“os bonitos, ou os
que o querem parecer, todos esfaimados aos trapos”) comprem o que querem,
gastem o dinheiro que têm e se endividem. Há homens que se deixam levar pela
vaidade, valorizando a beleza e a aparência, fascinam-se com os “trapos”
(tecidos, roupas) que chegam de Portugal (já fora de moda) e endividam-se para
os comprar, perdendo tudo o que ganharam durante um ano de trabalho:
“Todos a
trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no tabacal;
e este trabalho de toda a vida, quem o leva?” |
|
“Não o
levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os
pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas,
nem as joias.” |
“em que se
vai e despende toda a vida?” |
“No triste
farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano.” |
Os homens (por causa da vaidade) e
os peixes (por causa da ignorância e da cegueira) eram facilmente enganados e
morriam. Por isto, Padre António Vieira exorta os peixes a não se deixarem
iludir pela vaidade, desde logo porque Deus os “vestiu do pé até à cabeça” de forma
vistosa, com cores “prateadas e douradas”, isto é, com escamas brilhantes e
vistosas, que perduram intemporalmente (“vestidos que nunca se rompem, nem
gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as modas.”).
De novo, Vieira termina o capítulo
com o exemplo de Santo António que, ao contrário dos peixes e dos homens, nunca
se deixou iludir pela vaidade, recusou galas e vaidades, trocou a riqueza pela
simplicidade (“Sendo moço e nobre, deixou as galas (…), trocou-as por uma loba
de sarja e uma correia de cónego regrante; e depois (…) trocou a sarja pelo
burel e a correia pela corda.”) e, por isso, atingiu a santidade. De facto,
Santo António é o exemplo vivo de alguém que se opõe à vaidade: sendo rico,
vestindo-se bem, ao converter-se, ao mudar de vida chamado por Deus, alterou a
sua indumentária, passando a vestir-se humilde e pobremente.
Assim, com esta postura simples e
humilde, Santo António conseguiu converter muitos homens que o escutaram: “Com
aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só estes se não enganaram
e foram sisudos.”