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domingo, 12 de janeiro de 2020

Análise da Cena 5 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

A anagnórise cumpre nova etapa: Telmo Pais conhece a identidade do Romeiro.
Nesta cena, dá-se o tão esperado encontro entre Telmo e D. João, o qual confirma que o amor por este foi suplantado pelo amor a Maria. Por outro lado, nela assistimos ao arrependimento do Romeiro/D. João e ao pedido ao velho aio para que reverta a situação criada.


● A cena abre com um equívoco, técnica que Garrett utilizou mais do que uma vez na peça: o Romeiro pensa que a prece de Telmo se dirige a si, quando, na verdade, o motivo da preocupação do velho criado era Maria, o que é confirmado pelo aparte: «Já não sei pedir senão pela outra.».


● O que permite o reconhecimento de D. João de Portugal é a voz e, posteriormente, o rosto: «Que voz!»; «Esta voz… esta voz!»; «oh! é o meu filho todo: a voz, o rosto…». De facto, assim que o Romeiro entra em cena, Telmo encontra algo de estranho na sua voz, algo que lhe faz lembrar, nas inflexões, no timbre, uma voz familiar e conhecida.


● Entre as duas personagens existe uma relação paternal, de amizade e de lealdade. Durante o diálogo entre ambos, D. João duvida que essa relação se mantenha após tantos anos de ausência: «E contudo, vinte anos de ausência, e de conversação de novos amigos, fazem esquecer tanto os velhos!...». De facto, com a decorrência do diálogo, D. João vai-se apercebendo, gradualmente, do conflito com que o velho aio se debate. Começa por manifestar algumas dúvidas sobre se a longa ausência não alterou em nada o amor de Telmo e compreende, finalmente, a dimensão desse conflito no momento em que o criado lhe fala de Maria.


● No início da cena, Telmo faz uma pergunta idêntica à que Frei Jorge fizera ao Romeiro e a resposta, para além dos gestos com que descobre o rosto, é semelhante, só que dada de forma muito mais sentida, parecendo bem mais melindrado do que aquando do encontro com D. Madalena. A repetição do pronome indefinido «ninguém» e a razão que apresenta para a sua utilização («se nem já tu me conheces!») evidenciam os seus sentimentos (perplexidade, tristeza, dor, mágoa…) e a sensação de anulação, motivada pelo esquecimento a que foi votado por todos os que lhe eram queridos, incluindo agora também a dúvida sobre o velho criado.


● No final, D. João de Portugal reconhece o quão imprudente, injusto e cruel foi: «Fui imprudente, fui injusto, fui duro e cruel.». E reconhece também a sua anulação: ninguém queria o seu regresso, exceto Telmo e mesmo este mudou de comportamento neste ato, ninguém desejava sequer que estivesse vivo, todos contavam com a sua morte e sobre ela foram construídos um amor e uma família. A partir desse momento, D. João de Portugal não existe, é ninguém: «Na hora em que ela creditou na minha morte, nessa hora morri. Com a mão que deu a outro riscou-me do número dos vivos.».


● Note-se que Telmo tinha razão com a sua superstição segundo a qual D. João de Portugal iria regressar e cumprir a promessa feita na carta enviada a D. Madalena na véspera da batalha de Alcácer Quibir: primeiro, visitaria a esposa e, depois, não se iria sem «aparecer ao seu velho aio». Com efeito, a primeira visita foi, efetivamente, para D. Madalena e a segunda para o velho aio.


● A atitude do Romeiro foi-se alterando desde o momento da sua chegada até esta cena. De facto, quando fez a sua aparição diante da esposa, estava profundamente magoado e dominado por instintos de vingança por D. Madalena ter refeito a sua vida com outro homem, construindo a sua felicidade sobre a sua morte, o que Telmo considera injusto. Depois de o velho aio ter confirmado as diligências da esposa, bem como a sua virtude e honra, revela-lhe a sua resolução e pede-lhe que a cumpra: o Romeiro era um impostor e tudo não passara de um embuste. De seguida, desaparecerá para sempre e salvará a nova família de D. Madalena: sabedor de que havia uma filha na equação, sentiu-se responsável pelo «mal feito».


● O objetivo do Romeiro ao procurar o seu velho criado é simples: aferir a verdade do que ouvira sobre o seu desaparecimento e o comportamento de D. Madalena, isto é, que fizera todos os esforços para saber notícias e para encontrar o primeiro marido após a batalha de Alcácer Quibir. E fê-lo junto de Telmo, porque era o único em quem confiava e que era seu amigo.


● Confirmada a verdade, D. João expõe a sua decisão: pede a Telmo que minta e diga que o Romeiro era um embuste, para poder reparar o mal infligido à atual família de D. Madalena. Mostra-se assim disposto a abdicar da sua própria existência, a anular-se enquanto D. João de Portugal, para impedir a destruição daquela família. D. João de Portugal revela, deste modo, um extraordinário espírito de abnegação, o que mostra que é uma personagem exemplar.


● No entanto, Telmo não acata o pedido e, apesar de reconhecer a nobreza do gesto e o caráter de D. João, questiona a possibilidade de se reverter a situação, mostrando, assim, a sua crença na inexorabilidade do Destino e o momento trágico vivido por todos. Note-se que Telmo seria a única pessoa que poderia levar a cabo tal proposição, já que ninguém conhecia melhor D. João do que ele e ansiava pelo seu regresso, o que lhe conferia toda a credibilidade para fazer passar o embuste como credível junto das outras personagens. Seja como for, nada disto poderia resolver o conflito do aio, visto que viveria sempre com o remorso de ter renegado o velho amo, «um filho».


● Os apartes de Telmo adquirem grande relevância neste passo da obra, pois revelam todo o drama vivido por Telmo: o conflito interior entre o amor a Maria e o amor a D. João e a conclusão de que aquele superou este. Como não o consegue revelar diretamente ao seu primeiro amo, fá-lo através dos apartes, que revelam igualmente os seus sentimentos e emoções.


● Esta cena confirma o que a anterior deixava adivinhar: a transformação psicológica sofrida por Telmo.
De facto, o velho criado, depois de ter desejado e alimentado o regresso do antigo amo durante 21 anos, apercebe-se de que, afinal, já não o deseja, uma vez que tal implicaria que Maria passasse a ser filha ilegítima e, por outro lado, constata que o amor pela filha de Manuel de Sousa e D. Madalena superou o que sentia por D. João.
Depois de este último se ter certificado de que a esposa não se poupara a esforços para o encontrar, decide pedir a Telmo que minta, que diga que o Romeiro é um impostor e o velho escudeiro sente-se tentado a acatar o pedido, apenas para salvar Maria, que também considera sua filha.
Deste modo, pode concluir-se que, ao longo da peça, Telmo se humaniza, pois deixou de ser a figura inflexível e atormentadora de D. Madalena a que fomos apresentados no ato I, para passar a ser alguém angustiado e dilacerado por um conflito interior que o consome, acabando por abdicar dos seus princípios por amor a Maria.


A figura de D. João de Portugal em Frei Luís de Sousa

De acordo com Luís de Amaro Oliveira (Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, p. 162):

A. D. João de Portugal é uma entidade dupla:

1 – É uma entidade abstrata (desde o começo até à cena 15 do segundo ato), porque
a) até ao fim do II ato, não tem senão uma existência física provável (é a simples representação de um indivíduo dado como morto);
b) não tem uma existência moral individualizada até aos fins do mesmo ato (é um simples vago de Fatalidade e de Destino – vestígio literário da vontade superior dos deuses da tragédia grega).

2 – É uma entidade concreta (desde a cena 15 do segundo ato até ao fim da peça), porque
a) a partir dos fins ao ato II, surge na figura do Romeiro;
b) procura interferir voluntariamente na ação dramática, esforçando-se por impedir a tomada de hábito de Madalena.

B. D. João de Portugal não é, em rigor, uma personagem real, no sentido dramático e vivo da palavra:

1 – Não é uma personagem real como entidade abstrata, porque não atua direta e voluntariamente na ação dramática. Não é ele quem vem, são os outros quem o traz ao conflito. Mas, como fonte de toda a energia dramática da peça, está quase permanentemente em cena. E permanece através:
a) das evocações angustiosas de Madalena;
b) das convicções, sempre renovadas, de Telmo no seu regresso;
c) do sebastianismo de Maria (se D. Sebastião pode regressar, porque não D. João?) (II, 1);
d) das intuições de Frei Jorge e Manuel de Sousa (II, 9);
e) da crença nos agouros e sinas (II, 1), nas revelações dos sonhos (III, 11), nas almas penadas (I, 1).

2 – Não é uma personagem real como entidade concreta, porque, embora atuando direta e voluntariamente, a sua atuação carece de força e de intenção. É como se toda a natureza simbólica de que viveu nos dois primeiros atos extravasasse e o tivesse esvaziado de autenticidade humana. A simples prova da sua existência é suficiente para o desenlace.
De facto:
- Quem pensa mais seriamente no destino do Romeiro após a sua identificação?
- Quem adere em profundidade ao seu drama de prisioneiro, de marido ultrajado, de amigo esquecido?
- Quem acredita na eficácia das suas tentativas de solução da crise?

C. D. João de Portugal é uma personagem virtual

D. João é a presença simbólica de uma «força trágica» permanente que atua sobre as personagens reais, exacerbando-lhes as paixões, avolumando o clima patético através de situações psicológicas progressivamente tensas até ao desfecho.

Análise da Cena 4 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

Nesta cena, Telmo, num monólogo em forma de solilóquio, expressa em voz alta as suas preocupações, as suas dúvidas, em suma, o seu dilema.


Elementos da cena

Segundo Carlos Reis (Frei Luís de Sousa, Leituras Orientadas, pp. 80-81, Porto Editora), neste monólogo «estão concentrados dois sentidos, que dizem respeito a um drama interior vivido por Telmo:
. O sentido da fidelidade ao antigo amo, uma fidelidade que agora está em crise.
. O sentido da culpa pelo facto de a fidelidade ao passado ter sido perturbada: o afeto sentido por Maria foi mais forte.
Para além disso, as palavras de Telmo confirmam os presságios e as ameaças: ou seja: quem por várias vezes, no primeiro ato (sobretudo na cena 2), expressou a crença de que o passado não estava morto, confirma agora, pela chegada do romeiro, que os presságios estavam certos. Convém lembrar; neste momento Telmo ainda não sabe que o romeiro é o próprio D. João de Portugal, seu antigo amo.».


Conflito interior de Telmo

Telmo Pais sempre desejou o regresso de D. João de Portugal e sempre acreditou que estaria vivo e iria, efetivamente, regressar. Porém, agora que sabe que está vivo é confrontado com um dilema terrível: o amor a Maria versus o amor a D. João.
No momento em que o sonho alimentado durante 21 anos (a vida e o regresso de D. João, que ele criou como um filho) está prestes a concretizar-se, Telmo não se sente feliz, pois apercebe-se de que vive um conflito insanável, já que tem dois filhos, mas, para um existir, o outro tem de desaparecer: «Virou-se-me a alma toda com isto: não sou já o mesmo homem.». Além disso, conclui que o amor por Maria superou («apagou») o que dedicava ao antigo amo, por isso fica amargurado com a possibilidade de ela morrer em resultado dos recentes acontecimentos. A jovem é um anjo que não merece tanto sofrimento. E tudo isto o deixa dividido, confuso e aterrado.
Com efeito, Telmo já não é o mesmo homem, dado que já não tem a certeza de desejar o regresso do primeiro amo e dado que o amor por este foi suplantado pelo amor por Maria.
Na parte da final da cena, Telmo oferece a sua vida em sacrifício em troca da de Maria, pois pressente a morte próxima desta: «Levai o velho que já não presta para nada, levai-o, por quem sois!».

Estilisticamente, o conflito de Telmo é traduzido pelo recurso às reticências e frases interrompidas, as quais traduzem fielmente a dificuldade que a personagem tem em concluir os seus pensamentos, que se cruzam, atropelam e precipitam. Por outro lado, as exclamações refletem a sua emotividade, enquanto as interrogações traduzem as suas dúvidas.
Relativamente à adjetivação, possuem uma carga profundamente negativa (“aterrado”, “confuso”, “terrível”), traduzindo o estado de espírito de Telmo e a sua lancinante divisão interior. Nota também para determinadas expressões que exprimem, igualmente, o conflito, a dor e a angústia da personagem: «Virou-se-me a alma toda»; «Perdoe-me Deus se é pecado», etc.
O uso do diminutivo “inocentinho” reflete o carinho e o amor de Telmo por Maria, mas, por outro lado, evidencia a fragilidade desta.


Personagens e linguagem dramática

Citando novamente Carlos Reis (op. cit.), «Embora esteja só em cena, Telmo parece acompanhado por duas figuras ausentes:
. Maria, esta “última filha” (II. 10-11), “aquele anjo” (ll. 12-13) que ocupou o lugar que antes pertencia a D. João. Maria é filha, evidentemente, apenas no sentido afetivo.
. D. João de Portugal, o “filho que eu criei nestes braços” (l. 6), assim considerado no mesmo sentido afetivo.
Estas duas personagens são a razão do dilema de Telmo, como se nele existissem duas personalidades em conflito: uma que está ligada ao passado, outra que está situada no presente.
Pela intensidade daquele dilema (que não atinge nenhuma outra personagem do Frei Luís de Sousa), Telmo já foi considerado a personagem principal da ação. O seu comportamento, nesta cena, apresenta, além disso, uma forte teatralidade, criada por recursos de linguagem dramática:
. Toda a fala de Telmo revela as emoções que ele expressa através de exclamações, reticências e interrogações.
. Junta-se a isto a linguagem do corpo, quando Telmo se ajoelha.
. Em certo momento, a personagem dirige-se a Deus e transforma o monólogo em diálogo com essa divindade invisível.
A cena termina com uma situação tipicamente teatral. Telmo não vê que o romeiro entra em cena; ao falar no ser “inocentinho que eu criei para Vós, Senhor” (ll. 18-19), ele é entendido pelo romeiro como estando a referir-se a D. João, É isso que se percebe logo na abertura da cena seguinte: “Não pedias tu por teu desgraçado amo, pelo filho que criaste?”, pergunta o romeiro a Telmo. A resposta confirma o engano e deixa o romeiro/D. João de Portugal consciente de que todos o abandonaram.».

Didascália inicial do ato III de Frei Luís de Sousa


NOTAS:

1.ª) Se compararmos o espaço onde decorrem os três atos, constatamos que há um afunilamento progressivo desse mesmo espaço. Com efeito, no ato I, a câmara onde a ação decorre tem duas grandes janelas para o exterior e duas portas desimpedidas. Já o segundo ato decorre num espaço fechados, sem janelas e com portas cobertas de reposteiros, ocupando lugar de destaque uma tribuna que comunica com a Capela da Senhora da Piedade, da igreja de São Paulo dos Domínicos. Por último, o ato III decorre num espaço ainda mais fechado (o piso inferior do palácio de D. João), cuja única porta de comunicação para o exterior dá para a tal capela.

2.ª) O espaço em que decorre o último ato é um casarão sombrio, decorado apenas com objetos litúrgicos, associados às cerimónias religiosas, em especial à Semana Santa, e com ligação direta à capela (onde decorrerá a tomada de hábito e se concretizará a morte de Maria), configurando um afunilamento/concentração do espaço ao longo da peça.

3.ª) O espaço descrito simboliza a clausura e o aprisionamento das personagens; por outro lado, trata-se de um local que sugere desconforto, frieza, tristeza.

4.ª) A nota sobre o tempo coloca a ação a decorrer quando é alta noite, o que, à semelhança do espaço, permite concluir pelo afunilamento desta categoria do texto dramático, o qual é intencional. Os antecedentes da ação, que abarcam um longo período de 21 anos, são apenas evocados nas falas das personagens, ocupando a intriga propriamente dita apenas uma semana. O segundo e o terceiro atos sucedem num dia, o que confirma que estamos perante uma forte concentração temporal.tt

5.ª) Por outro lado, simbolicamente, a noite está associada à morte, o que se pode relacionar com o facto de todos os elementos da família morrerem no final da peça: Manuel de Sousa e D. Madalena morrem para a vida, isto é, morrem psicologicamente, e Maria morre fisicamente. No entanto, se considerarmos que a alta noite antecede a manhã de um novo dia, a noite alta representa simbolicamente a possibilidade de redenção dos pecados através do renascimento e da purificação proporcionados pela religião, mais concretamente pela tomada de hábito (estaríamos, assim, na presença do processo de morte seguida de ressurreição, ideia prenunciada pelos elementos do cenário que remetem para a Semana Santa).

6.ª) A luminosidade do ambiente é escassa. Mergulhado na penumbra, o cenário, apenas iluminado por «tocheiras», «tocha acesa e já gasta», «vela acesa», propicia uma introspecção profunda onde tudo indicia a “entrada” para a vida religiosa, para a Ordem dos Dominicanos, ideia acentuada pela presença das «alfaias e guisamentos de igreja» e pelo hábito.

7.ª) A cruz negra com o letreiro, aliadas aos restantes elementos ligados à vida religiosa, simboliza que alguém passará por sofrimento, sacrifício, martírio e morte para a vida mundana.

8.ª) O jogo penumbra / luz e o ambiente secreto, intimista, de intenso recolhimento possibilitam o encontro do «eu» com os mais recônditos lugares do seu espaço interior.

9.ª) A obra não obedece à unidade de espaço, pois decorre em lugares diferentes, embora todos os acontecimentos decorram em Almada.

10.ª) O espaço ganha uma dimensão trágica, pois fecha-se gradualmente, não possibilitando a saída das personagens para a dimensão física da vida.
A progressiva escassez de elementos decorativos e de luminosidade adensam a atmosfera trágica que culminará na catástrofe.

11.ª) O espaço, despojado (não há elementos de decoração, os adereços e o mobiliário são reduzidos ao mínimo), tumular, prenuncia o fim das inquietações terrestres e a entrega à espiritualidade. Os bens e os valores materiais e mundanos são abandonados. Predominam os adereços necessários à realização de cerimónias religiosas: tocheiras, cruzes, círios e outras alfaias e guisamentos de igreja, etc.). Todos estes elementos se adequam ao desenrolar do terceiro ato, dado que Manuel de Sousa e D. Madalena vão professar como forma de expiar a sua culpa.

12.ª) O facto de a ação decorrer de madrugada, de acordo com os princípios românticos, contribui para adensar a atmosfera funesta.

13.ª) Não há qualquer ligação ao exterior. As saídas dão unicamente para a capela e para os baixos do palácio de D. João.

sábado, 11 de janeiro de 2020

Análise da Cena 1 do Ato III de Frei Luís de Sousa

● Esta primeira cena do terceiro ato liga-se à última do anterior. Essa ligação é estabelecida pela fala inicial de Manuel de Sousa: “Oh minha filha, minha filha!”. Ora, o ato precedente termina com D. Madalena a sair espavorida da sala, gritando por Maria, a principal vítima da desgraça que se abateu sobre a família após a certeza de que D. João de Portugal está vivo.


Assunto

Nesta cena, apresentam-se as decisões tomadas após a descoberta de que D. João de Portugal está vivo (e regressou, embora deste último facto tenham conhecimento unicamente Frei Jorge, Manuel de Sousa e o arcebispo).


Caracterização de Manuel de Sousa Coutinho

▪ Manuel de Sousa sente-se extremamente infeliz e conturbado por causa da ilegitimidade da filha, pela qual se sente responsável. Mais concretamente, a sua preocupação centra-se nos efeitos que os novos desenvolvimentos terão na frágil saúde de Maria e com as consequências sociais da sua ilegitimidade. Ele está convicto que a filha acabará por morrer perante a «afronta» que lhe é feita: a doença vai-a minando e debilitando, o que faz com que a sua resistência aos acontecimentos será muito pouca.

▪ Manuel de Sousa considera que o seu casamento com D. Madalena foi um erro e não um crime (faz tal afirmação, pois casou-se sem uma prova inequívoca da morte de D. João de Portugal, não obstante a esposa o ter procurado durante 7 anos por todo o lado). Porém, não considera o seu casamento um crime, visto que as suas ações foram praticadas sem que tivesse consciência de que estava a incorrer em adultério e bigamia. Dito de outra forma, um crime deve ser punido, enquanto um erro, ainda por cima involuntário, pode ser cometido sem se ter a consciência de que se está a errar, pelo que merecerá uma sanção menos pesada.

▪ Pode ler-se aqui uma crítica velada à sociedade da época, pois condena uma família à destruição, por causa do desaparecimento de alguém ocorrido há mais de vinte anos.

▪ É um homem dominado por um profundo sentimento de culpa: sente-se culpado pela ilegitimidade da filha, pelo mal causado a D. João e pela vergonha com que cobriu o nome da família.

▪ Considera-se mais infeliz do que o Romeiro, pois, além de tudo, carrega a certeza de ser o verdadeiro culpado pela desgraça que recai sobre todos. De facto, Manuel de Sousa considera ter sido ele (1) o causador da destruição de D. João; (2) o causador da sua desonra, da da esposa e da filha; (3) o culpado de toda a desgraça, mas ser a filha inocente a grande vítima da situação.

▪ A situação de Maria leva-o a, por um lado, desejar que ela viva (“Peço-te vida, meu Deus, peço-te vida, vida… vida para ela,”), pois é uma vítima inocente (é o amor de pai a falar), e, por outro, a pedir a sua morte (“meu Deus! eu queria pedir-te que a levasses já”), já que tem consciência das consequências que se irão abater sobre a filha, que será marginalizada pela sociedade (“vai cair toda essa desonra, toda a ignomínia, todo o opróbrio.”). É um pai a sangrar pela desonra que se abateu sobre a filha.

▪ Considera D. Madalena uma «infeliz» e «desgraçada» por ter sido arrastada por ele para a vergonha e para a infâmia.

▪ As atitudes corporais de Manuel de Sousa (os atos de se levantar e de apertar a mão do irmão enquanto fala) demonstram o seu nervosismo e a sua aflição.

▪ O seu discurso reflete a emotividade que o caracteriza ao longo da cena: frases curtas (“Oh, minha filha, minha filha!”), alternando com frases longas de construção erudita (terceira fala de Manuel de Sousa); apóstrofes (“Olha Jorge”); hipérboles (“bebeu até às fezes o cálix das amarguras humanas”; “A lançar sangue?... Se ela deitou o do coração”); metáforas (“para pôr tudo na testa branca e pura de um anjo”); frases de tipo exclamativo e interrogativo. Todos estes recursos conferem ao discurso uma grande intensidade dramática.

▪ Manuel de Sousa está prestes a ingressar no convento e a tornar-se Frei Luís de Sousa.

▪ Note-se o contraste entre o Manuel de Sousa Coutinho que encontramos nos atos I e II e aquele que nos é dado a conhecer nesta cena. De facto, nos atos anteriores, a personagem surgiu em palco como um homem sensato, racional, determinado, pragmático e corajoso, porém, agora, após a chegada do Romeiro e o agravamento do estado da filha, revela-se uma figura dilacerada, profundamente infeliz, desesperado, quer pela doença da filha, quer pela desgraça que está a abater-se sobre a família, quer por se sentir o maior culpado pela infelicidade dos outros.

▪ Nesta mesma cena, é possível observar que a personagem oscila entre a emotividade e a racionalidade. A primeira, bem ao gosto romântico, manifesta-se essencialmente sempre que se refere a Maria, enquanto a racionalidade que o caracterizava anteriormente aflora quando, após analisar a situação em conjunto com Frei Jorge, assume a tomada de hábito como a solução mais adequada para o problema.


Caracterização de Frei Jorge

▪ A principal função de Frei Jorge é ser o confidente e conselheiro do irmão, informando-o (sobre o destino da mulher e da filha), orientando-o e consolando-o, após as terríveis notícias.

▪ Quando Manuel de Sousa se diz o homem mais infeliz na Terra, Frei Jorge recorda-lhe a situação de D. João de Portugal, que perdeu tudo quanto tinha.

▪ Procura consolar o irmão, dizendo-lhe que encontrará a paz e a redenção na religião, mas não deixa de o chamar à razão de forma inflexível, impedindo-se de se deixar cegar pelo seu sofrimento e desespero.

▪ A sua fé e a sua lucidez orientam as ações de Manuel de Sousa, que está incapaz de decidir racionalmente.

▪ Procura manter-se tranquilo e sensato, não se deixando dominar pelos acontecimentos funestos. Ele aceita-os como resultado da vontade divina, que não pode ser contestada.

▪ É um homem prático perante as circunstâncias, por isso prepara a entrada de Manuel de Sousa e de D. Madalena no convento, que considera ser a única possibilidade para o casal remediar a situação.


Informações sobre o passado recente

O diálogo que ocorre nesta cena entre os dois irmãos veicula um conjunto de informações sobre o que se passou no curto espaço de tempo que mediou entre o final do ato anterior e o início deste:
- D. Madalena e Manuel de Sousa decidiram entrar na vida religiosa como solução para o problema;
- o estado de saúde agravou-se desde a chegada a Lisboa;
- somente o arcebispo, Manuel de Sousa e Frei Jorge conhecem a identidade do Romeiro, que chegará ao conhecimento das outras personagens por fases (“Demais, o segredo de seu nome verdadeiro está entre mim e ti, além do arcebispo.”);
- Maria não sabe dos últimos acontecimentos em torno de D. João de Portugal;
- Telmo irá encontrar-se com o Romeiro, a pedido deste.


Linguagem e recursos estilísticos

Metáforas e hipérboles: de caráter religioso, traduzem o sofrimento das personagens e apontam para a ideia de morte:
. “bebeu até às fezes o cálix das amarguras humanas”;
. “cobri-lhas de um véu de infâmia que nem a morte há de levantar, porque lhe fica perpétuo e para sempre lançado sobre o túmulo a cobrir-lhe a memória de sombras… de manchas que se não lavam!”;
. “Já que te não pode apartar o cálix dos beiços”;
. “cubra-me o escárnio do mundo, desonre-me o opróbrio dos homens, tape-me a sepultura uma loisa de ignomínia, um epitáfio que fique a bradar por essas eras desonra e infâmia sobre mim”.


Características românticas:
. forma do texto: escrito em prosa;
. religiosidade: referências ao cristianismo e ao culto religioso – preparação da tomada de hábito;
. o tema da morte, encarada como a melhor solução para os conflitos;
. o individualismo: o confronto entre o indivíduo e a sociedade.


Características trágicas

▪ A hybris de Manuel de Sousa, que chega a desejar a morte da filha face à sua ilegitimidade.

▪ Os indícios de tragédia: quando Manuel de Sousa a designa por «anjo» , prenuncia a sua morte, o seu abandono do mundo terreno, visto que os anjos não pertencem ao mundo físico terreno.

Análise da Cena 2 do Ato III de Frei Luís de Sousa

● Telmo entra em cena, juntando-se a Manuel de Sousa e Frei Jorge, trazendo notícias sobre Maria:
- Maria acordou e sente-se melhor;
- apesar de abatida, fraca e com voz lenta, o seu olhar está mais sereno e animado;
- perguntou pelo pai e pelo tio, mas não se referiu à mãe.
A este propósito, há que notar a hesitação de Telmo quando refere por quem Maria perguntou: «Perguntou por vós… ambos.», pois não quer dizer que ela nada questionou acerca da mãe. Esta postura de Maria talvez signifique que responsabiliza a mãe pelo que está a acontecer, que a culpa pela tragédias iminente.

Quando entra em cena, Telmo diz simplesmente «Acordou.», não sentindo a necessidade de identificar a quem se refere. Este comportamento justifica-se por ser desnecessária essa identificação, dado que Maria está presente no pensamento e na preocupação de todos.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

A tragédia clássica: origens e características

Introdução

A tragédia é uma forma dramática ou peça de teatro, em geral solene, cujo fim é excitar o terror ou a piedade, baseada no percurso e no destino do protagonista ou herói, que termina, quase sempre, envolvido num acontecimento funesto. Nela se expressa o conflito entre a vontade humana e os desígnios inelutáveis do destino, nela se geram paixões contraditórias entre o indivíduo e o coletivo ou o transcendente. Em sentido lato, pode abranger qualquer obra ou situação marcada por acontecimentos trágicos, ou seja, em que se verifique algo de terrível e que inspire comoção.
A palavra tragédia vem do grego trágos + odé, que significa canto dos bodes ou canto para o bode. Crê-se que resultou de os atores se vestirem com pele de cabra ou de, primitivamente, na Grécia, nas festas em louvor a Dionísio (o deus grego do vinho e da alegria, tal como Baco entre os Romanos), se sacrificar um bode (tragos) ao som de canções (odé) executadas por um corifeu (elemento destacado do coro, que pode cantar sozinho) acompanhado por um coro.
A origem da tragédia como teatro parece ter acontecido em 534 a.C., quando um corifeu chamado Téspis decidiu encarnar a personagem Dionísio, dramatizando os ditirambos (composições líricas corais) num diálogo com os restantes elementos do coro, que passou a ter um papel de espectador privilegiado ao interpretar os sentimentos dos outros espectadores.
Se os cantos e as danças, entusiastas, com sátiras a alguns aspetos da vida permitiram o aparecimento da comédia, as reflexões mais sérias e tristes que mostravam os aspetos negativos da existência, muitas vezes pela crença num destino funesto, provocaram o aparecimento da tragédia.


Estrutura da tragédia clássica grega

As partes principais da tragédia clássica grega são o Prólogo (introdução e preparação para a entrada do coro), o Párodo (entrada do coro), Episódios (cenas no palco, entre os cantos corais, com os atos que constituíam a intriga), Estásimos (trechos líricos executados pelo coro), o Epílogo (desenlace ou desfecho). Isto significa que era constituída por 5 atos: um introdutório (o prólogo), três centrais (no último, situa-se o clímax ou ponto culminante da ação, com a anagnórise ou reconhecimento) e um conclusivo, o epílogo, no qual se situa a catástrofe.
A tragédia clássica latina (influenciada pela comédia nova grega) apresentava o Prólogo (exposição inicial), os Episódios (os atos que constituíam a intriga) e o Êxodo (desenlace ou desfecho).


Elementos intrínsecos característicos da tragédia

Na tragédia, percebe-se o seguinte percurso: após a hybris (desafio do protagonista aos deuses, às autoridades ou ao destino; o sentimento de orgulho desmedida leva o herói a perpetrar uma violação à ordem estabelecida, através de uma ação que constitui o tal desafio aos poderes e ordens divinos), acontece o páthos (sofrimento intenso como consequência do desafio e capaz de despertar a compaixão do espectador) e surge a agnórise ou anagnórise (reconhecimento de um facto inesperado ou o reconhecimento de uma personagem), que desencadeia o clímax (etimologicamente, “escada” ou “gradação”, é o crescendo trágico até à peripécia, ou seja, à mudança repentina de estado nas personagens, muitas vezes como resultado da agnórise; é o ponto máximo da tensão, a partir do qual se define o desfecho; o ponto culminante é a acmê); daqui resulta a cathársis (a catarse é a reflexão purificadora, a purgação ou purificação dos sentimentos dos espectadores, que se identificam com os conflitos representados) e a catástrofe ou catástase (desfecho trágico). Algures ocorre a peripeteia ou peripécia (a súbita mudança de acontecimentos que altera completamente o rumo dos acontecimentos) e o ágon [o conflito que decorre da hybris desencadeada pelo(s) protagonista(s)].
Outros elementos sempre presentes são a némesis (vingança dos deuses, ou do destino, perante o desafio arrogante do homem), o destino (moira), a anankê ou fatum (necessidade como fatalidade; o destino, a força inexorável que determina o rumo da ação e à qual têm de se submeter os seres humanos, os heróis e os próprios deuses), a phóbos (sentimento de terror, de medo) e a éleos (sentimento de piedade).
Há ainda a considerar os traços seguintes:
▪ o homem subordina-se a um destino inelutável, sendo um mero instrumento dele e joguete dos deuses;
▪ o protagonista é um homem justo que, sem culpa, cai da felicidade na desgraça;
▪ o protagonista atua movido por forças superiores (o destino, os deuses);
▪ ao longo dos atos, a ação desenvolve-se num crescendo de intensidade que torna a catástrofe inevitável;
▪ os protagonistas são geralmente três, acompanhados respetivamente de outros três secundários;
▪ a personagem coletiva – o coro –, inverosímil de um ponto de vista realista, apresenta como função o ato de comentar ou anunciar o desenrolar dos acontecimentos sem interferir neles (estabelece uma relação entre o autor e o público);
▪ a lei das três unidades: unidade de espaço (a ação decorre no mesmo cenário e os acontecimentos passam-se todos no mesmo lugar), de tempo (a ação ocorre num período de 24 horas, mostrando que a ação do destino é imperativa e fulminante) e de ação (a peça desenrola-se em torno de um só problema central, não se desviando para problemas secundários);
▪ a linguagem da tragédia é o verso.

Ésquilo é o primeiro poeta trágico clássico, a que se lhe seguiram Sófocles e Eurípides, que acrescentaram outros atores ao corifeu, podendo cada um desempenhar vários papéis com recurso a máscaras. Entre os romanos, foram importantes dramaturgos Lívio Andrónico e Séneca; na época clássica, merecem referência Shakespeare, Calderón de la Barca, Corneille, Racine ou o português António Ferreira, com A Castro; na época moderna, os grandes representantes da tragédia são Ibsen, Strindberg e Tchekhov.
Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, apesar de ser um drama romântico, pode aproximar-se da tragédia clássica na medida em que é possível encontrar quase todos os elementos da tragédia, embora nem sempre obedeça à sua estruturação objetiva.
Tal como foi teorizada e cultivada pela Antiguidade greco-latina e pela literatura clássica, a tragédia, com o seu conjunto de convenções rígidas de género, com a intervenção de personagens heroicas em conflito com deuses vingadores, subordinadas a um fatum inelutável, é um género extinto desde o Romantismo (cf. STEINER, George – La Mort de La Tragédie, Paris, 1965). Quando se fala de "tragédia" na época contemporânea, é necessário lembrar a distinção estabelecida por G. Genette (cf. Introduction à l'Architexte, Paris, 1979) entre "tragédia" e "trágico", pelo que não se deve confundir o género "tragédia", definido na Poética de Aristóteles, por oposição a outro género nobre, a epopeia, e a um género menor, a comédia, com outra realidade "puramente temática e de ordem mais antropológica do que poética: o trágico, isto é, o sentimento da ironia do destino ou a crueldade dos deuses" (id. ibi., p. 25, trad.). O recurso ao "trágico" na época contemporânea pode traduzir-se na introdução do arcaboiço temático ou estrutural da tragédia sob outros discursos, como o romanesco, como sucede, por exemplo, em Os Maias, de Eça de Queirós.


Fonte: Infopedia


segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Didascália inicial do ato II de Frei Luís de Sousa

1. ESPAÇO

1.1. Espaço físico / geográfico

NOTAS:

1.ª) Salão despido, pouco confortável, sem qualquer marca de humanização.

2.ª) Espaço mais sombrio, frio, austero, escassamente iluminado e fechado, o que está em sintonia com o estado de espírito das personagens, cada vez mais angustiadas e cercadas pelo Destino.

3.ª) Espaço opressivo, de confidências e também de recordação e reencontro com o passado, contribuindo para o avolumar do «pathos».

4.ª) Um trio de retratos ocupa um espaço privilegiado, numa cumplicidade onde se misturam o idealismo, o patriotismo, a desgraça e a fatalidade. Camões, grandioso épico que dedica a D. Sebastião Os Lusíadas, pedindo-lhe que dê matéria a outra epopeia, incentivando o jovem monarca a cometer grandes feitos no Norte de África para concretizar ideais elevados (difusão do Cristianismo e engrandecimento da Pátria); D. Sebastião não concretizará o seu ideal, morrendo na batalha de Alcácer Quibir. D. João de Portugal, um dos nobres que integrou o trágico exército, nobre honrado, patriota, fiel e corajoso, também desapareceu naquele fatídico areal africano.

5.ª) O ambiente fechado parece escassamente iluminado, evidenciando-se os reposteiros pesados de tecidos espessos de amplas dimensões, por um lado, indiciando que ocultam algo, por outro lado, remetendo para a ideia de que, uma vez descerrados, se passará para um outro espaço, que estará ligado a uma qualquer desgraça ou fatalidade.

6.ª) A mudança de lugar, decorrente do acto de Manuel deitar fogo ao seu palácio (traço histórico), é feita para um mundo absolutamente fechado em si próprio (cenários dos 2.º e 3.º actos). O palácio agora ocupado pertence ao marido que regressa, insufla vida ao passado. As recordações transformam-se logo em pressentimentos. O espaço anuncia a desgraça que se aproxima, tem uma acção fatal, opressiva, ominosa.

Análise da Cena 15 do Ato II de Frei Luís de Sousa

Comentário da cena

Frei Jorge, atónito, ainda não completamente esclarecido, interroga o Romeiro para desfazer as últimas dúvidas. No entanto, é para ele que está reservada a última surpresa:
JORGE – «Romeiro, romeiro, quem és tu?»
ROMEIRO (apontando com o bordão para o retrato de D. João de Portugal) – «Ninguém».
O vocábulo posto na boca do Romeiro – ninguém (pronome indefinido) – encerra uma grande carga dramática e psicológica. Por um lado, é o desenlace trágico de uma situação insustentável; por outro, resume todo o sofrimento e a desilusão do Romeiro, que nada mais pode esperar da vida familiar. De facto, o sentido da palavra é abrangente: D. João de Portugal é ninguém no sentido de não ser esperado por nenhum dos seus familiares, que organizaram a sua vida na base da sua morte; a sua própria casa já não lhe pertence, está ocupada por um intruso. Assim, o Romeiro anula-se enquanto pessoa com identidade própria, por não ter existência para os outros, por não ter a vida a que tinha direito, uma vez que a sua própria família construiu, a partir da sua «morte», uma à sua. De facto, o Romeiro fizera todos os esforços para se manter vivo na Palestina e regressar a Portugal para a sua esposa, mas esta não só já não o esperava, como também construíra a sua felicidade em cima da sua «morte». Assim, apagado da memória da mulher que amava e era toda a sua família, D. João de Portugal perdeu tudo durante os 20 anos de cativeiro: – a família; – a identidade (ninguém o reconhece); – o lugar que era seu / a sua casa. D. João de Portugal, aniquilado, é o símbolo de Portugal. Além deste sentido, pode também ser interpretada como outra prolepse, uma antecipação do desenlace de D. João: o anonimato.
E ali está presente e vivo D. João, alçado no meio da casa, com aspeto severo e tremendo. Ele vem reclamar tudo a que tem direito: a casa, a esposa, o nome... Quem poderá negar-lhe esse direito? Que lei, divina ou humana, poderá ser invocada para, com justiça, lho negar?
Frei Jorge compreende, por fim, toda a verdade. E só então parece medir o alcance das implicações desastrosas que essa descoberta vai trazer para D. Madalena, para Manuel de Sousa e para Maria. Daí que Frei Jorge caia prostrado no chão, com os braços estendidos diante da tribuna, como a implorar do Céu remédio, para o que, desde agora, já não tem nem pode ter remédio.

NOTAS:

1.ª) A figura do Romeiro concretiza a figura de D. João:
. sem o seu aparecimento não haveria drama;
. é o agente destruidor da tranquilidade da família, aparentemente feliz;
. é uma espécie de fantasma ou entidade abstrata nos dois primeiros atos, que absorve os pensamentos de Madalena, Telmo, Manuel e do próprio Frei Jorge;
. no ato III, vai precipitar o desenlace trágico, apesar da sua atuação como personagem ser reduzida.
Sobre a figura do Romeiro, informa António José Saraiva: "O Romeiro é o portador da fatalidade: o aparecimento dele vem anular toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua esposa viúva e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. O passado, que se julgava morto como um vulcão extinto, vem tragar os vivos que se tinham instalado na sua cratera.".

2.ª) O tempo (hoje) e o espaço (a área da moldura do retrato) atingem forte concentração, direcionando a ação dramática para a catástrofe.

3.ª) Esta é uma cena dispensável para os espectadores/leitores, que já sabem tudo; todavia, é importante para Frei Jorge que, além de acumular o máximo de informações, terá um papel importante a cumprir.

4.ª) Comparando esta cena com a última do primeiro ato, constata-se que são ambas espetaculares e que o paralelismo de construção é uma constante no Frei Luís de Sousa.

5.ª) Quem, além dos espectadores/leitores, fica a saber, no final do segundo ato, que o Romeiro é o próprio D. João de Portugal?
D. Madalena, ausente desde o fim da cena anterior, só ficou a saber pelas palavras do Romeiro-mensageiro que D. João de Portugal esteve sempre vivo durante todos aqueles anos, que estava ainda vivo nessa altura, que lhe enviou aquele estranho recado.
As restantes personagens encontram-se em Lisboa.
Só Frei Jorge, confidente qualificado, na dupla posição de irmão de Manuel de Sousa e cunhado de D. Madalena, e de sacerdote, recebe e percebe totalmente a informação de que conclui, sem dúvida, estar em presença do próprio D. João de Portugal.
Por isso, haverá outros momentos de anagnórise, de modo que todas as outras personagens, frente a frente, reconheçam no Romeiro o próprio D. João de Portugal.


Características trágicas (cenas 14 e 15)

▪ O simbolismo do tempo: D. João regressa numa sexta-feira (o4/08/1599), no vigésimo primeiro aniversário da batalha de Alcácer Quibir (sexta-feira)  21 = 7 (tragédia) x 3 (perfeição) = tragédia perfeita.

▪ Semelhança do assunto com as antigas tragédias gregas: a volta de D. João sob disfarce de um mendigo (Ulisses).

Hybris de D. João de Portugal
A hybris de D. João é anterior ao início da ação:
-» abandona a esposa, embora por razões nobres: acompanha o rei à guerra, em defesa do reino e da Fé, por motivos cavaleirescos; na sociedade feudal, aos nobres cabia combater, pelo rei e pela grei, e em defesa da Fé. Era este um dos ideais da cavalaria medieval. Por esse ideal se arriscava a vida, se sofria a morte, ou o cativeiro, e se atingia a glória: como diz Manuel de Sousa: "... não hajais medo que nos venha perseguir neste mundo aquela santa alma que está no céu, e que em tão santa batalha, pelejando por seu Deus e por seu rei, acabou mártir às mãos dos infiéis" (I, 8);
-» o abandono da esposa é um crime contra as leis e os direitos da família, porque a destrói. É um crime de impiedade;
-» embora vivo, depois da batalha, fica prisioneiro, é levado cativo para Jerusalém e, durante quase 21 anos, não dá notícias suas, embora contra vontade;
-» todos o consideram morto.

Agón de D. João de Portugal
Antes do regresso, na figura do romeiro-mensageiro, os conflitos com as outras personagens manifestam-se:
1. em D. Madalena, na consciência atormentada pelos remorsos;
2. em Telmo:
- nos ciúmes, nos agouros e profecias, na crença no regresso de seu amo, baseado nos dizeres de a célebre carta, escrita na madrugada da batalha;
- nas prevenções e nas opiniões desfavoráveis a Manuel de Sousa, em confronto com as qualidades de D. João;
- na animadversão contra Maria;
3. em Maria, nos sonhos premonitórios e na sagacidade com que perscruta as palavras e as meias-palavras, os silêncios, os olhares, os gestos da mãe e do pai, o conflito com Telmo, até lhe ser revelada a identidade da figura do retrato (II, 2).
Mas o conflito, face a face, com D. Madalena, verifica-se com a entrada do romeiro-mensageiro (II, 14), em todo esse diálogo de grande densidade.
Nessas frases do Romeiro, carregadas de duplos sentidos, de alusões veladas ou claras, mas sempre diretas, de ironias, de sarcasmos, de graves acusações, as palavras ferem como punhais; por isso este diálogo é, antes de tudo, um autêntico duelo de palavras, em que D. Madalena por fim sucumbe, naquele grito espantoso, em tom cavo e profundo, grito de coração – como indicam as rubricas
Em primeiro lugar, o Romeiro não é apenas um mensageiro, um qualquer que traz um recado. É um português "como os melhores": os melhores são os nobres, os aristocratas. É esse mesmo o significado da palavra. Em segundo lugar. Viveu nos Santos Lugares "vinte anos cumpridos". Em terceiro, operou-se nele uma grande mudança entretanto: "Estou tão velho e mudado do que fui". Em quarto, se houve mudanças físicas, os sentimentos, as paixões permaneceram: "... as paixões mundanas, e as lembranças dos que se chamavam meus segundo a carne travavam-me do coração e do espírito...". Em quinto, não tinha deixado descendência: "Eu não tenho filhos, padre". Em sexto, já não tem família: "Já não tenho família". A frase é ambígua; os advérbios marcam, com amarga ironia, o presente estado de coisas no seu lar, em confronto com o passado. E parentes? Amigos? "Os mais chegados, os que me importava achar... contaram com a minha morte, fizeram a sua felicidade com ela". Esta resposta é uma alusão pungente e de amarga ironia à esposa infiel. E segue-se-lhe outra grave acusação: "Necessidade pode muito. Deus lho perdoará, se puder". Que sarcasmo e que crueldade do Romeiro contra D. Madalena. E ele prossegue: "De parentes já sei mais do que queria. Amigos, tenho um; com esse conto", numa referência óbvia a Telmo. Qual será a sua desilusão, quando mais tarde verificar que também perdeu esse amigo? Por fim, nova cruel ironia, novo sarcasmo: "Agora acabo; sofrei, que ele também sofreu muito".

Há ainda outros elementos desse conflito, na progressiva identificação do romeiro-mensageiro com a figura de D. João de Portugal:
1. Quem o encarregou de trazer o recado foi "... um honrado homem... a quem unicamente devi a liberdade... a ninguém mais". Esta frase ambígua é, todavia, muito clara para quem tivesse ouvidos para ouvir.
2. "... lágrimas de sangue que lhe vi chorar, que muitas vezes me caíram nestas mãos, que correram por estas faces. Ninguém o consolava, senão eu... e Deus!". A identificação está bem clara. Só uma espécie de anestesia moral muito inquietante, dadas as circunstâncias, é que poderá explicar a falta de clarividência de D. Madalena.
3. Mais claro ainda, se é possível: conhecê-lo-ia "Como se me visse a mim mesmo num espelho".
Mas, afinal, não bastou tudo isto. Foi preciso que Frei Jorge tomasse a iniciativa de obrigar o Romeiro a procurar, de entre os retratos, aquele que representava D. João de Portugal, para D. Madalena abrir por fim os olhos à evidência, e sucumbir, no fim deste duelo, desta luta de golpes certeiros.

▪ O aparecimento do Romeiro, pelo aspeto com que se apresenta, pela determinação de quem sabe o que faz e o faz do modo que quer, pela terrível mensagem de que é portador, pelo reconhecimento da sua verdadeira identidade:
. não é um acontecimento gratuito;
. nem desprovido de significado;
. antes verosímil e necessário, porque o argumento da tragédia gira à volta de um regresso do marido ausente, e porque assim o sentem as personagens envolvidas;
. constitui, portanto, uma autêntica peripécia, que se caracteriza por ser imprevista e imprevisível quanto ao mandatário, quanto ao teor da mensagem, quanto ao reconhecimento da personagem oculta.

▪ A peripécia é dinâmica, porque faz progredir e intensificar a ação (clímax) até ao ponto culminante (acmê).

▪ A intensificação da ação provoca sofrimentos terríveis (pathos), sobretudo em D. Madalena, mas também em Frei Jorge e, posteriormente, nas outras personagens.

▪ O ponto culminante corresponde ao momento do reconhecimento (anagnórise) da última cena.

▪ Verdadeira «reviravolta da fortuna», na designação aristotélica, a anagnórise precipita, por fim, o desfecho (catástrofe), pela grave modificação das posições relativas de cada personagem.


Duas notas finais:

1.ª) a extrema economia de meios, a densidade da «trama dos factos» e a concentração de efeitos (cenas 11 a 15);

2.ª) a forma como Garrett segue o preceito aristotélico: "A mais bela forma de reconhecimento é a que se dá com a peripécia".


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