Português

domingo, 27 de novembro de 2011

Tempo da ação / diegese

     Apesar de, na primeira didascália que antecede o início do ato I, constar a referência à "... caprichosa elegância portuguesa dos princípios do século dezassete", a ação desenrola-se, efetivamente, em 1599, último ano do sécilo XVI. O próprio Garrett declarou, na Memória ao Conservatório Real, lida a 6 de maio de 1843, que os aspetos cronológicos não o preocuparam aquando da escrita da peça, pois considerou mais importante "o trabalho da imaginação", irreconciliável com os "algarismos das datas".
     Com efeito, a ação respeitante ao ato I inicia-se no dia 28 de Julho de 1599, no final da tarde de uma sexta-feira, e terminada na madrugada de 5 de agosto do mesmo ano.

     Cronologicamente, os acontecimentos abordados na peça são os seguintes:
  • 4 de agosto de 1576: casamento de D. Madalena com D. João de Portugal (II, 10);
  • 4 de agosto de 1577: D. Madalena vê pela primeira vez Manuel de Sousa Coutinho (II, 10);
  • 4 de agosto de 1578:
               - batalha de Alcácer Quibir;
               - desaparecimento de D. Sebastião e de D. João;
  • de 1578 a 1585: durante este período de 7 anos, ocorrem as buscas infrutíferas de D. João de Portugal - D. Madalena envida todos os esforços no saber notícias do seu marido, sem, contudo, obter qualquer resultado ("... D. João ficou naquela batalha (...) como durante sete anos (...) o fiz procurar..." - 1578 + 7 = 1585);
  • 1585: D. Madalena casa com Manuel de Sousa, por quem se apaixonara ainda durante o primeiro casamento;
  • 1585 a 1599: 14 anos do segundo casamento ("... vivemos (...) seguros, em paz e felizes... há catorze anos.");
  • 1586: nascimento de Maria ("Então! Tem treze anos feitos..." - I, 2);
  • 4 de agosto de 1598: libertação de D. João de Portugal;
  • 28 de julho de 1599: incêndio do palácio de Manuel de Sousa Coutinho (I, 12);
  • 4 de agosto de 1599: chegada do Romeiro (II, 1-14);
  • madrugada de 5 de agosto de 1599:
               - morte de Maria;
               - tomada de hábito de D. Madalena e D. João de Portugal.

     Tendo em conta estes dados, conclui-se que o tempo da diegese dramática é de 21 anos: 1578 a 1599.

     A ação propriamente dita desenrola-se em cerca de uma semana:
  • Julho:
               - 28 ® ato I ("É no fim da tarde.")
              (sexta-feira)
  • Agosto:
               - 1 a 3 ® D. João aproxima-se da sua casa (três dias)
               - 4 ® ato II  ® 8 dias após o final do ato I e do incêndio
               (sexta-feira)      ® chegada do Romeiro
               - 5 ® ato III ® "alta noite"
                    ® tomada de hábito (morte para o mundo)
                    ® morte de Maria 
                    ® partida do Romeiro


  • Concentração / afunilamento do tempo
     De acordo com os preceitos da tragédia clássica, o tempo de Frei Luís de Sousa sofre uma redução progressiva que contribui para a construção da tensão dramática: 21 anos (1578 a 1599) ® 14 anos (duração do segundo casamento de D. Madalena) ® 7 anos (tempo durante o qual D. Madalena procurou, em vão, D. João) ® 1 ano (tempo que medeia entre a libertação e a chegada do Romeiro a Almada) ® 8 dias (vida da família no palácio de D. João) ® 3 dias (D. João aproxima-se da sua casa) ® 1 dia (4 de agosto - «Hoje» - chegada do Romeiro / D. João) ® 5 horas da madrugada de 5 de agosto (tomada de hábito e morte de Maria).



  • Simbolismo de algumas referências temporais
  • Sexta-feira: é um dia considerado aziago, conotado com a tragédia, de acordo com a tradição popular (por exemplo, a sexta-feira 13). Para D. Madalena, é um dia fatal ("Ai que é sexta-feira." - II, 5; "É um dia fatal para mim..." - II, 10) e foi nele que ocorreram os acontecimentos centrais da sua vida:
                         » primeiro casamento (com D. João);
                         » primeiro encontro com Manuel de Sousa, por quem se apaixona à primeira
                            vista,apesar de ainda estar casada com o primeiro marido;
                         » batalha de Alcácer Quibir;
                         » desaparecimento de D. João e de D. Sebastião;
                         » incêndio do próprio palácio por Manuel de Sousa, seguido da mudança, com
                            a família, para o de D. João;
                         » regresso de D. João, disfarçado de Romeiro.
  • Ambiente crepuscular e / ou noturno, caracteristicamente romântico, está associado à morte que se abaterá sobre a família e sublinha um certo aspeto transgressor que envolve toda a história daquele núcleo familiar:
                         » "É no fim da tarde" (didascália inicial do ato I);
                         » "É noite fechada" (I, 7);
                         » "É alta noite" (didascália inicial do ato III).
  • Número 7 e seus múltiplos:
                         »  D. Madalena procura saber notícias do seu primeiro marido durante sete
                             anos, após os quais se casa com Manuel de Sousa;
                         » o casamento de D. Madalena e Manuel de Sousa durava há catorze anos
                            (2 X 7);
                         » D. João regresso vinte e um anos após o seu desaparecimento / a batalha
                            de Alcácer Quibir (3 X 7).
     Ora o 7 é o símbolo da totalidade: 7 foram os dias da criação do Mundo, 7 são os pecados mortais e as virtudes que se lhe opõem, 7 são os dias da semana, 7 são as cores do arco-íris.
     Assim, o 7 é o número associado à conclusão de um ciclo e ao início de outro: o final da vida do casal e, consequentemente, com a tragédia; o fim de um ciclo (a destruição da família, a morte de Maria...) e o início de uma nova vida (tomada de hábito).
  • Número 9: este número simboliza também o nascimento de uma nova vida (por exemplo, os 9 meses de gestação de um ser humano), a passagem a outro estádio da existência; daí que a tomada de hábito, marcando a transição do mundo profano para o mundo religioso, tenha lugar ao nono dia. 
  • Número 3: o número da perfeição, daí que 21 seja o símbolo da tragédia perfeita (21 = 3 X 7). 
  •  Número 13: o número tradicionalmente associado ao azar (Maria tem treze anos).
  • Mês de agosto: mês do desgosto.
                         » simbologia do mês de agosto »»»
                         »  acontecimentos trágicos acontecidos durante agosto »»»

Caráter ominoso

     O caráter ominoso remete para o clima carregado de mistério e de fatalismo da peça, conferido pela repetição do número 7 (7, 14, 21) e pela sexta-feira, um dia tido como aziago.

Agon

. De D. Madalena:
     * interior, de consciência (I, 1):
               - personalidade aparente, feliz, ligada a Manuel de Sousa pelo amor-paixão;
               - personalidade real ou oculta, infeliz ou "desgraçada", ligada a D. João pela
                  memória do passado, pelo remorso do presente;
     * contínuo e crescente;
     * com Telmo:
          - apesar de lhe ter obedecido durante os 7 anos de «viuvez» como a um pai, D.
             Madalena não segue o conselho de esperar o regresso de D. João, anunciado na carta
             profética, escrita na madrugada da batalha de Alcácer Quibir;
     * com D. João:
          - nas conversas com Telmo, testemunha da «desobediência» de D. Madalena, conversas
             cheias de reticências, de subentendidos, de duplos sentidos, de alusões, de agouros,
             de «futuros», de pressentimentos de desgraça iminentes (I, 2);
          - a consciência atormentada e o remorso de D. Madalena (I, 1);
          - as reações de aflição, sublinhadas pelas lágrimas, sempre que Maria se refere à
             crença da sobrevivência e possível regresso de D. Sebastião (I, 3);
          - a relutância de voltar a viver no palácio de D. João (I, 7 e 8);
          - a reação tida ao chegar ao palácio do primeiro marido (II, 1);
          - a "confissão" a Frei Jorge (II, 10);
     * com Maria:
          - para Maria, há um enigma que nem a mãe, nem o pai, nem Telmo se prontificam a
             decifrar; são segredos e mistérios intuitivamente pressentidos que não consegue
             desvendar;
          - a razão por que nem a mãe nem o pai, apesar do seu patriotismo ("... que ele não
             é por D. Filipe, não é, não?") acreditavam no regresso de D. Sebastião;
          - a razão por que, quando em tal se falava, o pai mudava de semblante e a mãe se
             afligia e até chorava;
     * com Manuel de Sousa Coutinho (I, 7 e 8): a necessidade de mudança para o palácio
        de D. João após ele ter incendiado o seu próprio lar, mudança a que ela se opõe.

. De Telmo:
     * de consciência: começa a ser evidente o conflito / a divisão de consciência entre o desejo
        do regresso de D. João e o amor a Maria / a incompatibilidade entre o amor a D. João e
        a Maria (III, 4);
     * com D. Madalena:
          - desaprova o casamento com Manuel de Sousa, baseado nos dizeres da carta profética
             de D. João, escrita na madrugada da batalha;
          - desaprova igualmente o casamento baseado na superstição de que, se D. João voltasse
             e aparecesse a D. Madalena, não se iria embora sem lhe aparecer também;
          - daí vieram os «ciúmes», as alusões, os agouros, os «futuros»;
          - este conflito de Telmo com D. Madalena fica sempre sem solução;
     * com Maria (I, 2):
          - a princípio, não a podia ver, por causa do seu nascimento em berço ilegítimo ("Digna
             de nascer em melhor estado");
          - o conflito com Maria termina, porque ela acabou por o cativar;
          - novo conflito (II, 1), no entanto, se pode observar nas evasivas, nas meias-verdades,
             nas reticências, na relutância em revelar a identidade da personagem do retrato;
          - é Manuel de Sousa quem identifica essa personagem (II, 2);
    * com Manuel de Sousa (I, 2):
          - apesar das qualidades que lhe reconhece, é, em sua opinião, inferior a D. João;
          - por conta deste tem "ciúmes" e alguma aversão por o considerar um intruso;
          - o conflito resolve-se quando Manuel de Sousa o cativa pelos atos de resistência aos
             governadores, que culminam com o incêndio do próprio palácio (I, 7, 8 e 12),
             chegando mesmo a admirá-lo;
     * com D. João de Portugal (III, 4 e 5):
          - o amor a Maria venceu o amor a D. João;
          - por isso, chega a oferecer a sua vida em troca da vida "daquele anjo" e a desejar a
             morte de D. João.

. De Maria:
     * não tem conflito interior;
     * com D. Madalena:
          - a propósito da sobrevivência e do regresso de D. Sebastião (cena 3, ato I) - D.
             Madalena não acredita, nem lhe convém acreditar nem uma coisa nem outra, enquanto
             Maria acredita firmemente;
          - desconfia que a mãe oculta alguma coisa muito importante; por isso, está sempre
             atenta, a observar os sobressaltos, as reações, a ansiedade da mãe a seu respeito; por
             isso, lê nas palavras, nas ações e nos gestos da mãe e do pai, à procura de indícios, de
             respostas para a sua curiosidade (cena 4);
          - não pode cumprir as esperanças nela depositadas (cena 4, ato I);
          - por isso, desejava ter um irmão;
     * com Manuel de Sousa:
          - duvida do patriotismo do pai (cena 3, ato I), por causa das atitudes que ele toma, ao
             ouvir falar de D. Sebastião ("Ó minha mãe, pois ele não é por D. Filipe, não é,
             não?");
          - a hipótese não tem fundamento.;
     * com os governadores de Lisboa (I, 5): a resistência à tirania, concretizada na ideia de
        lutar e organizar a defesa, para que aqueles não entrem no seu palácio;
     * com Telmo Pais (II, 1), a propósito da identidade da personagem do retrato:
          - as meias-verdades, as evasivas de Telmo, que a todo o transe pretende ocultar-lhe o
             nome do cavaleiro retratado;
          - os indícios observados por Maria, nos momentos que passou ali mesmo com a mãe,
             no dia da mudança para este palácio; a intuição do segredo e a persistência em a
             manterem na ignorância daquele "mistério";
     * com D. João de Portugal:
          - antes da mudança de palácio (cena 4, ato I):
               . pressente intuitivamente que alguém, fazendo sofrer a mãe, também não a deixa
                 ser feliz;
               . por isso, procura uma resposta, com os meios ao seu dispor: a capacidade de
                 "ler nas estrelas" e os sonhos e as visões ("... leio... nas estrelas do céu também,. 
                 e sei cousas...");
          - depois da mudança (II, 1 e 2):
               . fica a saber, a partir da atitude da mãe, que a figura representada no retrato e de
                 quem ignora a identidade, é esse alguém, causador de todos os sofrimentos;
               . daí a curiosidade e a persistência das perguntas a Telmo até à revelação da
                 identidade do retratado; no entanto, ela já o sabia "de um saber cá de dentro";
          - por fim (III, 11 e 12):
               . revela que sempre houve alguém a interpor-se entre ela e a mãe, entre ela e o
                 pai, por intermédio da figura simbólica de um anjo vingador: "Mãe, mãe, eu
                 bem o sabia... nunca to disse, mas sabia-o; tinha-mo dito aquele anjo que
                 descia com uma espada de chamas na mão, e a atravessava entre mim e ti,
                 que me arrancava dos teus braços quando eu adormecia neles... que me fazia
                 chorar quando meu pai ia beijar-me no teu colo";
               - identifica-o: "É aquela voz, é ele, é ele!".

. De Manuel de Sousa Coutinho:
     * não possui conflito de consciência;
     * não entra em conflito com outras personagens, exceto com os governadores;
     * a sua hybris desencadeia e agudiza os conflitos das outras personagens.

. De D. João de Portugal:
     * alimenta os conflitos dos outros:
          - com D. Madalena: a consciência atormentada pelos remorsos;
          - com Telmo:
               . a perda do aio por causa de Maria;
               . a luta contra a resistência de Telmo à sua ordem de mentir para salvar D.
                 Madalena;
          - com Manuel de Sousa Coutinho:
               . pela felicidade de ter uma filha;
               . por se sentir espoliado por ele e por D. Madalena: "Tiraram-me tudo";
          - com Maria:
               . pela felicidade de ter uma filha;
               . por o ter expulsado do coração de Telmo.

Coro

     O coro está presente em diversas circunstâncias:
          - nos agouros e prenúncios de desgraça próxima de Telmo;

Pathos

. De D. Madalena:
     - os terrores que se sente desde a cena I;
     - o sofrimento por causa do adultério;
     - o sofrimento pela incerteza da sorte do primeiro marido;
     - o sofrimento violento pela volta do primeiro marido;
     - o sofrimento cruel após conhecer a existência do primeiro marido (vivo):
          . pela perda do marido;
          . pela perda de Maria.

. De Manuel de Sousa Coutinho:
     - sofre a angústia pela situação presente e futura da filha (III, 1);
     - sofre a angústia pela situação da sua esposa (III, 8).

. De D. João de Portugal:
     - sofre o esquecimento a que foi votado;
     - sofre pelo casamento de sua mulher e pela família que constituiu;
     - sofre por não poder travar a marcha do destino (III, 2).

. De Maria de Noronha:
     - sofre fisicamente, acossada pela tuberculose;
     - sofre psicologicamente:
          . não obtém resposta a muitos agouros;
          . sofre a vergonha da ilegitimidade.

. De Telmo Pais:
      - sofre pela dúvida constante que o assalta acerca da morte de D. João de
         Portugal;
      - sofre, hesitando entre a fidelidade a D. João e a Manuel de Sousa;
      - sofre a situação de Maria.
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