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quinta-feira, 2 de maio de 2024

Enredo / Resumo da ação de O Fantasma dos Canterville

    Hirsham B. Otis, um ministro americano, muda-se com a família para Inglaterra, onde acaba de comprar uma velha propriedade – Canterville Chase – que pertencia há séculos aos Canterville, uma velha família inglesa aristocrática. Porém, a aquisição não está isenta de problemas, visto que o próprio Lorde Canterville adverte o Sr. Otis para não a comprar, afirmando que é assombrada pelo fantasma do seu antepassado, Sir Simon, desde o século XVI. No entanto, o americano, que diz vir de um país moderno demais para acreditar em fantasmas, não crê na história e declara que esta não passa de uma superstição europeia.
    Algumas semanas depois, em julho, o Sr. Otis e a família, composta pela esposa – a Sr. Otis – e pelos quatro filhos – Washington, Virgínia e os gémeos – mudam-se para a casa. A viagem entre a estação de caminho de ferro e a propriedade é demorada e, à medida que se aproximam dela, acontecem alguns fenómenos estranhos, levando a que aquela bela noite de verão se torne desagradável, com o céu coberto de nuvens e algumas gotas grossas de chuva a caírem. À chegada, a família é recebida pela Sr. Umney, a governanta. Na biblioteca, deparam com uma mancha de sangue no chão, junto à lareira. Questionada, a governanta informa-os que a mancha não pode ser removida e que se tornou uma atração turística, pois está ali desde que Sir Simon assassinou a esposa três séculos atrás, mais concretamente desde 1575. O marido assassino desapareceu pouco tempo depois do crime e, embora o seu corpo nunca tenha sido encontrado, o seu fantasma assombra Canterville Chase desde essa época.
    A família reage ao relato da Sr. Umney com a mesma descrença que o Sr. Otis evidenciou inicialmente quando Lorde Canterville lhe falou pela primeira vez no espectro. Washington, o filho mais velho do casal, não se impressiona com a mancha e rapidamente a elimina, usando produtos de limpeza modernos.
    No dia seguinte, contudo, a mancha reaparece, facto que se repete todas as manhãs, apesar da sua diligente e diária remoção por parte de Washington. Estranhamente, a mancha muda constantemente de cor. Assim, a família começa a acreditar na existência do fantasma, mas sem nunca revelar medo. Certa noite, o espectro aparece: o Sr. Otis ouve-o passar diante do seu quarto e oferece-se-lhe algo para lubrificar as correntes que lhe prendem os membros, o Lubrificante Tammany Rising Sun, de modo a parar o rangido produzido por aquelas e permitir que a família durma em paz. O fantasma, cuja aparição tinha como objetivo assustar os Otis, fica indignado, quebra a garrafa do lubrificante e prossegue o seu caminho, porém, logo de seguida, é abordado pelos gémeos, que lhe atiram um travesseiro à cara. Sir Simon esconde-se no seu esconderijo secreto, uma câmara escondida numa ala da casa, completamente chocado e escandalizado. Para se acalmar, recorda o seu maior sucesso, a maneira como aterrorizou a família Canterville e os seus amigos, deleitando-se com os sustos que infligiu a diversos aristocratas ingleses do passado. Essa memória deixa-o mais confuso e intrigado sobre a reação daquela família estrangeira e jura a si mesmo vingar-se dela.
    Durante alguns dias, Sir Simon limita-se a fazer a mancha reaparecer todas as manhãs e mantém-se afastado da família, enquanto magica uma forma de a assustar. Assim, decide vestir a sua velha armadura e passear-se pela casa com ela. Uma noite, espera que os Otis adormeçam, para pôr em prática o seu plano, no entanto acaba por despertar a atenção da família quando deixa cair a armadura enquanto a tenta vestir. Rapidamente, vê-se rodeado pelos Otis e os gémeos atacam-no com as suas zarabatanas de brincar, enquanto o pai lhe aponta uma arma verdadeira, como se o espectro fosse um simples ladrão. Sir Simon tenta ainda assustá-los com o seu riso maléfico, contudo a Sr. Otis, pensando que está doente, surpreende-o sugerindo-lhe que tome um remédio para a indigestão. Todas estas humilhações deixam-no doente, pelo que ele se retira para o seu esconderijo e nele permanece durante algum tempo, para recuperar a coragem e restaurar a saúde.
    A terceira tentativa de intimidação é a mais elaborada de todas: decide vestir o seu traje mais assustador e oferecer um tratamento individual a cada membro da família, à exceção de Virgínia, pois esta nunca o insultou e é naturalmente gentil. No entanto, a família tem outros planos e, quando ele se prepara para lançar o seu ataque, envergando o traje mais assustador, complementado por uma velha adaga enferrujada, depara, no corredor, com um espectro aterrorizador montado pelos Otis (um fantasma falso constituído por uma vassoura, um lençol e um nabo oco), que o assusta terrivelmente. O pobre Sir Simon esconde-se novamente e não ousa regressar para observar melhor esse outro fantasma antes de amanhecer. Quando, finalmente, o faz, descobre que não passava de um mero boneco criado pelos gémeos para troçar dele.
    Diminuído por mais uma humilhação, Sir Simon permanece no seu esconderijo e nem sequer se preocupa em fazer reaparecer a mancha de sangue. Limita-se a sair de vez em quando para continuar a assombrar a casa – e até começa a usar o óleo lubrificante para impedir que as correntes façam barulho e, assim, os gémeos as ouçam –, mas procura permanecer o mais discreto possível. No entanto, apesar desta nova postura, não consegue evitar as partidas preparadas por membros da família. Depois de escorregar num pedaço de manteiga deixado pelos gémeos, magica uma nova vingança: veste um disfarce que não usa há setenta anos – Reckless Rupert ou Headless Earl – e prepara-se para assustar a família, no entanto os gémeos estão prontos para ele. Assim, mal entra no cómodo dos miúdos, aciona uma armadilha que lhe prepararam e um balde de água colocado por cima da porta cai sobre si. Humilhado pela quarta vez, foge de novo para o seu quarto, simultaneamente assustado, derrotado e indignado. O impacto físico deste último fracasso é tão grande e ele fica tão debilitado que não sai da cama durante semanas e desiste de assustar a família para sempre.
    Como deixou de ver o fantasma, a família Otis acredita que desapareceu. Quando recebem a visita da família do jovem Duque de Cheshire, pretendente à mão de Virgínia, por quem está apaixonado, a qual já se cruzou com o espectro no passado, este decide visá-lo, contudo está com tanto medo dos gémeos que decide nada fazer.
    Alguns dias depois, Virgínia encontra o fantasma por acaso, que está tão desesperado que não lhe presta atenção. A jovem fica tocada pelo seu sofrimento e procura confortá-lo. Em simultâneo, repreende-o por ter assassinado a esposa e por ter roubado as suas tintas para renovar a mancha no chão da biblioteca (o que explica as mudanças de cor) e a impossibilitou de pintar o que desejava. Além disso, garante-lhe que os gémeos regressarão à escola no outono, o que lhe trará algum alívio. Sir Simon conta-lhe que os irmãos da sua esposa o puniram com a morte por inanição e que foi amaldiçoado a errar sem descanso por séculos. Acrescenta ainda que, de acordo com uma profecia, a sua maldição será quebrada pelas lágrimas e orações de uma jovem por si. Além disso, declara que os habitantes de Canterville Chase saberão que o seu martírio terá terminado quando a amendoeira da propriedade, há muito tempo estéril, florescer de novo. Como Virgínia é jovem e boa, Sir Simon acredita que ela será a rapariga predita pela profecia e pergunta-lhe se o irá ajudar. Ela, corajosamente, aceita rezar pelo descanso dele e ajudá-lo a escapar à maldição. Assim, segue o fantasma e os dois desaparecem numa área secreta da casa.
    Rapidamente, a família nota a ausência de Virgínia, fica preocupada e procura-a pela casa e pelo jardim. Como não a encontram, começam a desconfiar de um grupo de ciganos que tinha, com o seu consentimento, acampar na propriedade. Decidem, então, prosseguir as buscas no dia seguinte, porém, à meia-noite, quando todos estão prestes a retirar-se para os seus aposentos, ouve-se um barulho terrível na casa e Virgínia aparece por detrás de um painel no cimo da escada. A jovem está exausta e transporta consigo um estranho cofre contendo as joias com que Sir Simon a tinha presenteado. De seguida, conduz a família até a um esconderijo, onde Sir Simon foi morto de fome pelos seus cunhados e onde o seu corpo se encontra, acorrentado à parede com um prato de comida e um jarro de água colocados à sua frente, mas fora do seu alcance. Esta foi a forma encontrada pelos irmãos da sua esposa para vingarem o seu assassinato. Deste modo, o fantasma, com a ajuda de Virgínia, parece ter encontrado a paz, o que é confirmado quando os gémeos observam a amendoeira em flor.
    A família Canterville é notificada dos últimos acontecimentos e o corpo de Sir Simon é sepultado no pequeno cemitério. O Sr. Otis manifesta a vontade de devolver as joias dadas a Virgínia pelo fantasma, pois parecem ser muito valiosas, porém Lorde Canterville recusa, considerando o extraordinário serviço que a jovem prestou ao seu antepassado e que o fantasma fazia parte da venda / compra da casa.
    No final da obra, ficamos a saber que, muito tempo depois, Virgínia se casou com o Duque de Cheshire. Após a lua de mel, o casal presta homenagem a Sir Simon colocando flores no seu túmulo. O marido pergunta-lhe o que fez para libertar o fantasma, mas a jovem responde-lhe que prefere manter isso em segredo, decisão que o Duque aceita, certo do amor da esposa. Quanto às joias, Virgínia usa-as quando conhece a rainha de Inglaterra.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Resumo do capítulo I de "O Fantasma de Canterville"

    Hirsham B. Otis, um ministro norte-americano, acaba de comprar a propriedade Canterville Chase a Lord Canterville, contrariando quem o avisa de que aquele local está assombrado e que, portanto, está a cometer um erro. Lord Canterville explica-lhe que a casa é o lar da família Canterville há várias gerações e informa-o que está totalmente mobilada, mas inclui também um fantasma que a assombra há três séculos, o que deixa os habitantes da propriedade muito desconfortáveis. Atualmente, esta ato pode parecer uma simples transação comercial, porém, na época, a aristocracia simplesmente não vendia as suas propriedades, o que mostra estarmos a entrar numa era de algumas mudanças. O dono da casa acrescenta que a duquesa viúva de Bolton teve um ataque de medo quando um esqueleto colocou as suas mãos no ombro da senhora enquanto ela se vestia e explica que outras pessoas viram o fantasma. No entanto, o Sr. Otis ri das crenças de Lord Canterville, afirmando que a sua família vem dos Estados Unidos, um país moderno onde ninguém acredita nessas coisas. Se existissem fantasmas, diz, o assunto seria tratado nos jornais e ele saberia disso, além de serem colocados em museus. Assim sendo, efetiva a compra da propriedade.
    Em julho, a família Otis (pai, mãe e quatro filhos) muda-se para Canterville Chase. Ao aproximarem-se da casa, alguns fenómenos sucedem: o céu fica subitamente coberto de nuvens, a atmosfera enche-se de uma quietude estranha, um grande bando de gralhas passa silenciosamente sobre as suas cabeças e algumas gotas grossas de chuva caem. Eles são recebidos à porta pela governanta, a Sr.ª Umney, que se apresenta envergando um vestido preto.
    Quando a família se prepara para tomar chá na biblioteca da nova residência, a Sr.ª Otis nota uma mancha vermelha no chão, junto à lareira. A Sr.ª Umney esclarece que se trata de uma mancha de sangue está ali há três séculos e que é uma verdadeira atração turística, já que marca o local onde Sir Simon de Canterville assassinou a sua esposa em 1575, e é impossível eliminá-la. A governanta acrescenta que o próprio Sir Simon desapareceu da casa em circunstâncias misteriosas e desconhecidas nove anos depois do crime, nunca o seu corpo tendo sido encontrado. O seu fantasma, porém, tem assombrado a moradia desde então.
    O filho mais velho, Washington, não  se mostra impressionado com a narrativa da Sr.ª Umney e procura, de imediato, remover a mancha de sangue do chão, usando o “Super Tira-nódoas Pinkerton e o Detergente Paragon”. A nódoa centenária desaparece, todavia de imediato um relâmpago ilumina a sala e a governanta desmaia. O casal dialoga sobre a forma como lidar com a senhora desmaiada, sugerindo o Sr. Otis que eles deduzam do seu salário o tempo despendido em desmaios, algo que ele crê ter como efeito acabar com esses achaques. Quando desperta, a mulher  avisa a família que coisas mas irão suceder, porém os Otis tranquilizam-na e a mulher vai deitar-se.

domingo, 28 de abril de 2024

Análise do poema "Água suja", de Bruna Beber

    O título do poema aponta, desde logo, para algo desagradável. De facto, o grupo nominal «água suja», nomeadamente o adjetivo, sugere sujidade, impureza, poluição, uma imagem visualmente desagradável que constitui uma metáfora da degradação da vida e/ou do ambiente. Note-se que a água, tradicionalmente, representa a pureza ou a purificação. Basta pensar no simbolismo do batismo cristão ou da lavagem de roupa ou outros objetos. No entanto, nesta composição poética perde esse significado, essa essência.
    Apesar de se tratar de um poema muito breve (o título, seguido de quatro versos), a sua interpretação está longe de ser «fácil». O primeiro verso aponta para o futuro («Ano que vem»), mas com que sentido? Algo que vai acontecer ou que se espera que aconteça? Ou estaremos perante a ideia do adiamento de algo? Ou, ainda, sugerirá a esperança depositada em algo ou alguém?
    O segundo verso não é menos complexo: «fantasia de carne». O nome «fantasia» aponta para a ideia de imaginação, ilusão, mas o que significa aqui o outro nome («carne)? Tratar-se-á de uma imagem representativa do corpo humano? Ou será da realidade crua e visceral? Por outro lado, essa «fantasia de carne» é «de sol temperada». Temperar carne ao sol significa curá-la ou secá-la ao sol. Se assim for, estaremos na presença de uma alusão a uma tradição cultural, algo que não é incomum na poesia de Bruna Beber. Porém, o último verso acrescenta outro tempero: o ódio. Deste modo, temos uma fantasia de carne, temperada de sol com ódio. Ou seja, há aqui um contraste entre o simbolismo do sol – vida, energia, calor – e do ódio, um sentimento carregado de negatividade, porém, a estrela e o sentimento surgem associados. Convém também ter presente que o ódio é um sentimento poderoso e extremamente destrutivo.
    Associando o verso final ao título, podemos inferir que o poema aborda a deterioração de algo que é / era puro, ou que o tempo transforma ou afeta as nossas experiências e perceção das coisas e do mundo que nos rodeiam.

Caracterização de Tom White

    Tom White é o agente responsável pela investigação respeitante aos Osage e, posteriormente, o diretor da penitenciária de Leavenworth. Um investigador cuidadoso e um diretor corajoso e determinado, White é o protagonista da obra e a sua bússola ética, mesmo que a investigação que lidera deixe muitas mortes por solucionar.
    O modo como Graan descreve White aproxima-o da figura de um pistoleiro do Antigo Oeste, um homem do passado. Ele mesmo parece ter consciência disso e é por essa razão que se junta ao Bureau of Investigation em 1917. O romance do Velho Oeste, muitas vezes associado ao caso Osage, é pouco apelativo para o agente, que sabe que a realidade difere imenso dos mitos. Criado no Texas juntamente com três irmãos, o seu pai era o xerife do condado de Travis e, como a família morava nas instalações que compreendiam a prisão, Tom cresceu fazendo perguntas sobre a justiça. Desde bastante jovem, acreditava que a pena capital era um homicídio judicial, o que revela desde logo muito do seu caráter.
    Face ao que foi exposto, é fácil concluir que White não corresponde à imagem de agente ideal do Bureau, porém estamos na presença de um investigador cuidadoso e persistente. Na década de 1920, os agentes não tinham autorização de porte de arma, todavia, familiarizado com os perigos típicos dos condados rurais remotos, White ignorava regularmente essa proibição, não obstante preferir evitar empregar a violência. Do progenitor herdou a noção de que era importante tratar as pessoas com igualdade, o que coloca em prática durante a investigação que lidera, desde logo selecionando uma equipa que inclui um agente nativo americano e trabalhando diligentemente para resolver o caso. Além disso, dá instruções à sua equipa para destrinçar os factos da ficção e procurar evidências que possam sustentar acusações e levar a condenações efetivas. A sua tenacidade e determinação acabam por produzir resultados. Outro traço relevante que mostra o seu caráter é o facto de não ceder ao suborno ou a qualquer forma de corrupção. É um homem íntegro, honesto, sério.
    Estas qualidades acompanham-no quando deixa o Bureau e se torna diretor de prisão, primeiro em Leavenworth, uma penitenciária federal, e depois em La Tuna, no Texas. A atestá-lo estão os depoimentos de presidiários, que o recordam como um homem que procurava o melhor nas pessoas, incluindo os criminosos mais empedernidos, buscando sempre a sua reabilitação e redenção. Isto não significa, porém, que se tratava de um homem mole ou brando: a sua coragem e a sua bravura levaram-no a acalmar sozinho um motim na prisão e, com prejuízo para si mesmo, salvou vários reféns durante uma fuga da penitenciária.
    Além disso, apesar do seu comportamento heroico em diversas situações, não era narcisista ou egocêntrico, evitando chamar a atenção para a sua pessoa. Também não passava informações sobre os presos para a imprensa e empenhou-se em dar destaque aos agentes que trabalharam consigo no caso dos Osage. Quando se deu conta de que os Estados Unidos estavam a esquecer a provação a que a tribo nativa tinha sido sujeita, procurou escrever um livro sobre o problema, no entanto viu-se confrontado com a falta de colaboração de J. Edgar Hoover, que, ao contrário de White, tinha um ego bastante inflado e desejava que a atenção ficasse centrada na própria pessoa ou na agência, por isso não lhe forneceu qualquer material, pelo que a obra ficou na gaveta.

sábado, 27 de abril de 2024

Análise das 24.ª, 25.ª e 26.ª partes da crónica 3 de Assassinos da Lua das Flores

    Estes três capítulos, chamemos-lhes assim, estabelecem que a arte da dança – primeiro uma peça tradicional e depois ballet – é um elemento fundamental da cultura osage, algo que já partilharam com o mundo, visto que duas irmãs nativas, Maria e Marjorie Tallchief, foram bailarinas excecionais. De facto, Maria, nascida em 1925, tornou-se a primeira bailarina da Ópera de Paris, bem como a primeira bailarina norte-americana a alcançar o estatuto de estrela internacional, destacando-se pelo seu desempenho excecional em papéis principais de balés clássicos como O Lago dos Cisnes e o Quebra-Nozes. Além disso, foi uma das fundadoras e principal bailarina do New York City Ballet, onde trabalhou de perto com o coreógrafo George Balanchine, que foi seu esposo durante alguns anos.
    Uma das temáticas centrais do final da obra de Graan é a questão de como viver entre culturas, que molda a experiência vivida pelo povo Osage no século XXI, que continua a lutar contra os efeitos do trauma histórico e contra sentimentos de alienação. Ao longo das décadas, a tribo sofreram diversas perdas sobretudo por causa da migração forçada e da destruição de práticas tradicionais, através da eliminação das manadas de búfalos que viviam nas planícies centrais, os desafios contemporâneos pelos Osage são, simultaneamente, semelhantes e diferentes dos que os seus antepassados enfrentaram. Com efeito, atualmente continuam a ter de lutar para proteger e assegurar os seus direitos, como é exemplificado pela ação judicial que colocam à Enel, uma empresa italiana do ramo energético que é acusada de violar a sua soberania tribal, bem como pela ação contra o governo norte-americano, tendente ao ressarcimento dos danos sofridos pelo povo. Profundas mudanças culturais, englobando regulamentação atinente à extração de petróleo, bem como a migração, têm vindo a esvaziar cidades anteriormente prósperas. No entanto, como uma mulher idosa Osage proclama nas derradeiras páginas do livro de Graan, alguns osage continuam ligados à sua terra porque, saturada com o sangue dos seus antepassados, ela ainda grita por justiça.
    Obter justiça para todas as vítimas é impossível, pois o tempo, no seu imparável curso, eliminou evidências e ocultou conexões, desde logo em razão do falecimento de descendentes de testemunhas e criminosos. O autor, afirma nas páginas finais, que a história é implacável, mas também falível, pois depende do ser humano para a construção do seu conteúdo e para a sua continuação. Se anteriormente os assassinatos tinham sido amplamente conhecidos, em pleno século XXI estavam praticamente esquecidos ou perdidos graças à indiferença ou ao preconceito racial, ou simplesmente abafados pela erupção de outros acontecimentos, tidos como mais importantes. Assim sendo, é necessária vigilância para manter a história viva e permitir que ela faça o seu trabalho.
    Outro dos motivos que impede a obtenção de justiça plena pelos crimes cometidos há um século é o desconhecimento do número real de assassinatos. Embora o período do Reinado do Terror tenha sido circunscrito à década de 1920, Graan descobre que há outros crimes, ocorridos na anterior e na subsequente, que se enquadram no padrão dos anos 20. A contagem oficial de vítimas – vinte e quatro – está inequivocamente errada e, muito provavelmente, representa apenas uma pequena percentagem do número real de pessoas mortas, ou deixadas morrer, durante esse período de crime organizado e sistemático. Assim sendo, a figura de William Hale pode ser vista como a vilã central do livro, porém o leitor tem de tomar consciência de que ele é apenas um dos muitos assassinos. Dos outros, alguns eram maridos e esposas que envenenaram lentamente os seus cônjuges ou companheiros; outros eram tutores que negavam cuidados médicos aos doentes. A ambição desmedida que norteou as ações de Hale enquanto orquestrava uma vastíssima conspiração motivou igualmente outras pessoas, cujos crimes talvez não tenham sido tão bem delineados, mas não foram menos letais. A terra do Condado de Osage pode continuar a clamar por justiça e reparação, no entanto o livro conclui tristemente que é improvável que receba uma resposta adequada.

Caracterização de Mollie (Wah-kon-tah-he-um-pah) Burkhart

    Mollie Burkhart é um membro da nação Osage, nascida em 1886. Ela é uma de quatro irmãs e é mãe de três filhos (James ou Cowboy, Elisabeth e Anna) e dona de uma grande fortuna, obtida graças aos direitos sobre terras no Condado de Osage, situado no estado norte-americano do Oklahoma. Embora nativa, é casada com um homem branco – Ernest Burkhart – e fala inglês. Quieta, paciente, mas determinada a bter justiça para as suas irmãs assassinadas, Mollie é uma personagem central da história da sua tribo e do livro de David Graan. Depois do julgamento, divorcia-se de Ernest e casa novamente com James Cobb. Morre de causas naturais em 1937, aos 51 anos.
    De facto, Mollie Burkhart é a protagonista da narrativa sobre os assassinatos de que foi vítima a sua tribo, desde logo porque consegue sobreviver à onda de mortes e porque está diretamente conectada com as vítimas e os vilões da história. Não obstante, não são muitas as informações conhecidas sobre a mulher. Quando Tom White assume a direção do caso, fica surpreendido por os agentes que o antecederam na investigação não tenham interrogado mais profundamente Mollie, visto que muitos dos seus parentes tinham sido vítimas do Reinado do Terror. O silêncio a que ela se submete parece constituir um reflexo do estereótipo do índio norte-americano, porém, na realidade, ele decorre essencialmente dos preconceitos de género e de raça que vigoravam na época. Seja como for, a imagem que se desprende de Mollie é a de uma mulher comprometida com a sua família e as suas tradições culturais. A sua determinação em conseguir justiça para os seus familiares não é mais do que uma extensão desse comprometimento.
    Como foi referido anteriormente, Mollie nasceu em 1886, bem antes do enriquecimento dos Osage, e foi criada de modo tradicional e de acordo com os costumes da sua tribo, até atingir a idade adulta, apesar de ter frequentado durante algum tempo a escola, o que lhe permitiu aprender os costumes norte-americanos e falar inglês. Apesar desse contacto com uma cultura exterior, Molly espera casar-se de acordo com a tradição da sua tribo e tem mesmo um breve casamento juvenil com Henry Roan, porém apaixona-se por Ernest e acaba por desposá-lo, seguindo os seus sentimentos, resultando desse matrimónio três filhos, que ama profundamente. Evidência desse amor é o facto de mandar embora a filha mais nova para o proteger, quando membros da sua família começam a morrer repentinamente e de forma suspeita.
    A imagem com que ficamos de Mollie é a de uma mulher compassiva, carinhosa e atenciosa. Confirmando esta visão, no final do livro de Graan, a sua neta, Margie, compartilha uma lembrança que o seu pai conservava da sua mãe tratando dela quando estava com dores de ouvido. Mesmo tendo consciência de que não é a filha predileta da mãe, Mollie cuida de Lizzie. Outro facto curioso prende-se com o gosto de dar festas que possui, nunca despendendo, todavia, grandes somas de dinheiro para tal, incluindo a receção de parentes do seu marido claramente racistas.
    O amor pelo marido leva-a a não acreditar, de início, nas acusações que o levam a tribunal. De facto, ela continua comprometida com o esposo, mesmo após a sua prisão por conspirar contra a própria família. Num dos poucos momentos em que Mollie se faz ouvir, ela expressa a sua determinação de que os culpados sejam punidos, bem como a convicção profunda de que Ernest não é um deles. Assim, escreve breves cartas consoladoras ao esposo na prisão, porém a sua atitude muda radicalmente quando ele confessa a sua culpa nos crimes. Deste modo, no momento em que é levado após ouvir a sentença, a expressão da mulher é descrita como «fria».
    A vida de Mollie descrita ao longo do livro é marcada pelo sofrimento e pela dor, culminando no momento em que ganha consciência de que o marido é um criminoso que atentou contra membros da sua própria família, contudo, no final, ganha contornos de felicidade, já que se volta a apaixonar e se casa. Além disso, consegue que a sua guardianship seja removido. Quando encontra a morte, em 1937, está livre por completo da teia da conspiração.

Resumo da 26.ª parte - 3.ª crónica: O sangue grita

    David Graan regressa aos Arquivos Nacionais, onde pesquisa os tutores para descobrir quantos tutorados foram listados como falecidos, descobrindo números que o deixam chocado, sobretudo porque a maioria das mortes nunca foi investigada. Mesmo que algumas dessas pessoas tenham encontrado a morte de forma natural, o escritor vislumbra ali o padrão do assassinato generalizado. Caso após caso, um tutorado morre abruptamente, o que permite ao seu tutor branco reclamar a sua fortuna.
    Deste modo, o número oficial de vítimas do período do Reinado do Terror pode cifrar-se nas 24, todavia, de acordo com a pesquisa de Graan acerca dos tutorados que morreram durante essa época, o real supera largamente essa quantia. À mesma conclusão chegam outros investigadores, como William Stepson e Dennis McAuliffe Jr.
    A última pessoa a ser visitada por Graan é Mary Jo Webb, que mantém a esperança de descobri o que sucedeu ao seu avô, Paul Peace, o qual suspeitava estar a ser envenenado pela sua segunda esposa, uma mulher branca. Embora o homem consiga escapar às garras da mulher, acaba por ser atropelado por um carro e morrer. O escritor promete ajudá-la, e o livro termina com uma citação dela de um trecho do Génesis: a terra grita com o sangue derramado sobre si.

Resumo da 25.ª parte - 3.ª crónica: O manuscrito perdido

    Em 2015, os Osage processaram uma empresa energética italiana por violar os termos do Ato de Alocação de 1906 com as suas turbinas eólicas, pondo a nu o facto de as mudanças ocorridas, sobretudo no início do século XXI, no campo da indústria energética terem afetado profundamente a tribo. Graan vira o foco deste capítulo da sua obra para um manuscrito intitulado O Assassinato de Mary DeNora-Bellieu-Lewis, compilado pela sua neta, Mary Lewis,e que reúne diversas informações sobre a vida e o desaparecimento da mulher em 1918. O seu corpo foi descoberto em 1919, tendo um dos seus companheiros masculinos confessado tê-la assassinado com um martelo, de modo a apossar-se dos pagamentos referentes aos direitos de terra da mulher. Depois de conhecer este novo crime, Graan conclui que, se as datas tradicionalmente associadas ao Reino do terror fossem alteradas de forma a incluir as mortes de Mary Lewis, ocorrida em 1918, e a do avô de Red Corn, em 1931, o número de Osage mortos atingiria cifras bem mais assustadoras do que as oficiais.

Resumo da 24.ª parte - 3.ª crónica: Dois mundos

    Em 2013, David Graan assistiu a uma representação de Wahzhazhe, uma dança típica dos Osage que compreende uma história na nação nativa, incluindo o Reino do Terror, e enfatiza a dificuldade de viver entre dois mundos e duas culturas. Após a encenação, Graan encontrou-se com Red Corn, que o convidou a visitar o museu da tribo, no qual tomou contacto com uma carta que William Hale escreveu a partir da prisão, explicando aos Osage como ele era seu amigo. Além disso, a mulher conta também ao escritor que o seu avô morreu abruptamente em 1931 e que, antes disso, o homem tinha confessa a diversas pessoas que estava a ser envenenado pela sua segunda esposa, uma mulher branca. Red Corn acrescenta que o número de vítimas mortais do Reinado do Terror foi muito superior ao reconhecido oficialmente.
    Convém também ter sempre presente que diversas mortes não foram solucionadas. O próprio escritor estava plenamente ciente disso e decidiu investigar a de Charles Whitehorn. Apesar de a equipa de White se ter debruçado sobre a mesma, nunca ninguém foi acusado do crime, por isso manteve-se sem solução. Quando Graan se debruça sobre o caso, constata, com estupefação, que havia dados suficientes para o resolver. Com efeito, a esposa de Whitehorn, Hattie, casou-se novamente com um homem de seu nome LeRoy Smitherman, algo que os detetives acreditavam ser uma manobra para ter acesso aos bens de Charles. Aparentemente, Hattie e Smitherman planearam o crime com o auxílio de uma outra mulher, Minnie Savage. Posteriormente, Smitherman abandonou Hattie, que caiu nas garras de J. J. Faulkner, que a chantageou, acabando a mulher por ficar bastante doente e só se salvou da morte certa graças à ajuda das irmãs, que a subtraíram aos cuidados de Faulkner.

Análise das 22.ª e 23.ª partes da crónica 3 de Assassinos da Lua das Flores

    A terceira secção, ou crónica, da obra situa-se no século XXI, coincidente com o momento da investigação do seu autor. Assim sendo, a narrativa história termina e destaca-se a investigação jjornalística de Graan que levou à escrita do livro. Por outro lado, a pessoa narrativa também muda, pois agora o texto é narrado na primeira, de modo a que o escritor compartilhe com o leitor as suas conversas com membros contemporâneos da tribo Osage, bem como a sua investigação nos Arquivos Nacionais em buscas de pistas e evidências que permitam solucionar os assassinatos. Neste ponto, há uma diferença entre a postura adotada por Graan e por White, dado que este, quando tentou, sem sucesso, escrever uma obra sobre o assunto, nunca quis colocar a sua pessoa debaixo dos holofotes, pois considerava não ser o foco da história, ao contrário do primeiro, que assume o papel central na terceira parte do seu texto, nomeadamente ao dar conta do seu trabalho exaustivo em busca de elementos e dados históricos que fornecessem respostas para o que se passou cerca de um século antes.
    Outro aspeto relevante da terceira crónica prende-se com o facto de David Graan dar grande enfoque à cultura da tribo. De facto, ele visita o seu museu, onde contacta com a história ancestral, e participa numa dança tradicional, que atrai membros que vivem longe. O tempo introduziu mudanças nos costumes e cultura dos Osage, como, por exemplo, no I’n-Lon-Schka ou nas danças cerimoniais (que, agora, incluem figuras femininas), porém há elementos que se mantêm, como passos estabelecidos, trajes e tambores, permitindo assim uma simbiose cultural entre o passado e o presente. Ao compartilharem essas experiências enquanto comunidade tribal, os Osage tecem laços duradouros entre si, mesmo que as suas vidas os obriguem a viver em locais díspares e afastados da terra mãe. Muitos dos locais onde os seus ascendentes viveram na década de vinte do século anterior e onde tiveram lugar os crimes estão agora abandonados, o que enfatiza a necessidade de serem desenvolvidos esforços no sentido de o património da tribo ser protegido e conservado, para que não desapareça também. Trata-se de manter uma memória e uma herança cultural.
    Tal como sucede em muitas obras de cariz policial, há em Assassinos da Lua das Flores um protagonista e o seu antagonista, concretamente Tom White e William Hale, porém David Graan parece ter encontrado também o seu: H. G. Burt, o presidente do banco, que tinha estado fora do radar durante a investigação conduzida pelo Bureau na década de 1920, apesar de haver evidências do seu possível ou até provável envolvimento na trama. Deste modo, Graan conclui que Burt terá trabalhado ativamente contra os Osage durante todo o decénio, o que é enfatizado pelo facto de terem sido registados crimes não solucionados que ocorreram após a prisão de Hale, portanto houve outros criminosos que prosseguiram a sua atividade e permaneceram impunes. Tal como William Hale, o presidente do banco era um homem que se via como intocável, porém, ao contrário daquele, essa ilusão parece nunca ter sido beliscada. Na qualidade de diretor da instituição bancárias, usou instituições financeiros contra os nativos, frequentemente como um mero agiota. Por outro lado, a mudança de foco para Burt chama a atenção do leitor para outras vítimas que não as focadas nas duas primeiras partes, como, por exemplo, George Bigheart ou W. W. Vaughan, o que permite entender a vastidão de vítimas atingidas na época.
    Outro dado interessante consiste na consciência de que, quando consideramos as vítimas, não podemos limitá-las à época do Reinado do Terror, pois os netos e bisnetos dos que o viveram na carne também sofrem são afetados pelo que aconteceu então. De facto, há nos descendentes um sentimento de desconfiança ou de insegurança que advém do que aconteceu com os seus familiares décadas antes. Por outro lado, os diálogos encetados por Graan permitem-lhe acessar a memórias profundas, como as de Mollie e Ernest Burkhart. De facto, a neta de ambos, Margie, compartilha com o escritor as memórias carinhosas dos seus progenitores, nomeadamente o modo como a mãe acalmava ternamente quando a filha sofria dor de ouvidos. As lembranças do pai eram, todavia, menos calorosas. Depois de ter sido libertado da prisão, Ernest lutou para regressar ao Condado de Osage, o que causou nova grande dor à sua família. Tal como sucedeu com Hale, o indivíduo parecia não compreender os danos que tinha causado e procurou imiscuir-se na sociedade como se tivesse um direito inquestionável a tal. Deste modo, Ernest exemplifica o modo como os brancos sentiam ter uma espécie de direitos adquiridos, os quais faziam parte da motivação que esteve na génese dos crimes e permaneciam vivos mesmo após os anos passados atrás das grades. Parecendo compreender todos estes factos, o filho de Ernest, Cowboy, desrespeita o último pedido do pai, no sentido de espalhar as suas cinzas no Condado de Osage, optando por as atirar, ainda dentro da urna, de uma ponte, para serem levadas e esquecidas.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Análise do poema "Vozes-mulheres", de Conceição Evaristo

     Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte, em 1946. Licenciada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorada pela Universidade Federal Fluminense, iniciou a publicação da sua obra poética em 1990, no número 13 do Cadernos Negros, uma antologia editada anualmente pelo Grupo Quilombhoje, de São Paulo.

    Este poema narra a trajetória de mulheres negras no Brasil, nomeadamente a consciência de ser negra e mulher. Desde logo, o título da composição poética evoca a questão das vozes e da sua pertença: as mulheres. Sob o olhar da sociedade patriarcal, vozes caladas ecoam no poema. O uso do plural representa o coletivo, o sujeito poético a percorrer a memória. A voz que é destacada logo no início é a da bisavó, ou seja, trata-se de uma voz que não é exterior ao que é “narrado”; pelo contrário, é a de alguém que viveu por dentro as situações, um passado marcado pelo sofrimento que não se pode esquecer. Por outro lado, o início do poema sugere, desde logo, a diáspora e a desumanidade e crueldade do tráfico negreiro. A voz da bisavó do sujeito lírico ecoa através do tempo – “criança”, símbolo da inocência, da fragilidade e da vulnerabilidade – e remete-nos para os “porões do navio”, uma referência evidente aos navios que faziam o transporte de escravos entre o continente africano e o Brasil e que nos coloca perante o horror do sofrimento e da desumanização. A forma verbal “ecoou”, que marca o passado, que se presentifica na leitura do poema, repete-se no verso quatro, reforçando a ideia de que as experiências da bisavó ainda ressoam no presente, nomeadamente a dor e o sofrimento, que permanecem vivos através da memória, percorrendo a distância do tempo e tornando-se presente. O lamento remete para a imagem inicial do poema, para a questão da voz, que se faz presente no texto, mas sem possibilidade de alterar o destino, pois constitui um mero lamento de “uma infância perdida”.

    A primeira estrofe, em suma, remete para o campo da memória coletiva, dado que o sujeito poético não viveu o que relembra, porém o ecoar do passado ainda está presente na sua ação atual, dá sentido à vida. Assim sendo, estes versos iniciais colocam o leitor face à figura da mulher que dá origem a uma linhagem e cuja voz ainda ecoa no presente familiar.

    Na segunda estrofe, a voz da bisavó é substituída pela da avó, que “ecoou obediência / aos brancos-donos de tudo” e que representa a geração seguinte, aquela que viveu sob condições adversas experimentadas já em terras brasileiras. Atente-se, desde logo, na união por meio de hífen entre os nomes “brancos” e “donos”, como se representassem uma única coisa. A obediência forçada de que “falam” os versos levam-nos até aos escravos recém-libertados que debandaram das lavouras e das senzalas e que, seduzidos pelas oportunidades nas cidades que estavam em processo de transformação, anunciando novos tempos, e que os poderiam absorver como mão de obra, se viram confrontados com a discriminação que provinha da cor da sua pele.

    A terceira estrofe centra-se na geração seguinte: a da mãe. Deste modo, a “narrativa” vai-se aproximando do presente e afastando do passado. A voz da mãe traduz uma resistência silenciosa, uma revolta que é mantida em segredo ou expressa subtilmente. Na época, procurava-se que o Rio de Janeiro se afastasse da condição arcaica de vila (uma designação toponímica que remetia para o período de colonização) e se alcandore ao estatuto de urbe. Para tal, procede-se a uma renovação e modernização da cidade, através de demolições (metáfora do apagamento: desmemoriando-se, o Brasil segue em direção ao “progresso”). Tenha-se presente que a poeta nasceu numa favela situada no alto da Avenida Afonso Pena, uma das áreas mais valorizadas da Zona Sul de Belo Horizonte. Com a passagem do tempo, barracas e respetivos moradores foram sendo progressivamente removidos, a avenida foi prolongada, ergueram-se novos prédios e os becos e as vielas desapareceram fisicamente, existindo apenas na memória de Conceição Evaristo. Este processo de urbanização de múltiplas localidades conduzirá, com alguma frequência, à formação das tristemente famosas favelas.

    Voltando ao poema, a voz da mãe ecoa baixinho, o que significa que não foi silenciada, embora se exprima de forma quase impercetível. Seja como for, o relevante destes versos prende-se com a sugestão da existência já de ecos de revolta, o que quer dizer que os oprimidos começam a ganhar consciência da exploração a que foram sujeitos ao longo do tempo. As condições do e o local de trabalho (“no fundo das cozinhas alheias”) indiciam a posição social da mãe, relegada para o trabalho doméstico na casa dos “colonizadores” e que não tem como esconder os disfarçar a cor da pele no contexto da cidade que os rejeita por não se enquadrarem no projeto de modernização das cidades. Se as “trouxas” podem simbolizar a pobreza e a opressão, as “roupagens sujas dos brancos” constituem uma metáfora da injustiça e da opressão a que os homens brancos sujeitam as mulheres negras. Por outro lado, a referência à favela representa a marginalização e a segregação socioespacial a que são submetidas.

    A quarta estrofe traduz a voz do próprio sujeito poético, chegando-se assim ao presente. Essa voz exprime a sua perplexidade, expressa através dos versos, da poesia, “com rimas de sangue”, uma metáfora que exprime a violência, a dor e o sofrimento experimentados, e “fome”, nome que pode ser interpretado de forma literal ou enquanto metáfora da injustiça. Por outro lado, a sua voz tem na origem o som que provém da bisavó, que passa pela avó e pela mãe e se torna presente na sua fala. O advérbio “ainda” reforça a ideia da repetição, de um fazer ancestral.

    Já a voz da quinta estrofe tem o seu quê de profética: ao apresentar a filha, o “eu” poético “narra” não apenas o presente, mas também o porvir, o futuro. A filha é apresentada como uma colecionadora e guardiã das vozes das mulheres que viveram antes dela; a sua voz guarda em sim todas as vozes. A filha recolhe em si as “vozes mudas caladas”, isto é, as que foram oprimidas, silenciadas ou ignoradas, bem como as que se queriam fazer ouvir, mas ficavam “engasgadas nas gargantas”.

    Se houver um tempo em que a voz foi lamento, silêncio, sussurro, imagem poética, agora ela não é apenas fala, mas faz-se ato, representando a consciência de si e um fazer que se quer cidadão, visto que fala e age, representa um coletivo de mulheres que a antecedeu. A voz do sujeito poético “recolhe em si” (reiteração) “a fala e o ato” (a união da palavra e do agir, simbolizando um movimento em direção à mudança e à liberdade), “O ontem – o hoje – o agora” – esta sucessão de advérbios representa a continuidade do tempo e da experiência. A reiteração da expressão “Na voz de minha filha” reforça a importância da voz da filha, que olha para o presente como sequência do passado e a preparação do futuro. A filha será portadora da ressonância das gerações passadas e a sua voz transporta em si a promessa de uma “vida-liberdade” (novamente o hífen a ligar intimamente dois conceitos). A condição para se ter, de facto, liberdade é a de agregar às vozes do passado, lembrar a sua ascendência.

    O poema é construído em torno das vozes de várias gerações sucessivas de mulheres da mesma família, começando com a bisavó e terminando com a filha do sujeito lírico. Cada voz carrega em si as memórias e experiências de cada época, criando, assim, um mosaico da história e da resistência da mulher negra.

    A voz da bisavó e a referência aos “porões do navio” remetem para a dolorosa história do tráfico negreiro entre África e o Brasil. Por outro lado, os ecos dos “lamentos / de uma infância perdida” que veicula sugerem a brutalidade da escravidão que lhe roubou (e a tantas outras crianças) uma existência normal de criança.

    A voz da avó representa a geração de mulheres que esteve sujeita ao domínio e à opressão dos “brancos donos-de-tudo” e ecoa “obediência, indiciando a subjugação e a falta de controlo sobre a própria vida. Ela trabalha como empregada doméstica, leva uma existência dura e marginalizada, mas começa a ecoar alguma revolta.

A voz do “eu” lírico ecoa sangue, violência, dor, provações, e reflete a luta contínua contra a injustiça e a opressão. Por outro lado, a poesia constitui um meio para expressar a dor e a luta da comunidade a que pertence.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Análise do poema "Os sonhos não podem ser", de Cláudia Dias Chéu

 
Os sonhos não podem ser
experimentados em conjunto.
Vamos sozinhos durante o sono.
Dormir é a prova irrevogável
de que somos individuais.
A viagem que fazemos de noite
ausculta bem o batimento
da solidão.

 
Os sonhos são “fenómenos” individuais e intransferíveis. Trata-se, pois, de uma experiência claramente solitário e não compartilhável com as outras pessoas no que respeita à sua experimentação. O sono é um estado fundamental para qualquer pessoa, pois possibilita a restauração do corpo e da mente. Por outro lado, é um momento em que o indivíduo se volta para o seu mundo interior, constituindo, portanto, um símbolo da individualidade humana.
O sono é também apresentado como uma evidência incontestável da individualidade de cada ser humano. O adjetivo “irrevogável” sugere a ideia de que essa espécie de verdade é imutável, constituindo um traço característico da condição humana.
Os três últimos versos do poema descrevem, metaforicamente, o sonho como uma viagem noturna que revela a solidão e que sugere a viagem que é a vida, que cada pessoa percorre, trilhando caminhos pessoais e inexplorados. Claramente, o “eu” poético recorre à linguagem da área da Medicina (“ausculta”, “batimento”), para nos sugerir a ideia de uma introspeção profunda que o ser humano faz sempre que se entrega ao sono, como se este permitisse um encontro íntimo com a nossa solidão quando dormimos e quando sonhamos.

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